Andava eu à procura de um poema de João de Deus na Internet (mais propriamente, «Ceguinha», texto que conheço desde a infância mas do qual a minha memória perdeu algumas quadras), quando o motor de busca me conduziu a uma página muito curiosa – na verdade, um site sobre a deficiência visual. Entre várias opções mais prosaicas, que se prendiam com a saúde dos olhos, uma delas indicava «Cegueira e literatura»; e, ao clicar, descobri uma extensa lista de obras literárias que de algum modo se relacionavam com o problema da cegueira: A Aventura de um Míope, de Italo Calvino, Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, A Colecção Invisível, de Stefan Zweig, A Sinfonia Pastoral, de André Gide (e que lindo que é este livro!) e outras coisas mais evidentes, como a autobiografia de Helen Keller ou a obra de António Feliciano de Castilho; e, bem entendido, também o poema de João de Deus que procurava. Mas há ali mais de 300 títulos, alguns ainda não traduzidos em português, livros de agora e de todos os tempos; e perguntei-me quem conseguiu coligir tantos livros que falam de cegos, têm cegos como personagens ou evocam, mesmo que apenas de raspão, a cegueira. E também pensei que, paradoxalmente, talvez os maiores interessados em lê-los sejam justamente os que não o podem fazer, o que é realmente muito injusto. Para quem queira consultar, aqui segue o link:
Ao enviar-me mensalmente o seu «Abecedário do Leitor», o meu amigo Adolfo García Ortega ensina-me muitas coisas sobre livros e relembra-me outras tantas, algumas enterradas nos confins da memória. A última tinha que ver com um certo conto de Georges Perec chamado «A Viagem de Inverno» que li na saudosa Ficções, revista de contos dirigida por Luísa Costa Gomes que, infelizmente, deixou de ser publicada há muito. O enredo era fascinante: a história de um literato que encontra na casa de campo de uns amigos um livro de um escritor chamado Hugo Vernier, de quem nunca ouviu falar, e se sente imediatamente atraído pelas primeiras páginas; lê-o de ponta a ponta nessa noite, mas tudo aquilo lhe soa estranhamente familiar, chegando à conclusão de que o texto é uma espécie de soma de versos de poetas famosos, como Lautréamont, Verlaine, Rimbaud e muitos outros. Põe a hipótese de Vernier ser um impostor, mas, ao consultar a sua biografia no volume que tem em mãos, descobre que nasceu muito antes dos «seus» poetas… Será então Vernier um génio desconhecido e plagiado por tantos grandes poetas que, por razões óbvias, nunca referiram o seu nome? O professor está obviamente interessado em saber mais, mas, quando se prepara para ir à biblioteca no dia seguinte, é levado de surpresa para um quartel (estamos em 1940) e só volta depois do fim da guerra (onde nunca esquece, porém, o assunto). Quando em 1945 tenta recuperar o livro – que não encontra em biblioteca nenhuma –, sabe que a casa dos amigos foi destruída pelos bombardeamentos… E, incapaz de cessar a investigação, acaba louco, internado num hospício. Embora a literatura seja sobretudo linguagem, como dizem alguns (e têm razão), quem consegue criar um enredo destes já tem a vida muito facilitada. Às vezes, os contos têm enredos bem melhores do que certos romances. E Perec consegue neste seu conto uma contenção que em certas ficções mais longas faz muita falta.
Entre hoje e dia 1 de Abril, realiza-se em Castelo Branco o Festival Literário Fronteira, segundo os seus organizadores, «para discutir o futuro e a esperança, o papel do público e o dos líderes, a forma como vamos relacionar-nos em sociedade daqui em diante, fazendo pontes com a literatura». Haverá debates, lançamentos de livros, entrevistas de vida, leituras de poesia, visitas a escolas e, claro, uma feira do livro, até porque muita gente vai querer autógrafos dos autores convidados, entre os quais se contam Álvaro Laborinho Lúcio, Fernando Pinto do Amaral, Kalaf Epalanga, Patrícia Portela ou Rui Cardoso Martins. Mas o ponto alto parece ser a sessão que juntará os actores Lídia Franco e Vítor de Sousa, que falarão dos muitos projectos em que participaram lado a lado e das suas memórias mais gratas na televisão e nos palcos. Se estiver por perto, não falte. A programação completa pode ser descarregada no link abaixo. Viva a descentralização.
A América culta ficou em choque quando Donald Trump propôs, recentemente, acabar com as agências de apoio às Artes e Humanidades e não as contemplar, pura e simplesmente, no orçamento. É o primeiro presidente a fazê-lo desde que estes apoios foram legislados por Lyndon Johnson, em 1965, que declarou que qualquer civilização desenvolvida deveria valorizar as artes e a cultura em geral. Era com uma «pequena» fatia (300 milhões de dólares) do orçamento que, há décadas, os museus compravam obras de arte e muitas instituições concediam bolsas a músicos, escritores, pintores e estudiosos. Mas, embora o Congresso tenha ainda uma palavra a dizer e nada esteja decidido, há gente boquiaberta em todos os quadrantes, até porque a filha de Trump é mecenas de artistas há muito tempo e a mulher do vice-presidente uma pintora. Os grupos que serão lesados fazem agora lobby junto dos Republicanos para que estes não votem na supressão destes agentes culturais; além do mais, alguns alegam que está em causa a preservação da própria história americana (há muitos museus que precisam de verbas para digitalizar cartas, fotografar uniformes, registar textos escritos relativos às guerras, etc.). Enfim, só o PEN Club já conseguiu 200 000 assinaturas numa petição para a conservação das agências, com a assinatura de muitos escritores de todo o mundo. Mas será que vai ajudar?
As novas tecnologias favorecem uma comunicação demasiado rápida, mais reactiva e menos ponderada. Mas até um simples tweet ou um comentário no Facebook deve ser muito bem pensado antes de registado no mural. Um pequeno engano pode gerar uma autêntica desgraça para o seu autor – e, mesmo que ele dê pela calamidade e o oculte ou elimine, a verdade é que nuns segundos já poderá ter sido lido por muita gente. Uma autora de livros de cozinha do Reino Unido, chamada Jack Monroe (parece nome de homem, mas é uma mulher), que é também uma activista política e, ao que se diz, provocadora, ganhou recentemente um processo judicial que interpôs contra uma senhora que a terá difamado no Tweeter. Katie Hopkins, colunista digital, escreveu – em pouquíssimos caracteres, claro – que Jack Monroe teria sido vista a vandalizar um memorial de guerra quando, na verdade, tinha sido outra escritora a fazê-lo. Jack Monroe, que é parente de militares, sentiu-se ofendida, mas Katie, em lugar de se retractar, achou que um tweet era coisa insignificante e não pediu desculpa pelo engano. Resultado: teve de passar por um processo judicial que levou dois anos e foi condenada a pagar uma indemnização de 300 000 libras, embora Jack Monroe diga que não lhe guarda rancor e a queira convidar para jantar (mas Katie deve estar sem apetite). Bem, da próxima vez que escrever nas redes sociais ou até um comentário aqui no blogue, o melhor é pensar bem nas consequências antes de carregar na tecla ENTER. É que uma coisa destas, nos tempos que correm, pode acontecer a qualquer mortal.
Há algum tempo, depois de a Hungria anunciar que iria construir um muro para conter a entrada de refugiados, uma escritora convidada para um festival literário em Budapeste pôs a hipótese de desistir da sua participação por se encontrar nos antípodas dessa decisão. Estava, obviamente, no seu direito, embora os organizadores do dito festival pensassem muito provavelmente como ela e não devessem ser os mais castigados com a sua ausência. Num interessante artigo publicado no Guardian, diz-se que os activistas políticos tentam frequentemente convencer os escritores e artistas a boicotar determinados certames, enquanto os organizadores alegam que, se eles lá forem, há uma maior probabilidade de se debaterem questões fundamentais e de se denunciarem situações inaceitáveis. Por outro lado, também há quem acuse certos países de realizarem eventos considerados plurais, com gente de todo o mundo, só para fingirem que são abertos e liberais quando, no fundo, tudo não passa de uma fachada; mas um estrangeiro recusar um convite para falar num país em que os locais não podem abrir a boca não será colocar mais um tijolo na barreira à liberdade de expressão? Um filósofo inglês que fez várias palestras sobre liberdade de expressão num país em que há censura ficou a perguntar-se se valeu a pena e se o que disse terá tido alguma influência; e acha que não. Como decidir então nos casos em que os direitos humanos não são cumpridos no país que convida? Ir? Não ir?
Num país do tamanho de uma ervilha, como é o nosso, um escritor não vai financeiramente longe (se sonhar com uma casa com piscina, claro), a menos que seja uma estrela televisiva ou consiga ser traduzido no mundo inteiro e vender muitos exemplares da sua obra. Fico, por isso, sempre bastante confusa, e a fazer contas de cabeça, quando, em certos livros norte-americanos (A Vida Amorosa de Nathaniel P., por exemplo) com escritores como personagens (muitas vezes principiantes, apenas com contos e poemas publicados em revistas), aparecem editores a oferecer-lhes adiantamentos que seriam impensáveis no nosso jardinzinho à beira-mar plantado (até referem o número de dígitos). Mas agora caiu-me nas mãos uma lista de obras que custaram milhões aos seus editores – e isto, creio, por terem oferecido a Obama e à mulher quantias astronómicas para escreverem livros. Eu própria publiquei em tempos cá em Portugal a autobiografia de Bill Clinton, mas desconhecia que ele tinha recebido 15 milhões de dólares à cabeça… E que o romancista Ken Follet, num negócio para uma trilogia, ganhou logo ali 50 milhões de dólares; e que João Paulo II (ou o Vaticano, sei lá) foi contemplado com 8,5 milhões de dólares em 1994… Imagino que a autora do Harry Potter também ganhe assim muito dinheiro e, quanto a esta última, talvez tenha feito bem em sair aqui da ervilha onde viveu tantos anos.
P.S. Hoje, se estiver na Figueira da Foz, haverá na Biblioteca uma conversa com os autores Isabel Rio Novo e Paulo M. Morais que promete ser interessante.
Apesar de Sérgio Godinho sempre ter insistido na expressão «escritor de canções», não costumamos considerar escritores aqueles que fazem letras e poemas para serem cantados. Mas a Academia Nobel, ao premiar Bob Dylan com o maior galardão que existe para a Literatura, mostrou que eles têm, afinal, tanto direito a serem denominados escritores como os que se dedicam à escrita de romances, poesia ou peças de teatro. Talvez por isso, foi divulgado com alguma pompa e circunstância na revista The New Yorker que a Biblioteca Pública de Nova Iorque ficará com o espólio de Lou Reed – e quem o anunciou foi a cantora Laurie Anderson, sua viúva, no dia em que Reed, se fosse vivo, faria 75 anos. Por aqui não creio que as nossas bibliotecas se interessem muito ou estejam preparadas para gerir o espólio de um músico: gravações electrónicas, registos em papel, pautas, vídeos e discos sem fim, além de objectos pessoais, fotografias, cadernos… Não temos um grande museu para a música e os músicos, e as nossas bibliotecas olham mais pelos espólios dos escritores à moda antiga. Mas talvez as coisas mudem com a introdução da expressão «escritor de canções» na nossa língua e com o Nobel da Literatura atribuído a um músico.
Li um artigo muito interessante publicado no Dia da Mulher em jeito de homenagem às caras-metades de alguns escritores. Começava por dizer que não é fácil viver com alguém que carrega permanentemente dentro de si histórias e personagens, dedicando menos tempo do que seria desejável à realidade, e que depois passa por frequentes crises de vazio e depressão entre livros. Mas algumas das mulheres mencionadas no artigo não estiveram apenas a tratar da casa e dos filhos, ou a gerir as contas domésticas (também houve mulheres assim, claro); algumas estiveram mais ao lado do escritor do que à sua sombra e foram determinantes para o trabalho dos maridos. A mulher de Tolstoi, por exemplo, copiou nada mais nada menos do que sete versões de Guerra e Paz, e a de Nabokov, além de dactilografar e comentar os seus romances, era a sua motorista particular: levava-o à Universidade num Oldsmobile e ouvia as suas aulas entre os estudantes… Houve ainda tradutoras e editoras entre as mulheres de alguns escritores – a jovem mulher de Dostoiévski tê-lo-á, segundo se diz, ajudado a terminar o original de O Jogador. Nem todas, porém, tiveram a sorte de participar positivamente na vida dos maridos e houve quem tivesse até desistido da própria carreira – como a mulher de Hermann Hesse que, maltratada pelo marido e louca com as suas infidelidades, acabou por deixar de tocar (era pianista) e terminou os seus dias num hospital psiquiátrico.
Um dos segredos do sucesso da Feira do Livro de Lisboa, diz-se, é o facto de acontecer ao ar livre e permitir a quem passa pegar descontraidamente num livro, espreitar, ler algumas linhas, não ter – em suma – medo de mexer, o que nem sempre acontece no espaço mais fechado e formal de uma livraria. E, porque Março é mês de poesia (o Dia Mundial da Poesia comemora-se amanhã), a Casa Fernando Pessoa junta-se à freguesia de Campo d’Ourique e à Livraria Ler (no mesmo bairro) e organiza uma feira do livro de poesia no Jardim da Parada até amanhã, para que aqueles que ali passam (e são muitos) possam folhear e comprar poemas à sua vontade. Mas as novidades não ficam por aí, porque a poesia vai tornar Campo de Ourique um lugar propício para ler e falar de livros, estando previstas oficinas para crianças, música, visitas temáticas guiadas à Casa Fernando Pessoa, leituras de poesia e muito mais. Amanhã à noite, por exemplo, Amélia Muge dará a voz a Ondula como Um Canto, acompanhada ao piano pelo excelente Filipe Raposo. Mais informações no site da Casa Fernando Pessoa.