Há uns meses reeditei um antigo ensaio biográfico de Orlando Raimundo sobre Marcello Caetano e agora publico o seu livro mais recente: António Ferro: O Inventor do Salazarismo. Certamente todos conhecem o nome de Ferro, o homem da propaganda de Salazar que congregou à sua volta artistas e escritores (Almada Negreiros, por exemplo), lhes deu condições para servirem o regime com grande criatividade e entrevistou o homem de Santa Comba que admirava mais do que todos (e que acabou por lhe dar um pontapé no rabo depois dos serviços prestados). Pois bem: Ferro, para quem não saiba, é o homem que inventou o Galo de Barcelos (se julgavam que era uma antiquíssima tradição, desenganem-se), os cordões de ouro das noivas do Minho, a aldeia mais portuguesa de Portugal (que arranjou a seu gosto, modificando o mobiliário doméstico) e até as marchas populares. Com uma capacidade de manipulação e cosmética que poucos tiveram, era também dono de uma imaginação e de uma cultura raras entre os homens de Salazar e, embora pareça que se impôs desde o início com uma impostura (alegando ter sido o editor da revista Orfeu, quando apenas o foi na ficha técnica – e por ser menor na época e, portanto, não poder ser vítima de queixas e processos), a verdade é que muito do que foram as artes do seu tempo (pintura, cinema, dança) se devem a Ferro e às suas ideias engenhosas. No livro de Orlando Raimundo, podemos conhecê-lo do nascimento à morte, com o seu génio e as suas imposturas – mas será impossível doravante passar-lhe ao lado.
Contaram-me não há muito tempo uma história que assusta qualquer um. Numa escola de Música do Norte do País, de nível superior ainda por cima, o professor deu a ouvir aos alunos de determinado instrumento obras de compositores do século XVII, e uma rapariga alegou ser impossível que as peças escutadas fossem dessa época pois na altura não existiam meios para as gravar e fazer discos... Desconheço o que fazia ela numa escola superior de Música, mas este ano nas Correntes d’Escritas participou numa das mesas do encontro um dos membros do colectivo Vozes da Rádio que contou um episódio semelhante. Estando alguns estudantes de música a ensaiar num teatro uma peça de António Pinho Vargas, este resolveu aparecer para ouvir a sua prestação; e, quando entrou no palco e disse quem era, um dos alunos deu simplesmente um grito. Querendo saber porque provocara a sua presença tal reacção, Pinho Vargas certamente não contava com a resposta do rapaz: “Desculpe, mas é que os compositores costumam estar mortos.” Tem graça, mas se calhar é mais sério do que cómico.
Publiquei recentemente um romance extenso no qual cabe um ano inteirinho: 1921 (o ano mais violento da história de Lisboa). Chama-se Veio depois a Noite Infame e assina-o Margarida Palma, que já antes compusera um romance sobre o Regicídio, intitulado A Morte do Rei. Esta obra mais recente conta-nos a história dos habitantes de uma praça lisboeta (a Praça Duque de Saldanha), especialmente a de uma família tradicional que reside numa vivenda que ainda ali sobra no meio dos edifícios horríveis que lá construíram depois, e também a dos moradores do prédio contíguo, entre os quais se contam um monárquico muito cómico, um casal de refugiados russos fugidos da revolução de 1917 e ainda uma actriz famosa, adorada e criticada em doses iguais, que recebe em casa numerosas visitas que vamos conhecendo ao longo do romance. Com um toque de Jane Austen (nas intrigas e nos mal-entendidos), muito informado sobre este ano específico que culminou com a Noite da Infâmia (em que uma carreta de milicianos foi buscar uma série de políticos ilustres às suas casas e os matou sem dó nem piedade), este é um livro que nos ensina muito sobre as convulsões da República, a devoção à Nossa Senhora de Fátima, os horrores da Primeira Guerra Mundial ou o fim da aristocracia russa. Mas é também uma história de vizinhos diferentes que nem sempre se relacionam com transparência, de vícios e virtudes, de oportunismos e males de amor. Com muito sentido de humor à mistura e um leque de personagens notáveis (a tia Fortunata sem papas na língua faria muita falta hoje na crítica aos políticos e às políticas), Veio depois a Noite Infame oferece-nos um enredo rico em episódios que nos deixam com água na boca até à última página.
António Candido, que é considerado o mais importante crítico literário brasileiro vivo, escreveu um interessante ensaio sobre os livros que é preciso ler para conhecer o Brasil desde a sua fundação – não apenas romances, claro, mas obras que nos digam o que é fundamental saber sobre o país irmão. Começa, curiosamente, por um livro de 1995 que pensa sintetizar melhor do que qualquer outro a formação e o sentido do Brasil: O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, ao qual se segue Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (o pai de Chico), que é, segundo ele, uma análise inspirada da sociedade brasileira a partir da sua herança portuguesa. Em relação às populações autóctones, seleciona História dos Índios do Brasil (organização de Manuela Carneiro da Cunha) e indica, entre outros, O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, um livro do século XIX sobre o papel dos negros no Brasil que, quanto a ele, ainda não foi superado por nenhum outro. Passa depois para Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (que considera um acontecimento na história da literatura brasileira, a par do ensaio Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior) e segue para as obras que precedem e explicam a independência, das quais destaca D. João VI no Brasil, de Oliveira Lima, e História Geral da Civilização Brasileira (org. Sérgio Buarque de Hollanda), entre várias outras. Do período da República até aos nossos dias, temos, por exemplo, Coronelismo, Enxada e Voto, de Vítor Nunes Leal, A Revolução Burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes, alguns livros sobre a imigração alemã e italiana e Do Outro Lado do Atlântico, de Ângelo Trento. Dada a limitação imposta no número de títulos a indicar, penaliza-se por não referir ainda a obra de autores como Evaldo Cabral de Melo, Alcântara Machado e outros. Pois bem: com isto percebi que não sei nadinha do Brasil...
Leio na revista Time que no Reino Unido houve um aumento significativo da venda de livros em papel e que as vendas de livros electrónicos estão a baixar todos os meses, pondo até algumas livrarias que já se encontraram perto da falência a ponderar abrir novas lojas. Num jornal português que cita o Huffington Post, encontro outro artigo sobre o facto de haver razões de sobra para os livros em papel não acabarem, a primeira das quais – muito curiosa – é a de os jovens leitores acreditarem que a informação útil e verdadeira se encontra sobretudo fora da Internet... Mas há mais: os estudantes norte-americanos, por exemplo, não se importam de estudar disciplinas científicas em manuais digitais, mas preferem estudar por manuais em papel as chamadas Humanidades e, o que é mais giro, dizem que para livros que não são de estudo o papel fica a milhas do e-book, pois é difícil estabelecer uma relação emocional com os textos lidos num ecrã (e alegam que a compreensão dos mesmos é muito superior numa página física). Ainda por cima, parece que em Harvard se levou a cabo um estudo que prova que o e-book interfere no sono dos que lêem na cama (parece que a luz emitida por alguns dispositivos não ajuda) e que as famílias com filhos pequenos também preferem ler livros em papel quando o fazem em conjunto. Por isso, talvez Umberto Eco tenha tido razão ao dizer que os e-books não iam durar sempre – afinal, até os mais novos começam a preferir o velhinho papel.
Esta profissão tem que se lhe diga e, como é natural, há dias em que perdemos completamente a cabeça e quase queríamos ter escolhido um ofício menos mental e mais manual (às vezes, penso que gostaria de experimentar a olaria, apesar da minha faltinha de jeito); mas, se eu acaso sofresse um certo desequilíbrio psíquico, a verdade é que teria quem me ajudasse a reposicionar-me e a recuperar os parafusos desatarraxados. É que, como recentemente uma escritora que publico me informou (eu nunca me tinha lembrado de tal coisa, mas gostei de saber), cinco dos meus autores são psicólogos… A informação foi dada por Ana Cristina Silva, uma dos tais cinco, que até é docente no ISPA e doutorada. Porém, além dela, publico as obras de Vasco Luís Curado (que é psicólogo clínico de formação – com livro novo lá para o Verão), Gabriela Ruivo Trindade (que ora não exerce, mas tem o mesmo curso), Norberto Morais (idem, idem, aspas, aspas) e ainda Nuno Amado, professor na Universidade de Évora, a propósito de cujo livro (Manual de Felicidade para Neuróticos) publiquei aqui recentemente um post (de todos, este último, pelo título do seu romance, parece o mais indicado para tratar as minhas neuroses passageiras). Estou, pois, debaixo de cuidados intensivos todo o ano sem me aperceber, com apoios à discrição para dias difíceis. Até me passam as neuras só de o saber.
Embora tenha sido a França a oferecer aos Estados Unidos a Estátua da Liberdade, os americanos não retribuem lendo a literatura francesa... Muitos autores franceses queixam-se de que estão traduzidos em várias línguas, mas que não são publicados nem no Reino Unido nem nos EUA, e até o Prémio Nobel Le-Clézio é praticamente um desconhecido nestes países (Modiano há-de ter destino semelhante, digo eu). Haverá algum problema específico com a literatura francesa que justifique tal ausência? Bem, leio num artigo da Internet assinado por Dennis Abrams que a produção literária anglo-saxónica é de tal forma volumosa que deixa pouco espaço às literaturas de outras línguas (em França, apesar de saírem centenas de livros franceses, 45 em cada 100 títulos publicados são estrangeiros); e que, além disso, no mercado norte-americano fica tão caro traduzir um livro literário que as pequenas editoras fogem de o fazer. Mas será só isso? Pois parece que não: os editores anglo-saxónicos consideram que os franceses até inventaram o interessante romance social no século XIX, mas depois da Segunda Guerra Mundial esqueceram-no completamente para se dedicarem à experimentação e ao nouveau roman, que consideram elitista, intelectual e, em suma, pouco legível... E acrescentam que, no campo da não-ficção, os livros franceses são demasiado académicos e não adequados aos leitores de biografias, divulgação científica e história popular que existem aos montes no mundo de língua inglesa. E o problema é que em todo o mundo se lêem cada vez menos livros franceses – em Portugal também – como se fossem papões que metem medo e dão pesadelos. Embora reconheça que a literatura francesa é às vezes bastante exigente, penso que ler de vez em quando um autor mais difícil só nos pode tornar melhores leitores.
Amanhã irei para Macau – é a minha primeira vez em território chinês – para participar num festival literário que dá pelo nome de Rota das Letras. Trata-se da sua 4.ª edição, que decorrerá de 19 a 29 de Março e terá como local o edifício do Antigo Tribunal. Fundado pelo jornal macaense Ponto Final em 2012, este festival é o primeiro grande encontro de literatos da China e dos Países de Expressão Portuguesa alguma vez organizado e trará à cidade mais de 30 convidados, entre escritores, editores, cineastas, artistas plásticos e músicos. Ali estarei com Ondjaki, por exemplo, com João Tordo, David Machado e Francisco José Viegas, mas também com o poeta e humorista brasileiro Gregório Duvivier, membro do colectivo Porta dos Fundos, cujo programa de TV creio estar neste momento a ser exibido no canal Fox, e ainda o cineasta João Botelho, cujo filme Os Maias será também exibido no festival. Vou como poeta, editora e escritora de livros infanto-juvenis (não pensem que estarei de férias) e, nesta última condição, irei fazer com o ilustrador João Fazenda uma sessão com crianças numa escola sobre o que é escrever e ilustrar um livro. A diferença horária é grande – e as viagens, como calculam, longuíssimas. Depois prometo contar tudo, mas, queridos Extraordinários, não vão poder contar com o blogue até segunda-feira que vem. O tempo não dá para tudo, perdoem. Espero que se divirtam por cá na minha ausência.
Se gosta de ouvir poesia por quem a sabe dizer – no caso, a grande actriz de voz doce Natália Luiza –, não deve de forma alguma perder o espectáculo Portugal dos Poetas no Teatro Meridional, em Lisboa. Não se trata apenas de um serão de poesia, mas de uma noite de cidadania, já que os poemas têm que ver com Portugal, no que tem de bom e de mau, anunciando-se como «palavras de escárnio e bem-dizer e de apreço e maldizer». Os nomes dos autores chamados ao espectáculo são muitos e de várias épocas – de O’Neill a Natália Correia, de Al Berto a Antero de Quental, de Ruy Belo aos mais jovens Vasco Gato e Filipa Leal, todos seleccionados pela própria Natália Luiza que, assim, nos promete «desencanto, ironia, cansaço, inquietação» e também – pois, claro – utopia, que dela andamos bem precisados. As sessões decorrem até dia 21, mas só de quinta a sábado e, portanto, apressem-se, pois já não têm muito tempo. Mais informações no link : http://teatromeridional.net/index.php/programacao/espectaculos
A pontuação é tremendamente importante para quem escreve e para quem lê, e um texto mal pontuado pode efectivamente levar-nos a compreender algo muito diferente daquilo que o autor queria transmitir (até há anedotas e charadas a este respeito). É por isso que é tão importante para quem é do ofício (escritor, editor, leitor, tradutor...) dominar a colocação dos sinais de pontuação, mesmo que alguns autores mais originais gostem de os dispensar (lembro-me de que valter hugo mãe nunca punha pontos de interrogação, mas escrevia de uma forma tal que não nos custava entender quando se tratava de uma pergunta). Eu diria que, entre todos esses sinais, a vírgula é aquele que levanta mais problemas (há gente tão virgulativa que nos interrompe permanentemente o raciocínio, há gente tão parcimoniosa na sua aplicação que nos deixa sem ar ao fim de umas linhas); mas raramente as vírgulas são obrigatórias (mesmo que a colocação de uma obrigue à colocação de outra, se não pusermos nenhuma das duas ninguém nos pode acusar) e a verdade é que o que é facultativo na pontuação pode causar grandes problemas. Se sabe inglês, atente por favor ao vídeo abaixo, rapinado do blogue dos Blogtailors, um exemplo delicioso de como uma vírgula (que, por acaso, em português, quase nunca usamos) faz toda a diferença.