Num destes domingos em que havia sol fui almoçar com o Manel a um japonês que tem uma simpática esplanada ali para os lados da Expo. Na mesa ao nosso lado, ficaram dois casais jovens, um dos quais com a filha, uma menina muito pestanuda que tinha, quando muito, dois anos. Deram-lhe de comer de um tupperware trazido de casa antes de eles próprios se servirem (o restaurante é self-service) – uma massa de lacinhos com carne, que normalmente agrada às crianças; e, terminado o repasto, a miúda começou a ficar irrequieta e a pedir colo. Como os graúdos também queriam almoçar, o pai da menina perguntou à sua cara-metade se tinha trazido o telefone da filha. O telefone «dela», disse e eu ouvi muito bem. E, quando eu julgava que iria sair da enorme bolsa que as mães de filhos pequenos sempre trazem com elas um telefone de brincar, desses que tocam campainhas e têm muitas teclas coloridas, eis que aparece sobre a mesa um moderníssimo iPhone, logo entregue à bebezita que já sabia tudo sobre a geringonça e começou imediatamente a passar fotografias e a jogar, deixando os progenitores à-vontade para degustarem sushi e sashimi. Ora que diabo, pensei eu, então o telefone «dela», de uma criança de dois anos, era aquela máquina estupenda e caríssima a que tantos adultos aspiram? Porque não um livrinho, meus senhores, com bonecos, ruídos e até cheiros, que também os há? Irão estes meninos tecnológicos ser capazes de brincar a alguma coisa mais tarde e com alguém? Ou vê-los-emos sós durante toda a infância, diante de ecrãs de computador, sem abrir a boca para comunicar com os da sua idade, mandando apenas mensagens escritas ou apondo comentários em redes sociais? Um susto, é o que é...
Ninguém imaginaria que Mafalda, a menina rebelde que odeia sopa e tem uma visão do mundo muito desassombrada, pudesse fazer este ano meio século. Na verdade, ela permanece igual, não envelhece apesar do correr do tempo que aos restantes traz rugas e cabelos brancos. E não envelhece sobretudo porque continua actual e oportuna num mundo que mudou imenso em muita coisa, mas é ainda o mesmo em quase tudo. Não consigo esquecer a lufada de ar fresco que foi descobrir este magnífico cartoon do argentino Quino (diminutivo de Joaquín) e as suas deliciosas personagens: além da própria Mafalda, claro, toda ela um programa, o Manelinho, o Filipe, o Miguelito, o Gui, a absolutamente irresistível Liberdade com a sua tartaruga Burocracia, e ainda a supremamente irritante Susaninha, capaz de me arrancar gargalhadas com as suas frases intempestivas. Numa tira desta banda desenhada, saindo de uma loja de artigos para o lar, vem um casal de braço dado; e a sempre romântica e sonhadora Susaninha observa o homem de alto a baixo, como se avaliasse mercadoria, e logo pergunta à senhora: Por quanto lho venderam? Mas a política nunca deixou de estar também presente nas notáveis histórias de Mafalda e abriu os olhos a muitos adolescentes, até em países com regimes ditatoriais, como era há cinquenta anos a terra natal do autor. Parabéns, Mafalda.
Hoje é dia de falar de palavras e expressões que os nossos jovens provavelmente já não usam e que é importante que apareçam de vez em quando em textos e conversas, para que não morram. Um dia destes, por exemplo, a minha mãe contou-me que tinha ido de escantilhão ao supermercado e que estava cansada porque andara toda a semana numa fona (note-se, tem 90 anos, mas ainda não está a cair da tripeça). Como a arenga não parecia terminar, achei por bem pôr-me na alheta. Há pessoas muito mais novas do que ela que são um pelém (adoro esta, usada frequentemente pelo escritor Mário Cláudio e que me cheira a infância, pois a minha avó paterna aplicava-a a meninos que adoeciam por tudo e por nada, sempre queixosos). Outra palavra que desapareceu do uso corrente – e se calhar ainda bem – é enjeitadinha, originalmente referindo-se a criança rejeitada ou abandonada pelos pais e presente em muitos fados da primeira metade do século XX. Tal como a expressão a esmo, que eu aprecio pela sonoridade estranha e que é hoje quase sempre substituída por «ao acaso», «à toa» ou «indistintamente». Um dia disse a uma rapariga que cortara o cabelo que lhe tinha feito bem ir aobaeta; ficou na mesma, não conhecia a expressão. Por fim, três outras palavras que só as pessoas de alguma idade ainda usam: pífio (já ouvi o professor Marcelo dizê-la a propósito de uma remodelação governamental insignificante); flausina (o mesmo que sirigaita) e capitosa (que vem de capo, cabeça, e significa «obstinada», mas sempre a ouvi designar louras que causam impressão indelével). E pronto, para o mês que vem, há mais.
Uma das vantagens de se ser convidado para um festival literário fora do País não é conviver com os conterrâneos do mesmo ofício, uma vez que a esses temos acesso todo o ano, se o quisermos, e a verdade é que não queremos assim tantas vezes, até porque podemos não simpatizar com alguns deles ou com as suas obras e preferimos não ter de o dizer. A vantagem é, na verdade, conhecermos os nossos confrades de outros lugares, pessoas que não têm qualquer ideia do nosso trabalho e por isso estão naturalmente abertas e curiosas como, aliás, nós sobre elas. Quantas vezes não me aconteceu ler um jovem autor completamente desconhecido para mim só porque o ouvi falar na mesa de um encontro de escritores a quilómetros de casa e me pareceu que só podia escrever livros interessantes? Aconteceu-me em França, num festival de poesia, travar conhecimento com um poeta espanhol que leio até hoje e um dia gostaria até de traduzir. Pois agora é a vez de uma autora que publico, Ana Margarida de Carvalho, ir representar Portugal a Porto Rico no Festival de la Palabra, que se realiza anualmente naquele país e cujo director é José Manuel Fajardo, um romancista espanhol residente em Lisboa. Será a única escritora portuguesa do cartaz e terá a oportunidade de se encontrar com colegas das letras de todo o mundo, maioritariamente de língua espanhola – colombianos, mexicanos, espanhóis (Javier Cercas e Rosa Montero, óptima companhia), entre outros – mas também alemães, haitianos e norte-americanos, além dos muitos porto-riquenhos que estarão a jogar em casa. Fico muito contente que tenha sido ela a escolhida este ano e tenho a certeza de que, com a sua presença, Porto Rico ficará ainda mais rico.
Nada como começar cedo nestas coisas da arte e da literatura. Uma autora de livros infantis que já publiquei em duas das editoras por onde passei, Marina Palácio, também ilustradora de excelência, é, além disso, de 2009 para cá, uma fervorosa construtora de projectos interessantes para crianças em várias áreas, desenvolvendo regularmente catorze oficinas de leitura e criatividade, nas suas palavras, «laboratórios para a criação da consciência da identidade “Nós e o Mundo” (...) cruzando expressões artísticas, ciência, humanismo, natureza, e promovendo ideias criativas e inovadoras». As oficinas (Como Nasce Um Livro? Jardineiros das Madrugadas, Educar pelo Livro, Oficina das Árvores e dos Avós, entre muitas outras) têm lugar em escolas, bibliotecas e outras instituições culturais em todo o País e recebem crianças entre os 3 e os 17 anos para formar leitores que se tornem elementos activos na sociedade. Deixo-vos, pois, os links do seu vídeo de apresentação e espero que inscrevam os mais pequenos em alguma destas actividades.
Por estes dias, sai para as livrarias um livrinho muito bonito de José Fialho Gouveia (o excelente entrevistador do infelizmente extinto programa Bairro Alto), acompanhado de um CD cujas músicas foram compostas por Manuel Paulo (da Ala dos Namorados, entre outros). Trata-se de Amarrada à Tua Mão, uma peça de teatro para todas as idades que pode ser lida como um conto sobre esta pressa louca com que hoje vivemos e que nos tira o tempo e o prazer das coisas que são realmente importantes para nós. As personagens são um casal – ele sempre doido de trabalho, sem sequer tempo para ir ver o pai ao lar, ela uma jornalista farta da profissão e desiludida por nunca ter disponibilidade para a filha de ambos (quantas vezes chega a casa e já ela dorme?) – e uma boneca, a boneca que foi o brinquedo preferido da jornalista, mas jaz agora na prateleira de cima de um armário, sem préstimo, e nos canta a sua solidão (essas são as canções presentes no CD). Num dia especialmente triste, o casal resolve fazer um balanço sobre a sua vida e confirmar que os sonhos que tinham antes de se tornarem adultos foram, afinal, completamente ultrapassados por essa vida voraz e triste que levam. Então, também a boneca conhecerá um novo destino... Muito bonito e uma boa lição para todos nós, Amarrada à Tua Mão já esteve em cena, mas queremos que regresse, nem que seja aos palcos de muitas cabeças.
P.S. Apareça na Fábrica Braço de Prata dia 16 às 19h para ouvir Alice Vieira falar do livro e também algumas das canções.
Parabéns a Patrick Modiano. Escrevi aqui sobre um livro dele, Horizonte, em 19 de Julho de 2012. O Manel, pelo que disse nesse post, está contente. Eu irei explorar outras obras para ver se também fico.
Como há uns tempos os Extraordinários se divertiram com um texto que aqui publiquei sobre «vegetarianismo linguístico», resolvi voltar à carga e dizer que, para evitar os males da carne vermelha, sempre podemos recorrer às aves e fazer, na mesma, um brilharete lexical. Senão, vejamos: No galinheiro de um estádio de futebol, pode ser triste um adepto ver perder a sua equipa por causa de um frango – é, na verdade, um galo se isso acontecer e até o pode deixar com pele de galinha; pior ainda é se, à saída, está a chover e chega a casa um pinto. Se assim for, mais vale à mulher, que é uma gralha, calar o bico (antes que ele lhe corte o pio), comer como um pisco e a correr a sopa a ferver (o que vale é que tem goela de pato) e ir deitar-se com as galinhas para evitar discussões (já tem penas que cheguem). O seu vizinho, um pato-bravo da habitação clandestina, casado com uma perua de nariz aquilino com a mania das grandezas, queria multiplicar a fortuna, acreditou na galinha dos ovos de ouro (foi um pato), contou com o ovo no cu da galinha, mas o negócio trazia água no bico e, afinal, acabou depenado (mais valia um pássaro na mão, disse-lhe a mãe, uma pata-choca com pés de galinha debaixo dos olhos). Por sua vez, o sobrinho, um borracho que tinha o hábito de se pavonear por aí, verdadeiro galifão, pôs-se a galar a pombinha do andar de cima, que era o patinho-feio do prédio, papagueou-lhe uns poemas de amor, ela derreteu-se, caiu que nem um patinho, mostrou-lhe a passarinha (no Norte seria o pito) e agora vem aí a cegonha – e tomara que a rapariga seja uma mãe-coruja, porque o rapaz é um galo doido, capaz de a trocar por uma pega à primeira oportunidade (estes galarotes deviam era morrer como tordos, comentou a mãe da desonrada). Gostaram? Estou a tornar-me uma ave rara, mas escarafunchar nos dicionários é ou é não o ovo de Colombo?
Há muitos anos, li dois pequenos romances muito agradáveis, algo eróticos, de uma autora chamada Agustina Izquierdo: Um Amor Puro e Uma Recordação Indecente. (Se ainda os encontrarem nos alfarrabistas, dediquem-lhes a vossa atenção.) Talvez porque a autora, sendo de origem espanhola, escrevia em francês (ao que parece, era de uma família antifranquista que se refugiara em França), gerou-se o boato de que era apenas um pseudónimo de Pascal Quignard, que negou a autoria dos romances e afirmou que já lhe tinham atribuído quatro pseudónimos, todos falsos. Pois parece que temos, desde os anos 1990, mais uma autora-mistério: trata-se de Elena Ferrante, italiana, que, ao enviar a sua primeira obra ao editor, pôs como condição para ser publicada nunca aparecer em lado nenhum e apenas responder a entrevistas por escrito, nas quais já declarou ter nascido em Nápoles, ser licenciada em Estudos Clássicos, ensinar e ser mãe. Peguei num volume recentemente dado à estampa pela Relógio d’Água, Crónicas do Mal de Amor, constituído por três distintas novelas, e – ainda que só tenha lido a primeira –, fico na dúvida sobre se as declarações de Ferrante são mesmo de Ferrante. Isto porque, nesse texto, encontro múltiplas ressonâncias de autores espanhóis que conheço relativamente bem – o Juan José Millás de A Ordem Alfabética ou Assim Era a Solidão (que usa recorrentemente como protagonista Elena, o nome de baptismo da escritora italiana), algum Marsé e ainda traços de Buñuel aqui e ali – mas também porque me parece ser mão de homem a escrever, mesmo que os temas sejam, como o da relação entre mãe e filha, tipicamente femininos. Alguém me disse que, ao pé de Ferrante, Bukowski é um menino do coro. Quem quer que seja esta Ferrante, só posso dizer que não a percam.
Do outro lado do mar, na América do Sul, também se lê em português. E não é raro que todos os anos, quando se anunciam os finalistas do Prémio Portugal Telecom de Literatura, surjam entre os nomeados, além de brasileiros, autores portugueses publicados no Brasil. Este ano não é excepção: na categoria de Poesia, chegaram à final Ana Luísa Amaral com o seu livro Vozes e Gastão Cruz (já nomeado noutros anos) com o seu Observação de Verão seguido de Fogo. Na categoria de Romance, o prémio que já foi ganho por Gonçalo M. Tavares volta a contemplar o autor como finalista, desta feita com a obra Mateo Perdeu o Emprego, sobre o qual já aqui escrevi no Verão do ano passado, pois foi nas férias de 2013 que o levei para ler. Mas não é tudo: a jornalista Alexandra Lucas Coelho, que se estreou no romance com E a Noite Roda (vencedor do Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores) e viveu largo tempo no Rio, escrevendo textos para o Público sobre a vida no Brasil, concorre na categoria de Conto e Crónica com a sua obra Viva México!, publicada originalmente pela Tinta-da-China. Os concorrentes do outro lado são de peso, mas já não seria a primeira vez que ganharia um português.