Já vos falei por várias vezes aqui no blogue das Quintas de Leitura do Teatro do Campo Alegre, no Porto – um espectáculo maravilhoso em torno da poesia de um ou mais autores, abrilhantado com música, artes plásticas e muito mais, numa ideia original do grande João Gesta. Hoje à noite, estarei lá para uma prestação bastante arrojada, pois será a primeira vez que lerei publicamente num teatro para mais de 300 pessoas textos inéditos (e que não sei se irei sequer publicar alguma vez). De certa forma inspirada (melhor dizendo, incomodada) por manchetes de jornais, notícias que me deixaram terrivelmente triste, não consegui deixar de escrever sobre certos assuntos que, tradicionalmente, não entram na minha poesia, mas que sem querer foram mais fortes e a invadiram. A sessão chama-se A Social-Poesia e inclui poemas sobre a guerra na Síria, a crise que levou para a rua prostitutas que já tinham conseguido um emprego mas que entretanto o perderam, a violência doméstica, as grávidas com fome ou a história de uma criança que ficou sem almoço por atraso na mensalidade numa escola do Algarve. Terei comigo dois diseurs de respeito, Pedro Lamares e Cristiana Sabino, e ainda a ajuda do artista gráfico João Alexandrino (JAS) e do grupo de circo Erva Daninha. Depois das leituras, o palco fica todinho para o enorme Sérgio Godinho e as suas canções. Rezem ou façam figas para que tudo corra pelo melhor.
Por cá, nem todos os prémios internacionais têm peso para os leitores ou influenciam as vendas; é, porém, certo que o Booker Prize sempre conseguiu afirmar-se em Portugal e que os livros que o venceram – livros originalmente escritos em inglês – partem para o mercado com vantagem. Mas há uma ramificação deste prémio para escritores de outras línguas traduzidos em inglês: o Man Booker International Prize – e já o ganharam muitos nomes de respeito, de latino-americanos a africanos e europeus. Este ano, a lista de semifinalistas tem treze títulos – e entre eles estão curiosamente duas obras escritas em português: Teoria Geral do Esquecimento, de José Eduardo Agualusa, e Um Copo de Cólera, do brasileiro Raduan Nassar que, depois de um êxito retumbante com três livros apenas (todos pequenos), resolveu retirar-se para uma fazenda e ser doravante apenas agricultor. Há anos que não escreve uma linha, mas, pelos vistos, só agora tem a sua obra publicada no mercado anglo-saxónico. Ambos os romances terão, porém, muitos adversários à altura, desde a napolitana Elena Ferrante (que está em alta em todo o lado e é responsável por uma verdadeira «febre») ao japonês Kenzaburo Oe, passando pela sul-coreana Han Kang, cujo livro A Vegetariana publicarei em Outubro próximo e é mesmo de leitura imparável e completamente irresistível. No dia 14 de Abril, será anunciada uma shortlist de seis romances e então vamos ver quem fica e quem sai. Se a língua portuguesa permanecer, ficaremos a torcer por ela até ao anúncio do vencedor, a 16 de Maio.
Há tempos assisti a uma conferência brilhante de José Tolentino Mendonça sobre os sentidos e como lhe prestamos tão pouca atenção na actualidade. De todos eles, aquele que mais depressa me consegue transportar ao passado é o olfacto – e gosto muito de ser levada de repente a um tempo antigo ou a alguém que deixei numa outra parte da minha vida por um perfume que, subitamente, se cruza comigo na rua ou por um odor de comida que sobe do meu prato durante um jantar. Estou a ler um livro que associa cheiros a episódios de uma autobiografia, mesmo que entrecortada, e a gostar muito. Chama-se justamente Perfumes e escreveu-o Philippe Claudel, autor de outros livros que me encheram as medidas, especialmente Almas Cinzentas, um dos meus preferidos de sempre. Todas as nossas idades têm cheiros facilmente identificáveis, mas eu, que nasci na capital, nunca me poderia gabar do odor dos pinheiros e das acácias como Claudel, que passou a infância no campo. Já o bafio me diria qualquer coisa (os armários da minha húmida Ericeira nunca lhe escapam), bem como o after-shave que ele associa ao pai barbeando-se na casa de banho e que também eu poderia associar ao meu. Mas há muito mais matéria olfactiva para descobrir nesta pérola literária, sumamente bem escrita, sobre uma vida contada também pelo nariz. A não perder, claro.
Há autores que, além do que escreveram, transpiram simpatia – e Mark Twain é certamente um deles. O número de histórias cómicas a seu respeito é enorme e lembro-me agora de duas. Na minha família, houve sempre fumadores e, como é natural, falava-se de vez em quando em deixar de fumar. O meu pai, que era o mais viciado de todos (fumava quatro maços de cigarros por dia), contava que Mark Twain, que também tinha o vício do tabaco, dizia que era facílimo deixar de fumar, uma vez que ele próprio já o fizera mais de trezentas vezes... Mas há outro episódio que tem ainda mais graça. Num comboio, quando apareceu o revisor, o escritor americano começou a revolver todos os bolsos e não encontrava o bilhete em lado nenhum, começando a ficar realmente aflito. O funcionário, porém, reconheceu-o e disse-lhe que sabia muito bem quem ele era e que não precisava de se preocupar com o bilhete. Ainda assim, Twain continuou desesperadamente à procura e, quando o revisor tornou a dizer-lhe que não era necessário, o escritor explicou-lhe: “Claro que é necessário. Se não encontrar o bilhete, como vou descobrir em que estação devo apear-me?”
Conheço muita gente que se apaixonou pela leitura no tempo em que a Fundação Calouste Gulbenkian tinha bibliotecas itinerantes e corria o país de lés a lés para levar livros a jovens e crianças de terras pequenas que ainda hoje, tantos anos passados, não têm uma livraria. Um desses casos é o de José Luís Peixoto, que me contou como esperava ansiosamente a chegada da carrinha para poder ir buscar mais um livro (e foi assim, se não me engano, que chegou a Dostoievsky). Estamos a milhas desse tempo, com uma rede de bibliotecas públicas apreciável, mas há países em que, infelizmente, não é assim. Li uma notícia sobre uma original biblioteca itinerante na Indonésia, fundada por um homem de 42 anos, pai de cinco filhos. Tratador de cavalos, este homem iniciou a biblioteca com uma doação de cem títulos e percorre as aldeias vizinhas três vezes por semana, levando nos alforges de um dos seus cavalos um número significativo de livros para as crianças. Espera-as normalmente nos intervalos escolares e empresta-lhes o que elas queiram ler. Segundo dados da UNESCO, a Indonésia conseguiu reduzir para metade, entre 2004 e 2010, o número de analfabetos, e certamente pessoas como este senhor fazem todos os dias a diferença. Vai aí uma fotografia para se deliciarem. Boa Páscoa!
Durante o último festival literário a que fui, reparei numa coisa que me causou uma certa inveja: no meio da balbúrdia que era o bar do hotel por aquelas noites, cheio de escritores e jornalistas à conversa, um romancista português sentou-se a um canto com o seu computador portátil e ali esteve a trabalhar toda a noite sem problemas. Eu não sou capaz de me concentrar e escrever ao pé de outras pessoas (embora consiga ler com o barulho de fundo dos jogos de futebol e dos aeroportos, é um facto). Preciso do meu espaço, do meu silêncio, dos meus dicionários, da minha secretária. Às vezes, em férias, levo o computador com boas intenções, mas raramente consigo criar com a calma com que o faço no meu escritório de casa. Ora, sobre este assunto da necessidade de um espaço nosso, escreveu maravilhosamente Virginia Woolf em Um Quarto Que Seja Seu, um texto que reproduz creio que duas palestras numa universidade feminina sob o tema "Mulheres e Ficção". Olhando para o vazio na publicação de textos de mulheres no seu passado, sobretudo mulheres da classe média (uma vez que algumas aristocratas ainda conseguiram publicar alguma coisa), Woolf analisa a circunstância de as mulheres nunca terem tido dinheiro, nem tempo (eram elas que faziam tudo em casa, incluindo educar as crianças) para se poderem dedicar à escrita – e, sobretudo, não terem tido um espaço próprio (e, como eu, ser-lhes-ia francamente difícil escrever no meio da família inteira na sala comum, até porque, para as mulheres, escrever não era nesses tempos coisa muito bem vista; e, além disso, deviam ser interrompidas a todo o instante). O texto foi originalmente publicado no final dos anos 1920 e revisto umas quantas vezes, mas em muita coisa permanece actual e merece leitura atenta. Sim, Mrs. Woolf, precisamos de um quarto que seja nosso!
Desde há vários anos que a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) promove anualmente o Prémio Autores, que abrange as áreas da música, do teatro, da televisão, das artes visuais, da rádio, do cinema, da dança e, evidentemente, da literatura. Este ano, fiquei muito contente por saber que João Pinto Coelho, o grande pintor dos Extraordinários e autor do fenomenal Perguntem a Sarah Gross, está nomeado na categoria de Melhor Livro de Ficção Narrativa (espero que ganhe, claro, embora Cristina Carvalho, outra nomeada, já tenha sido finalista noutros anos e a SPA não deva ser sádica). Contenta-me ainda que um livro infantil delicioso de que aqui falei, A Cantora Deitada, de Sandro William Junqueira com ilustrações de Maria João Lima, esteja entre os finalistas na categoria de Livro Infantil, tal como A Palavra Perdida, de Inês Fonseca Santos. E, por fim, adoro que Persianas se encontre nomeado em Poesia, pois gosto muito de Miguel Manso que, além do mais, sabe ler alto poesia muito bem. Os vencedores do prémio vão ser anunciados mais logo no Teatro D. Maria II e a gala vai ser transmitida em directo na RTP2. Não percam.
Hoje é Dia Mundial da Poesia e, como poeta que também sou, não podia deixar de saudar as milhentas iniciativas por esse País fora a favor da bela poesia. Não queria, de resto, escolher nenhuma, mas, por ser igualmente letrista, o meu coração inclinou-se de repente para uma actividade que decorrerá hoje, pelas 19h00, na Biblioteca Municipal de Oeiras, organizada pelo jornalista João Morales, que gosta tanto de letras como de música. Então, convido os leitores deste blogue a assistirem a uma viagem de som e imagem em torno de Poesia Portuguesa Musicada, na qual se recolhem e mostram encontros felizes entre poetas e músicos de diferentes géneros e períodos. O cartaz já dá uma boa ideia do que se vai passar. E a entrada é livre, não faltem!
Depois de prémios e nomeações várias, Ana Cristina Silva regressa à publicação com um romance, A Noite não É Eterna, cuja acção decorre nos anos de chumbo da Roménia, sob o jugo do ditador Nicolae Ceausescu, com a população enfraquecida pela fome e dominada pelo terror. Seguindo as orientações do Presidente para a criação de um exército no qual os soldados são treinados desde crianças, Paul, um ambicioso funcionário do partido, decide levar de casa o filho de três anos e entregá-lo aos cuidados do Estado. Quando a mãe se apercebe do desaparecimento do pequeno Drago, a culpa e o desgosto já não a abandonarão, bem como o firme desejo de acabar com a vida do marido. Correndo riscos tremendos, Nadia não desistirá, porém, de procurar o menino, ainda que para isso tenha de forjar uma nova identidade, de fazer falsas denúncias, de correr os orfanatos cujas imagens terríveis chocaram o mundo e até de integrar uma rede que transporta clandestinamente crianças romenas seropositivas para o Ocidente. Mas será que o seu sofrimento pode ser aplacado enquanto Paul for vivo? Enquanto o ditador for vivo? Leia para saber.
Soube esta história por um amigo espanhol, que a publicou numa espécie de blogue que alimenta mensalmente e faz o favor de me enviar. O seu texto era sobre as lições de literatura do autor de Lolita numa universidade americana (e ele não considerava Nabokov um grande leitor, embora o considerasse um enorme escritor); mas foi curiosamente um assunto lateral que me prendeu a atenção. Todos já certamente ouviram falar de Robert Louis Stevenson, o autor de livros como a Ilha do Tesouro que, escrito ainda no século XIX, ainda continua a ser lido por muito boa gente e recomendado aos jovens de todo o mundo; e saberão (até porque o cinema é um bom veículo) que foi também autor da novela Dr. Jekyll e Mr. Hyde, a história de um médico que de vez em quando se transforma num monstro psicopata, assumindo uma figura física assustadora e praticando actos malignos. Pois acontece que Stevenson teve no fim da vida um derrame cerebral e ficou com o rosto deformado; e, segundo conta Nabokov nas suas conferências (ao que parece com cumplicidade e ternura), o pobre escritor ficou convencido de que sofrera uma transformação igual à da sua personagem… Um caso em que, pelos vistos, a realidade imitou a ficção.