Não, não é um jogo; é, pelo contrário, uma coisa séria – ainda por cima vinda de um homem muito divertido, Luís Fernando Veríssimo (LFV), um tímido ao vivo que, na página do jornal, está sempre cheio de humor. Como certamente sabem, entrou recentemente no domínio público (expliquei o que isto era na sexta-feira passada) o livro Mein Kampf, de Adolf Hitler, tendo sido publicado ou republicado em variadíssimos países. O facto causou bastante indignação nuns lugares, polémica noutros, e o livro chegou até a ser proibido aqui e ali (no Rio de Janeiro, segundo li, havia intenção de apreender os exemplares das livrarias). Mas LFV diz que não vê grande problema em que a obra circule para “historiadores, estudantes de psicologia de massas e até curiosos sobre como pode alguém galvanizar uma nação inteira e mudar a sua história”. Com uma condição, claro: ele sugere que Mein Kampf venha acompanhado de um "DVD com cenas dos cadáveres empilhados e dos moribundos esquálidos descobertos em Auschwitz e outros campos de extermínio, no fim da Segunda Guerra Mundial. Cenas terríveis dos esqueletos das cidades bombardeadas e dos milhares de refugiados tentando sobreviver em meio aos escombros, enquanto o mundo ficava sabendo, nos julgamentos dos criminosos, das barbaridades cometidas em concordância com a Kampf do Hitler. Assim, o comprador do livro teria o nazismo como teoria e o nazismo na prática.” LFV tem razão: se certas teorias pudessem vir acompanhadas das suas consequências, talvez muitas barbaridades pudessem ser evitadas por aquilo a que chama, com muita graça, uma espécie de “remorso preventivo”...
Trabalhei numa editora que, até à minha entrada, se dedicara exclusivamente a realizar colecções de livros para serem vendidas ou oferecidas com jornais – uma espécie de rebuçados que levavam muitos a adquirir os diários e semanários que estavam precisados de leitores. Não sei se as pessoas interessadas nos livros dados ou comprados a baixo preço também liam as notícias, mas sei que havia um factor que contribuía decisivamente para a selecção de determinados títulos: estarem no domínio público. Quer isto dizer que os respectivos autores tinham morrido há, pelo menos, setenta anos – altura em que os herdeiros perdem – desculpem-me o mau jeito nas palavras – direito aos direitos de autor. Pois bem, na febre que parece haver agora de fazer listas de livros a propósito de tudo e de nada, um site disponibiliza dezoito livros que todos devemos ler antes de morrer, assinalando que não temos desculpa, uma vez que se trata de livros gratuitos – ou, melhor, no domínio público. Entre eles, estão, evidentemente, A Divina Comédia ou Dom Quixote, Hamlet ou Os Miseráveis, Orgulho e Preconceito ou Moby Dick. Muitos dos referidos estão à venda nas nossas livrarias, mas o site oferece links para descarregarmos as versões digitais, julgo que nas traduções brasileiras. Atreva-se, se quiser.
Os portugueses começaram tarde com esta prática, mas o aparecimento da Internet e dos chats acabou por precipitar também entre eles os encontros às cegas – e, ao que parece, até já houve casamentos que nasceram assim. Há quem ache a coisa perigosa (e pode ser, uma vez que nunca se sabe quem é a pessoa com quem nos vamos encontrar) e quem a ache excitante (e pode ser, mais ou menos pelas mesmas razões); mas, para comemorar o Dia dos Namorados, uma livraria de Sidney teve uma ideia genial: a de promover blind dates entre os leitores… e os livros. Curioso? Posso adivinhar. A ideia é contrariar a normal escolha de um livro através do nome do autor, do título, da capa ou da sinopse e apelar ao espírito aventureiro dos leitores, vendendo o livro embrulhado em papel pardo com umas pistas apenas, do tipo «Saga Familiar, História Recente, Tragédia Pública» ou «Romance de Estreia, Estados Unidos, Seres Sobrenaturais». Assim, alguns leitores mais informados até podem adivinhar de que livro se trata, mas outros, se calhar mais indecisos, terão este empurrãozinho para arriscarem uma leitura. Se quiser, veja no link abaixo qual o encontro às cegas mais ao seu gosto.
Nunca pensei ver o nome de J. K. Rowling, a autora da famosa série Harry Potter, premiada com o PEN de Liberdade de Expressão, galardão que no ano passado distinguiu a revista satírica francesa Charlie Hebdo e que, em anos anteriores, foi já entregue Tom Stoppard e a Salman Rushdie. Mas a verdade é que a inglesa o receberá este ano “pelo mundo da fantasia sem preconceitos” presente na saga juvenil que criou, alegando a Associação Americana de Escritores que Rowling ensinou às crianças a importância de dizer o que pensam e de ouvir as opiniões dos outros. Além disso, a senhora que se tornou rica em poucos anos com a sua escola de feitiçaria é, ao que parece, uma activista da liberdade de expressão, bem como uma importante colaboradora de uma ONG que se dedica a proporcionar o reencontro de crianças abandonadas com as suas famílias. J. K. Rowling vai receber o prémio numa gala no Museu de História Natural, em Nova Iorque, a 16 de maio.
Quando comecei a ir à Feira de Frankfurt, tive várias reuniões com representantes de uma editora britânica chamada Weidenfeld & Nicolson, editora independente que, como muitas, seria comprada mais tarde pelo grupo Orion e ainda mais tarde pela Hachette (que comprou, julgo eu, todo o grupo Orion). Mas só agora, que leio a notícia da morte de Lord Weidenfeld aos 96 anos, conheço a história deste homem singular que publicou a Lolita de Nabokov no Reino Unido nos anos 1950 (ainda só havia a edição francesa). Era um judeu rico que, fugindo à anexação da Áustria pelos nazis, foi recolhido por cristãos no Reino Unido, onde se tornaria um dos sócios da editora que partilhava com Nigel Nicolson, filho de Vita Sackville-West, autora que pertenceu ao Bloomsbury Group (de que fez também parte Virginia Woolf; diz-se que Vita foi quem, de resto, inspirou Orlando). Weidenfeld foi feito cavaleiro pela rainha Isabel II, era um senhor que dava festas esplendorosas (a ponto de um antigo embaixador dizer que Kissinger e De Gaulle nunca saíam dos seus jantares antes do fim) e também um filantropo até ao fim, pois, quando o Estado Islâmico começou a sua acção terrorista, criou um fundo para trazer refugiados cristãos da Síria, alegando que tinha obrigação de pagar a dívida a quem o tinha salvo dos campos de concentração. Enfim, a Inglaterra fica sem o deão dos seus editores, mas é bom saber tudo o que de bom trouxe ao nosso mundo.
Os filhos de uns amigos portugueses que foram trabalhar para o estrangeiro quando a crise lhes bateu à porta já não falam praticamente português; percebem tudo, e respondem aos pais com monossílabos ou dissílabos internacionais (Okay, Ja, Yes...) ou uns refilares bem lisboetas, mas entre eles e na escola já só comunicam em inglês, pelo que vão provavelmente esquecer a língua materna não tarda nada Acontece muito a quem vive e estuda fora desde pequeno e, mesmo que seja uma pena – eu cá sempre adorei o bilinguismo –, é quase inevitável. Nos EUA, onde há muitos luso-descendentes, mais concretamente em Brockton, no Massachusetts, uma escola resolveu, porém, tentar emendar a mão. Num programa que contempla exclusivamente crianças oriundas de famílias de expressão portuguesa, experimenta-se agora aquilo a que a directora chama a «imersão» no português, leccionando metade das disciplinas na nossa língua e a outra metade na língua do país de acolhimento e promovendo, assim, o verdadeiro bilinguismo. A proposta pareceu agradar a vários pais, pois, ao que leio, vai ser preciso fazer um sorteio para encontrar as 50 crianças felizardas que, divididas em duas turmas, vão poder desfrutar deste ensino bilingue. Talvez seja mais produtivo do que, como vi na Suíça, mandar os filhos aprender a língua dos pais apenas uma vez por semana – e, o que é terrível, no único dia em que não há aulas...
Já aqui trouxe a questão, é um facto, mas quase sempre a restringi aos maus hábitos do nosso pequeno Portugal. A verdade é que a política da borla, ou de fazer trabalhar de borla, no tocante aos escritores acontece pelos vistos em muitos sítios, e o Reino Unido parece ser um deles. O director do Festival Literário de Oxford (FLO), que em vinte anos não recebeu um centavo pela sua participação, explicando que, a princípio, a organização era pequena e não tinha verbas e trabalhou quase por patriotismo, cansou-se – e acaba de se demitir porque o FLO não quer pagar aos escritores convidados. Diz ele que hão-de pagar às senhoras da limpeza, aos designers, aos cozinheiros, aos motoristas, aos assessores de imprensa, enfim, a toda a gente que trabalha para que o FLO seja um sucesso… excepto aos escritores, que são a verdadeira razão do encontro, aquela que fará, na verdade, com que alguém compre um bilhete para ir ao certame. Como diz o senhor Philip Pullman na carta que escreveu a explicar os motivos da sua demissão: Enough is enough. Lá como cá.
Ocorreu no passado mês de Janeiro o centenário do nascimento de Vergílio Ferreira, um dos mais marcantes escritores portugueses do século XX, conhecido sobretudo pelos seus livros Aparição (que fazia parte das leituras obrigatórias no Ensino Secundário, não sei se ainda faz) e Manhã Submersa, mas autor de uma obra extensa e notável que não pode ser esquecida. Das celebrações fazem parte exposições, conferências e também edições novas de alguns dos seus livros. A Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda, distrito de nascimento do romancista, dedica-lhe por exemplo uma exposição de fotografia e uma conferência, e organiza uma viagem literária à terra natal do autor pela mão de António Dias de Almeida. Serão lançados pelos CTT os selos comemorativos do centenário e, no Centro Cultural de Belém, terá início este mês o ciclo «Vergílio Ferreira e Mário Dionísio: Literatura, pensamento e arte», com coordenação da professora Maria Alzira Seixo. Nas Correntes d'Escritas, que decorrem de 23 a 27 na Póvoa de Varzim, a Quetzal assinalará igualmente o centenário. Na Universidade de Évora haverá um Congresso Internacional dedicado à obra de Vergílio Ferreira. O vencedor do Prémio Vergílio Ferreira, que distinguiu já autores de nomeada como Mário Cláudio, Eduardo Lourenço e Lídia Jorge, será entregue a João de Melo em Gouveia a 1 de Março, data em que se assinalam vinte anos sobre a morte do escritor. E tudo isto será pouco para um autor tão grande.
Vivemos numa Europa em decadência, mas ainda é a Europa em que podemos acreditar no Deus que escolhermos ou em nenhum. Na Arábia Saudita, um poeta palestiniano, Ashraf Fayadh, foi condenado à morte simplesmente por renunciar ao islão, e o seu pai morreu de ataque cardíaco ao ter conhecimento da notícia. Centenas de outros escritores juntaram-se então numa acção de protesto a nível mundial para o apoiar, realizando leituras públicas dos seus poemas numa campanha organizada pelo Festival Internacional de Literatura de Berlim. O objectivo principal era pressionar os governos dos Estados Unidos e do Reino Unido para que intercedessem a favor de Fayadh, impedindo que as autoridades sauditas cumprissem a pena. Os poemas foram lidos na quinta-feira 14 de Janeiro em 122 eventos de 44 países numa acção convocada na semana anterior à divulgação do veredicto de um recurso interposto pelo poeta, no qual Fayadh argumentava que a sua condenação fora baseada em alegações falsas ou não provadas. No início do mês, os organizadores do Festival de Berlim enviaram uma carta a Barack Obama, David Cameron e ao governo alemão, assinada por 350 autores e associações, pedindo-lhes que interviessem no caso e que a ONU suspendesse a Arábia Saudita do Conselho de Direitos Humanos. Entre os autores que subscreveram o pedido estavam os prémios Nobel Mario Vargas Llosa e Orhan Pamuk. Até agora, nada. Que bom, enfim, ser escritor na Europa.
O Luto de Elias Gro, romance de João Tordo publicado há cerca de um ano com o selo da Companhia das Letras, foi, curiosamente, escrito por Lars D., personagem do mais recente O Paraíso segundo Lars D., também de João Tordo. Confusos? Não fiquem. O que quero dizer é que, neste novo livro de Tordo que ando a ler – e que tem como personagem Lars D., um escritor doente e terrivelmente amargurado –, aprendemos que ele deixou um livro terminado antes de desaparecer de casa num belo dia e que essa obra tem o título do romance que João Tordo publicou há um ano (e que ainda não li). Esta é, porém, apenas uma marca deste autor que, desde que me lembro, gosta de usar personagens de uns livros noutros livros e de ligar romances que, às vezes, não têm outros laços além de um pequeno pormenor como esse. O Paraíso segundo Lars D. conta a história de uma ausência demasiado presente – a de Lars, um homem de meia-idade que encontra uma rapariga bonita a dormir dentro do seu carro e que, oferecendo-se para a levar à estação de comboios por sugestão da mulher, para que ela encontre um caminho que já perdeu, não mais regressa a casa. É esta mulher abandonada que nos narra a história, não a do que realmente aconteceu ao marido depois de ter saído com a rapariga (essa ser-nos-á relatada por um narrador impessoal numa segunda parte e tem momentos muito fortes), mas a do seu casamento de anos com o escritor e a da grande cumplicidade que encontra num jovem vizinho, estudante de Teologia, com quem acaba por partilhar o drama que está a viver. Um livro sobre o medo e a solidão e sobre a incapacidade que alguns têm de viver a alegria.