Amadeo de Souza-Cardoso é seguramente um dos maiores pintores portugueses de todos os tempos; diz quem sabe que, se tivesse nascido noutro país, teria tido um reconhecimento inequivocamente maior do que o que lhe calhou na rifa por ser português. Talvez; mas agora o Grand Palais mostra-o aos franceses numa exposição retrospectiva da sua obra, patente até 11 de Julho, no âmbito das comemorações dos 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) na Cidade das Luzes – o que faz, aliás, todo o sentido, uma vez que Amadeo viveu ali e que a capital francesa deu, segundo o director da delegação em Franca da FCG, João Caraça, «um contributo inestimável para a sua obra». Nós podemos, porém, conhecer esta figura de uma outra forma: falo do romance Amadeo, de Mário Cláudio, vencedor do prémio da Associação Portuguesa de Escritores no ano da sua publicação, e que agora se encontra disponível em várias edições (uma delas em bolso) e também num precioso 3 em 1 que é Trilogia da Mão, o volume que reúne, além desta obra majestosa, outras duas novelas biográficas, a saber Guilhermina (sobre a violoncelista Guilhermina Suggia) e Rosa (a escultora Rosa Ramalha, uma analfabeta que fazia alguns dos Cristos mais fascinantes que já vi). Aproveite.
Há pouco mais de um ano, anunciei aqui que o romance de David Machado Índice Médio de Felicidade ganhara o Prémio da União Europeia para a Literatura. A Europa, apesar de parecer adormecida noutros aspectos, está desperta para reconhecer o talento dos nossos jovens autores. E, desta feita, o projecto Literary Europe Live seleccionou, com o apoio de um grupo de organizações e festivais literários, um outro escritor português para que a sua obra viaje e seja promovida em toda a Europa. Trata-se de Bruno Vieira Amaral, galardoado com o Prémio Literário José Saramago pelo romance As Primeiras Coisas, uma das dez novas vozes escolhidas entre poetas, romancistas, tradutores e ensaístas de vários países europeus, como a Escócia, a Turquia e a Macedónia. Ao longo do próximo ano, o trabalho destes dez escritores será promovido numa série de eventos por toda a União Europeia, estando também prevista a publicação de uma antologia que reúna textos de todos. Uma boa forma de internacionalizar a sua obra e fazê-los chegar a um número maior de leitores.
Quando há epidemia, todos corremos o risco de ficar contagiados. Não sucumbi ainda completamente à febre de Elena Ferrante, mas, sim, estou no bom caminho para apanhar a doença. Li com prazer A Amiga Genial, o primeiro livro de uma tetralogia que conta a história de uma muito singular relação entre Lenuccia e Lila, duas amigas de um bairro pobre de Nápoles, nascidas nos anos 1950 marcados pela Segunda Guerra Mundial e o fascismo italiano, bem como pelo poder das máfias. Elena Greco (a Lenuccia, ou Lenù) é filha de um porteiro e de uma mãe estrábica e coxa que lhe faz a vida negra, apesar de acabar por condescender em que ela prossiga os estudos, depois do pedido de uma professora dedicada. Mas é Rafaella (ou Lina, ou Lila, como lhe chama a amiga), filha e irmã de sapateiros (e como os sapatos são importantes nesta história!), aquela que, pelo seu carácter determinado e a sua inteligência, teria à partida mais condições para singrar na vida (mas a família não pode pagar-lhe a escola – e o que ela aprontou com a professora primária contribuiu para que ninguém se interessasse muito pelo seu caso). Da infância e juventude das duas raparigas – com muitos altos e baixos numa relação que é sempre de dominadora e dominada, queira-se ou não – fala este livro fascinante que tem feito furor em todo o mundo e tornado internacionalmente conhecida uma autora que, como aqui já contei, insiste em permanecer anónima e não dar a cara junto dos leitores. Depois da descrição do casamento acidentado de Lila, vou ter mesmo de ler o segundo volume para saber o que lhe acontece na lua-de-mel.
Já só faltam quatro dias, mas, se vive ou estuda na cidade de Coimbra – ou relativamente perto – tem ainda até final do mês para ver a exposição Obrigatório não Ver no Círculo de Artes Plásticas, que revela obras inéditas da poetisa e artista plástica Ana Hatherly, recentemente falecida. A mostra, que tem como tema central a revolução de 1974 e o período que se lhe seguiu, inclui mais de quarenta exemplares do trabalho poético e visual da autora, abarcando vários períodos da sua carreira, desde os anos 1960 até ao século XXI. Desenhos em grafitti inéditos e pinturas em cartão, objectos provenientes das colecções da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, um avental assinado que a artista usou nas pinturas em spray e a sua máquina de escrever, documentam, entre outros, a centralidade da escrita na obra de Hatherly, poetisa experimental da terceira vanguarda do século XX que trabalhou também em cinema e teve um programa de televisão chamado Obrigatório não Ver (daí o título da exposição). O curador é Jorge Pais de Sousa.
Quem tem a minha idade ou mais – mas também quem tenha pais que compravam livros e liam regularmente – lembra-se seguramente dos Livros RTP, uma colecção de obras portuguesas e estrangeiras que a Rádio Televisão Portuguesa criou com a Editorial Verbo quando eu era jovem e na qual li, por exemplo, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, ou Aparição, de Vergílio Ferreira. Estava a coisa mais ou menos esquecida quando a nova direcção da televisão pública decidiu reavivá-la e, por isso, desde ontem que temos de novo à disposição os Livros RTP, colecção hoje dirigida pelo meu querido colega Zeferino Coelho, da Editorial Caminho, na qual se publicará o essencial da ficção do século XX, metade em português, metade em tradução. Iniciada com dois títulos poderosos – Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago (que conta justamente com prefácio de Zeferino Coelho, o seu editor de uma vida), e A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, vencedor do Nobel da Literatura há poucos anos (este será prefaciado por António Mega Ferreira), a colecção promete alimentar-se todos os meses com mais livros, que estarão à venda em banca e nas livrarias por apenas 10 Euros. E nós desejosos de lhes deitarmos a mão e matarmos saudades, até porque as capas novas piscam curiosamente o olho às antigas.
Depois de agraciada com um dos mais importantes prémios nacionais de ficção – o Grande Prémio de Romance e Novela da APE-DGLAB – pelo seu romance de estreia (Que Importa a Fúria do Mar), Ana Margarida de Carvalho regressa aos escaparates com uma nova ficção suculenta intitulada Não Se Pode Morar nos Olhos de Um Gato, apropriando-se (e bem) de um verso de Alexandre O’Neill. Desta feita, a acção decorre em finais do século XIX, quando, apesar de abolida a escravatura, continua a haver navios negreiros e transporte clandestino de negros nos porões. Um grupo de passageiros brancos, entre os quais um padre e uma antiga traficante de escravos, e alguns tripulantes terão, de resto, de conviver de perto com alguns destes negros e ganhar-lhes a confiança na sequência de um acidente que o navio tem ao largo do Brasil. Encurralados numa praia, a relação de forças e poderes inverter-se-á? O que aconteceu a este grupo de pessoas será realmente o pior que lhes podia ter acontecido – ou, afinal, serão as memórias do passado de cada indivíduo ainda mais negras e soturnas do que esta espécie de prisão? Nada se pode revelar do espantoso romance que será apresentado mais logo por Francisco Louçã. O convite aí vai, apareçam!
Se toda uma família é inequivocamente bem-sucedida, é natural pensar que os pais têm alguma coisa que ver com isso. Os pais e… os livros. Leio no El País uma interessantíssima reportagem sobre os geniais Martinón Torres, sete irmãos espanhóis nascidos entre 1971 e 1982, filhos de um pediatra e de uma enfermeira, que são todos uns craques na actualidade e nasceram numa casa que tinha uma biblioteca de 20 000 volumes (o pai era bibliófilo) ocupando um andar inteiro. Nunca foram forçados a ler, a leitura pareceu-lhes uma consequência natural nessa casa onde passaram a infância e puderam viver aventuras épicas sem ter de ir muito longe. Entre um catedrático de Arqueologia na Universidade de Londres, uma paleoantropóloga de renome com trabalho assinalável por todo o mundo, dois pediatras, um dos quais uma referência em vacinação infantil, uma geriatra com uma tese de doutoramento sobre a velhice nos quadros de Velásquez, um gestor e um director de comunicação, há de tudo um pouco nesta família de cérebros – e todos leram muito desde pequenos, o que ajuda a compreender o nível a que chegaram nas respectivas profissões. Para quem se interesse, aqui vai o link para o artigo completo. Vale bem a pena.
Perder um filho é provavelmente a maior dor que se pode sentir. Mas a dúvida que recai sobre um casal que, desconhecendo o paradeiro da filha, nunca sabe realmente se a perdeu para a morte é o tema central de Um Postal de Detroit, de João Ricardo Pedro, romance que parte do desastre ferroviário de Alcafache, em 1985, no qual, a seguir ao choque frontal de dois comboios, as carruagens se incendiaram, tornando impossível identificar muitos dos corpos carbonizados. Marta iria num desses comboios? Numa das composições foi encontrada a sua mochila – e o cartão de estudante de Belas-Artes permitiu à GNR saber a quem pertencia e avisar os pais. Mas não estava lá a sua carteira, nem o passaporte, nem os outros documentos. Talvez Marta tivesse sobrevivido e seguido viagem – incerteza que atravessa todo este romance maior da língua portuguesa e afecta também o seu narrador, um rapaz que idolatra esta irmã especial que tinha, pelos vistos, uma vida algo misteriosa que ele gostaria de poder desvendar. O lançamento é mais logo, com apresentação do cineasta Luís Filipe Rocha. Não falte.
Muito se falou já no poder empático da literatura, veículo criador de laços que permitem ao leitor experimentar emoções e sentimentos fictícios e senti-los na própria pele como se fossem reais. Esta capacidade transformadora dos livros levou recentemente a que se associassem médicos e bibliotecários ingleses para receitar livros de ficção, poesia e auto-ajuda a doentes com depressão e ansiedade, em vez de lhes ser administrada outra medicação que pode ter efeitos secundários bastante mais nocivos. Com o apoio do Estado e a colaboração de associações de bibliotecários em todo o país, os médicos preparam-se para enviar os seus doentes com uma receita de leitura à biblioteca mais próxima da sua residência, na qual terão acesso imediato à obra recomendada. A lista, elaborada pela Reading Agency, inclui títulos muito variados e tem uma secção especial de obras humorísticas para «animar» os mais deprimidos.
Uma grande capa para um grande livro? Pois, nem sempre acontece, mas desta feita parece que tivemos mesmo sorte. Falo de Os Dez Livros de Santiago Boccanegra, de Pedro Marta Santos, jornalista, autor e guionista que esteve entre os autores finalistas do Prémio LeYa com este romance admirável e ainda pouco conhecido, mas que recomendo vivamente: imaginativo, informado, com diálogos inesquecíveis e personagens geniais (entre as quais Santiago Boccanegra, o protagonista), ninguém ficará indiferente a esta prosa cuidada e original e a uma história com recuos e avanços que nos levará a uma espécie de apocalipse cada vez mais plausível nos tempos que correm. Hoje vamos apresentá-lo ao fim da tarde aos leitores do Porto, que também merecem ouvir António-Pedro Vasconcelos pronunciar-se sobre esta obra que, tenho a certeza, há-de dar que falar. Se estiverem por perto, não faltem.