Aqui há tempos, quando disse que o Brasil ainda não contava para a internacionalização dos autores portugueses, houve alguém que, num comentário, me pediu que explicasse melhor – e a única explicação que posso dar é a da minha experiência: quase ninguém lê no Brasil os autores portugueses contemporâneos, excepto se ganharem prémios importantes ou forem conhecidos por outras razões. E o contrário é também verdade – muitos dos autores brasileiros que escrevem hoje não são publicados em Portugal, e os que o são quase ninguém os conhece. A situação pode, mesmo assim, melhorar bastante com uma parceria anunciada recentemente pelo nosso Secretário de Estado da Cultura. Ao que parece, lá e cá, as bibliotecas públicas acordaram ter todas à disposição um conjunto de livros considerado uma biblioteca básica que dê um cheirinho sobre a literatura do outro país. O ministro brasileiro disse esperar que a parceria contribua «para desenvolver estratégias que nos aproximem, que fortaleçam a nossa língua e que criem a possibilidade de um intercâmbio e uma proximidade muito maior do que aquela que já temos». Veremos se muda alguma coisa. Eu gostaria de começar por saber de que se comporá essa biblioteca básica…
Ontem ao princípio da tarde, tive a bela notícia de que Mário Cláudio vencera o Grande Prémio de Romance e Novela da APE/DGLAB 2014 com a sua novela Retrato de Rapaz, que tive a felicidade de publicar. A felicidade foi maior ainda por dois outros motivos, além da qualidade do romance e de ter sido a sua editora: o facto de haver concorrentes muito fortes (Os Memoráveis, de Lídia Jorge, por exemplo) e também a circunstância de ser a segunda vez que Mário Cláudio arrecadou este galardão (há trinta anos, recebeu-o pelo romance Amadeo, a obra que o tornou um escritor conhecido), proeza que só Vergílio Ferreira, Lobo Antunes e Maria Gabriela Llansol tinham alcançado antes dele. Já aqui escrevi sobre esta belíssima novela na altura em que foi publicada, mas queria aproveitar para lembrar que se trata de um texto sobre o relacionamento do grande Leonardo da Vinci com um jovem discípulo que vai trabalhar para o seu estúdio, bem como sublinhar que a novela premiada é a segunda de um trio, de que fazem também parte Boa Noite, Senhor Soares e O Fotógrafo e a Rapariga. Todos muito bons! Parabéns, Mário Cláudio.
Ontem falei aqui de sucesso e hoje é também de algum modo esse tema inesgotável que volto a trazer. Desta vez, porém, tem que ver com alguém a quem o êxito trouxe um certo desconforto – porque, não nos iludamos, também há quem não goste de se tornar conhecido e ser abordado por causa disso. Falo de um homem que se tornou conhecido e que, enfim, quisesse ou não, devia ser abordado de vez em quando no seu país: o autor de Pela Estrada Fora, Jack Kerouac, que, segundo agora se conta, escreveu um dia ao seu editor uma carta onde fazia a seguinte confissão: «Começo agora a aperceber-me de que sucesso é quando já não conseguimos almoçar em paz.» Percebo o desabafo, evidentemente, deve ser mesmo chatinho ter sempre alguém à perna (cá os escritores estão dispensados desses «afectos» porque ninguém sabe quem são), mas a verdade é que isso tem também vantagens – e é por isso que esta carta de Kerouac que referi está a ser objecto de um leilão e vai certamente render muito dinheiro… Parece que lá se descreve o que o escritor ia fazer no seu livro Spotlight, que ficou inacabado, e há muitos maluquinhos malucos por saber…
Li recentemente no Público uma reportagem sobre a participação da poetisa portuguesa Matilde Campilho na Festa Literária de Paraty, reportagem na qual, citando jornais brasileiros, se contava que «ela roubou a cena» e «foi a musa» da festa, contribuindo para filas intermináveis de leitores à espera do seu autógrafo. E logo me lembrei daquele ano em que Valter Hugo Mãe fez chorar a plateia (e chorou também ele), passando a seguir mais de quatro horas numa livraria a autografar romances para mulheres que queriam casar-se com ele. Com o sucesso – sobretudo o internacional – passou a ser odiado por um mar de gente que não perdoa aos escritores terem um êxito que facilmente aceitariam num actor de cinema. Não: escritor é para escrever e ficar sozinho no seu canto... Pensava eu nestas coisas com medo do que irá suceder à jovem e promissora Matilde Campilho (que ainda por cima é bonita e, por isso, tem mais uma razão para os feios implicarem com ela) quando, em pleno Facebook, na página de um escritor estrangeiro, leio qualquer coisa como (desculpem a tradução literal): «Fode à vontade, mas por favor guarda isso para ti.» Vinha a frase a propósito da relação de Mario Vargas Llosa com a socialite espanhola Isabel Preysler, que fez mais uma capa da revista Hola, na qual se anunciava a felicidade do casal numa viagem romântica a Portugal. Ou seja, tu, escritor, podes ter o proveito, mas não a fama... Pois não sei bem o que pensar disto: as revistas deste tipo nem sequer me irritam, são-me indiferentes; se as folheio no dentista ou no cabeleireiro, não apreendo quase nada, pois não sei de quem estão a falar porque, para isso, é preciso ver televisão (e não troco um livro por essa anestesia). Mas porque se enervam tanto as pessoas sérias quando um intelectual aparece ao lado de uma mulher bonita e mundana? O escritor do Facebook dizia que há coisas que, se não pudermos contar que fizemos, perdem a graça, mas que Vargas Llosa não se devia pôr a jeito. Eu não sei se é para dizer que anda com uma mulher gira e com tudo no sítio que ele se deixa fotografar. De qualquer modo, não preciso de defender um senhor que até já recebeu o Prémio Nobel da Literatura. Espero é que a jovem poetisa, de quem já falei elogiosamente aqui no blogue, não atraia muita gente maldisposta que se vire contra a sua poesia, como os que se viraram há uns anos contra o que Valter Hugo Mãe escreveu, só por causa do seu sucesso internacional.
Na última página do livro, o editor escreve com que tipo de letra foi composto e onde foi impresso o “romance” que acabámos de ler. Ora, embora se leia como um romance e fale sobretudo do “poder redentor das histórias”, Esta Distante Proximidade, de Rebecca Solnit –, uma das ensaístas mais aclamadas dos EUA na actualidade – não é um romance, e quase apostaria que no país de origem figura nas listas de livros de não-ficção. Na verdade, parte do livro é realidade, autobiografia, e a outra parte reflexão e sugestão de teoria. Mas tudo está ligado efectivamente pelas histórias – mitos, lendas, fábulas, contos de fadas, histórias da História e também coincidências e episódios da vida da autora. Tudo escrito como numa série de espelhos, nos quais vemos antes de tudo Rebecca Solnit, mas vemos também muitas outras pessoas e nos vemos até a nós de vez em quando. Estamos, no fundo, ligados pelas histórias, próximas e distantes – e estas que se nos apresentam aqui falam de Alzheimer e cancro, mas também da Islândia e dos ursos polares, de viagens contemporâneas e antigas, de obras de arte imorredoiras e instalações vanguardistas, de palavras e da sua etimologia; e de damascos – sim, de damascos –, pois é com pilhas deles que tudo começa e acaba nestas páginas profundas, bonitas, cheias de ideias muito atraentes e de parágrafos notáveis. (O meu preferido está na p. 127 e é sobre empatia.) Vale muito a pena ler, asseguro, mesmo para quem só costuma ler romances.
Já não fui a tempo de ler Tudo O Que Conta em vida do autor, James Salter. O livro saiu cá um mês e picos antes da sua morte, ocorrida no dia 20 de Junho, em que me cruzei na Gulbenkian com a jornalista Isabel Lucas, que o tinha entrevistado recentemente e estava inconsolável, pois ele era, além de um senhor escritor, um homem especial, que adorava comida e lhe tinha mostrado a sua cozinha na casa onde a recebera para a entrevista. Nunca tinha lido Salter – falha minha, claro, pois já me tinham falado muito bem de The Hunters –, mas em Portugal só foi publicado agora e confesso que não tenho lido muitos livros estrangeiros nas respectivas línguas ultimamente. Este Tudo O Que Conta (com tradução de Francisco Agarez, e boa) lembrou-me o romance Stoner, de John Williams, de que já aqui falei, talvez por ser também a história de um homem que gosta muito de livros; o protagonista chama-se Philip Bowman e, depois de combater na Segunda Guerra Mundial, abraça a edição (Stoner tinha sido professor). E é da vida de Bowman, entre mulheres e livros, que saberemos o que realmente contou, entre a experiência na Marinha contra os Japoneses nos anos da guerra, os almoços com a mãe e os tios, os encontros com editores e escritores, a comunhão funda, mas quase sempre passageira, com várias mulheres: Vivian, com quem se casa, Enid, uma inglesa casada com quem tem uma relação entrecortada, Christine, que o engana e rouba indecentemente, Anet, a filha desta (a vingança deve servir-se fria) e, já a caminhar para velho, uma mulher que trabalha também com livros e nunca teve um homem antes dele. Não é só isto, evidentemente, porque teremos, a par das histórias de Bowman, muitas outras sobre as pessoas que realmente contaram na sua vida e, além disso, uma prosa limpa e culta, cheia de referências literárias raras na literatura americana contemporânea. A ler, claro, mesmo que já não possamos dizer ao autor como gostámos deste seu romance.
Ir a uma livraria comprar um livro erótico ou a uma papelaria comprar uma revista de mulheres nuas deve equivaler ao que sentiam certos homens aqui há uns bons anos quando tinham de comprar preservativos na farmácia e os atendia uma senhora de certa idade. Por isso, este tipo de livros e revistas é ainda hoje comprado sobretudo em lojas online e frequentemente em edição digital. Leio, mesmo assim, que a Associação de Editores e Livreiros da Alemanha tomou a decisão de estabelecer um horário nocturno para a compra online de livros e revistas para adultos – precisamente entre as 22h00 e as 6h00. Talvez o objectivo seja o de evitar que crianças consumam produtos que não são para a sua idade. A Alemanha tem, de resto, uma lei desde 2002 que obriga editores a especificar que certos livros, revistas e outras publicações se destinam apenas e só a adultos, incorrendo em multa muito pesada se o não fizerem. E são essas publicações que não vão agora poder ser compradas durante o dia nas plataformas digitais, mesmo que sejam adultos a querer lê-las. A medida está a dar uma grande dor de cabeça, porque há certamente alguns menores que já terão capacidade de ler alguns títulos para adultos e porque requer uma nova catalogação que dá trabalho e custa dinheiro. Não sei se terá efeitos práticos, mas como prevenção até é louvável.
Muita gente que não tem hábitos de leitura alega falta de tempo para não ler. Pois bem: há muitas desculpas mais válidas, entre elas ser preguiçoso ou simplesmente não querer dar-se ao trabalho de exercitar o cérebro. Não é, porém, por falta de tempo que não se lê. Desencanto num outro blogue uma lista de quase meia centena de títulos de qualidade reconhecida – e para gostos muito distintos – que podem ler-se integralmente num fim-de-semana por terem todos menos de 200 páginas; e alguns são, de resto, considerados obras-primas da literatura universal. Desde logo, o celebérrimo Animal Farm (traduzido entre nós como O Triunfo dos Porcos), que é de leitura aconselhada até para adolescentes; mas, se o acharem pouco suculento (é tudo menos isso), têm à disposição coisas mesmo para adultos, como O Amante, de Marguerite Duras, Um Quarto Que Seja Seu, de Virginia Woolf, O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, ou mesmo Breakfast at Tiffany's (que deu um belíssimo filme com Audrey Hepburn), de Truman Capote. E, se os livros lhe metem medo, experimente um livro no qual os livros estão em extinção, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, por exemplo. De autores mais recentes, ainda vivos, a lista inclui Amsterdão, de Ian McEwan – que recebeu o Booker Prize – e O Sentido do Fim, de Julian Barnes, de que já aqui falei há mais de um ano. E também pode fazer uma viagem com O Velho e o Mar, de Hemingway (curta, mas intensa), ou com O Americano Tranquilo, de Graham Greene, antes que o autor passe de moda. Há muito por onde escolher – e a falta de tempo não serve de desculpa para não se atrever ao prazer e ao conhecimento.
No ano em que Albert Camus, Prémio Nobel da Literatura, faria cento e dois anos, falo aqui daquele que é o seu primeiro romance, O Estrangeiro, de que Lucchino Visconti fez um filme que vi há muitos anos e do qual, infelizmente, me lembro muito pouco. Nascido na Argélia, Camus faz acontecer aí a acção deste livro, que se inicia precisamente com a morte da mãe do narrador, um homem que aparenta uma estranhíssima insensibilidade quanto a tudo (mesmo a morte da mãe), ainda que a certa altura se diga que são justamente os seus sentimentos que impedem muitas vezes que sejam diferentes as suas reacções. A morte da mãe não é, pois, um verdadeiro desgosto, mas mais um aborrecimento que o obriga a tomar o autocarro até ao asilo, a assistir a um velório no qual adormece, a acompanhar um enterro sob o sacrifício de um sol ardente. E desse incidente passaremos para um quotidiano no qual o protagonista se envolve com uma antiga colega (mas nem parece gostar muito dela) e com um vizinho pouco recomendável que quer dar uma lição a uma mulher árabe com quem andava e que o enganou. É por causa dele, de resto, que o narrador matará um homem e se verá a braços com a justiça. E é no período em que se encontra preso que mais estrangeiro o sentiremos, incapaz de colaborar com o advogado para salvar a própria pele, ilustrando a tese existencialista de que cada homem constrói o seu próprio destino. Segundo se diz, O Estrangeiro recebeu influências da literatura norte-americana (especialmente de Hemingway) – e é de facto algo seco, directo, essencial; mas traz um desconcerto muito peculiar que é altamente apelativo, mesmo que não consigamos criar muita empatia com o seu estrangeiro. Ou sobretudo por isso. A ler, evidentemente. A tradução é de António Quadros.
Pronto, cá estou de volta para falar de coisas de que todos gostamos: livros, claro. Tirando partido das novas edições da editora Livros do Brasil e da querida Colecção Dois Mundos que consumi muito enquanto jovem, leio e releio títulos vários de grandes autores, ente os quais A Pérola, de Steinbeck, uma novela que me dizem estar integrada no Plano Nacional de Leitura – e não admira, pois veicula valores importantes e uma certa moral contra a ganância e o desejo de riqueza tão patentes nas sociedades modernas. A história é, de resto, muito simples: um pescador índio chamado Kino encontra uma grande pérola nunca vista, talvez a maior pérola do mundo; e se, ao início, o seu desejo é que, com a venda dessa pérola, o filho bebé possa ser um dia um homem letrado e mais abastado do que ele próprio, pois a verdade é que a pérola acaba por só trazer problemas à família: a inveja alheia, antes de tudo, mas também a atracção desmedida por aquilo que ela poderá proporcionar. A vida do índio muda então drasticamente da noite para o dia: enganam-no, incendeiam-lhe a casa, atacam-no, levam-no inclusivamente a fugir e a matar. E o seu filho não terá nada do que o pai desejou para ele no dia em que encontrou a pérola, nada de nada, porque também ele será vítima do mal trazido por ela. Sucinto, sem gorduras, belo na descrição das paisagens, A Pérola é uma pérola muito simples que todos os jovens deviam ler – e os mais velhos também – neste tempo escuro em que parece muito mais importante ter do que ser.