Começa hoje a Feira do Livro de Braga, que ficará aberta até ao próximo dia 15 de Julho. Daqui a pouco, aliás, vou pôr-me a caminho da capital minhota, pois terei esta tarde uma sessão lá mesmo pelas 18h30: ao lado de Nuno Camarneiro, responderei a perguntas do jornalista Tito Couto sobre se um livro tem um fim ou está sempre inacabado para o seu autor. Noutros dias e a outras horas, será a vez de participarem Frei Bento Domingues, Joana Amaral Dias, João Tordo, Lídia Jorge e Pedro Marques Lopes, entre outros autores convidados. Como é costume, haverá igualmente recitais de poesia, música e teatro, além de exposições, um delas com as ilustrações de Paulo Galindro, Pedro Vieira e Vasco Gargalo. Vários livros, entre os quais Nómada, de João Luís Barreto Guimarães, e Cair para dentro, de Valério Romão, serão apresentados durante a feira, que tem também uma programação especialmente dedicada às crianças, a quem alguns famosos, como Miguel Araújo, Mafalda Veiga ou Capicua vão contar histórias ao vivo e a cores. Como cereja no topo do bolo, a DST, patrocinadora do certame, vai entregar o Grande Prémio de Literatura DST. Venham a Braga!
Há tempos, verifiquei que muitos dos clássicos juvenis foram apreendidos pelas crianças através do cinema, e não através da literatura. A Disney é provavelmente a grande responsável por isso, na medida em que adaptou ao grande ecrã algumas das histórias mais conhecidas de sempre (falo de Cinderela ou A Bela Adormecida, por exemplo, cujos filmes ainda foram feitos no meu tempo); mas o sucesso da indústria cinematográfica com esse tipo de filmes foi tão grande que, a partir de certa altura, os livros que passaram a circular com essas histórias foram sobretudo adaptações das adaptações com a marca Disney, quase nunca com o texto integral... Enfim, o que quero dizer é que a maioria das crianças e jovens (e adultos?) já hoje não sabe, por exemplo, que foram os irmãos Grimm que compilaram muitas histórias de tradição oral como Branca de Neve e os Sete Anões (na origem, alemã) e que outras, como A Gata Borralheira (provavelmente chinesa), já constavam de uma colectânea de histórias de fadas de Charles Perrault de 1697. Do mesmo modo, A Pequena Sereia (A Sereiazinha, quando eu era pequena) e O Soldadinho de Chumbo são histórias originais do grande escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, e A Bela e o Monstro foi assinada por Gabrielle-Suzanne Barbot em 1740! A famosa Alice no País das Maravilhas começou nos livros de Lewis Carroll (e teve já demasiadas ramificações, uma delas num filme de Tim Burton), e As Viagens de Gulliver nem pouco mais ao menos se resumem à estadia de Gulliver entre os minúsculos liliputianos, encontro que corresponde apenas à primeira de quatro viagens do médico de bordo no livro original assinado pelo irlandês Jonathan Swift. Bem, eu sei que é muito difícil combater a imagem com o texto, mas a experiência de leitura das histórias em que os filmes se basearam é realmente fundamental para se conhecer a fundo os clássicos. Mesmo que já sejamos adultos, os livros estão aí para ser lidos.
Já não sei quem era que, quando alguém na minha família se referia a um tipo com pouca sorte como "coitado", imediatavamente ripostava: "Coitado é corno." Não sei se foi por isto, mas, ao crescer e interessar-me pelas origens da língua portuguesa, fiquei com a sensação de que este adjectivo, "coitado", estivesse de alguma forma ligado etimologicamente à palavra "coito" e, nesse sentido, traduzisse o estado de alguém cujo cônjuge tivesse ido buscar parceiro sexual (para o coito, portanto) fora de casa... Não é totalmente mentira: a palavra "coitado" é definida pelo dicionário como "desventurado", "desgraçado", mas também como "homem traído pela mulher"; no entanto, o vocábulo "coitado" não deriva de "coito", como eu pensava, mas do provençal "coitar" (desgraçar, magoar, causar "coita", desgosto, a alguém), que, por sua vez, provém do latim vulgar "coctare", que significa empurrar, impelir, obrigar, violentar (mas não tem a ver com o "coito", insisto, embora assim de repente pudesse parecer que sim, tantas são as confessadas relações sexuais forçadas em todas as épocas e geografias). O "coito", ao que parece, vem, porém, de "coitus", que é qualquer coisa como unir-se, juntar-se (é isto a cópula, enfim) e, na origem, "ir na companhia de". Já o "coito" de quando se joga às escondidas (que estranho pensar hoje a quantidade de vezes que gritei "Coito!" na infância....) tem a ver com segurança (com "acoitar", estar protegido), embora se possa sentir "acoitado" um homem cujo coito corra bem, digo eu, e sobretudo com a legítima, para não se tornar "coitado". A língua portuguesa, já dizia o outro, é muito traiçoeira.
Existem muitos escritores que são adorados, tanto em vida como depois da morte. Enquanto viveu, Oscar Wilde teve uma época de glória, mas também experimentou anos muito complicados: foi humilhado, esteve preso e acabou por morrer relativamente cedo. Conviveu com muitos dos bons e teve um séquito interessante, mas infelizmente foi levado por uma meningite. No entanto, mais de cem anos passados da sua morte (que ocorreu, como a de Eça, em 1900), é ainda um escritor profundamente amado pela sua ironia e um dos mais citados de sempre por causa das suas deliciosas máximas. Nas lojas de recordações do Reino Unido, de resto, há tapetes de rato, canecas de lápis, t-shirts e muitos outros materiais com frases de Wilde, todas magníficas (o difícil é escolher). E o escritor merece esse destaque, pois, mesmo que a sua vida tenha sido interrompida demasiado cedo, o tempo em que cá andou foi usado de forma muito útil para os leitores, desde os mais pequeninos (Wilde escreveu contos memoráveis como o Gigante Egoísta ou O Príncipe Feliz para crianças) aos mais velhos (O Retrato de Dorian Gray, seu único romance), e passou por uma variedade de géneros, desde a poesia, com que começou ainda estudante, à filosofia, ao conto e, sobretudo, ao teatro (onde pôde explorar o seu sarcasmo e o seu cinismo de forma extraordinária). Recentemente, pediram-me que prefaciasse um dos seus contos, O Fantasma de Canterville, e deliciei-me a lê-lo como da primeira vez. Um fantasma inglês com três séculos de idade e cheio de pergaminhos que não consegue assustar o embaixador americano e a sua família e acaba por ser vítima do seu pragmatismo só podia vir mesmo da cabeça do senhor Wilde. A ler este autor, até porque nos põe muito bem-dispostos.
Olá, gente séria, olá, gente que gosta de livros. Espero que ainda aí estejam, pois os leitores estão a diminuir em grande parte do mundo (contou-me uma agente literária que a Alemanha perdeu seis milhões de leitores nos últimos quatro anos) e pode ser que, nas minhas férias, alguns dos Extraordinários tenham decidido virar-se para outra coisa... Eu ainda não, e foi justamente nas férias que li um romance que tinha aqui atrasado e à espera de vez desde Fevereiro. Intitula-se Gente Séria, foi publicado pela Planeta e assina-o Hugo Mezena, um jovem escritor nascido nos anos 1980 que também se tem dedicado ao teatro e à música. Situando a sua narrativa numa terra chamada Benomilde (em que, apesar de bem entrada a democracia, ainda é o padre e a religião quem dão cartas e os pecados ensombram as consciências), o autor coloca como narrador um rapazinho temente a Deus, filho único de um casal que decidiu ficar na aldeia a trabalhar para o senhor Rodrigues, cumprindo a tradição do antecessor. É, de resto, esse avô, empregado que sobe na vida a pulso e não quer dever nada a ninguém (nem que lhe devam, claro!), uma das maravilhosas personagens deste microcosmos, a que não falham figuras memoráveis do nosso Portugal pequenino, mas atrevido, grosseiro e até, como na cena que fecha o romance, inesperadamente violento. Destaque ainda para as histórias do tio Alexandre, que desde cedo luta para sair da cepa torta, e das suas mulheres, entre elas a perturbadora tia Mena, que ficou a mancar desde que foi colhida por um comboio e que move os lábios à mesa, mas não reza, intrigando o sobrinho. Feito de pequenos episódios, Gente Séria é um romance muito bonito, que retrata um lugar e as suas pessoas sem paninhos quentes, mostrando como a modernização leva por vezes muito tempo a ser alcançada. Recomendo.
Ao contrário do mau tempo que se tem feito sentir, no ano passado tivemos um calor insuportável que desencadeou, de resto, uma leva de incêndios que dificilmente sairá da nossa memória. Passado um ano, a cooperativa artística Arte-Via quis organizar um festival literário em homenagem às vítimas dos fogos florestais, com o alto patrocínio do Presidente da República, nos vários concelhos afectados: Arganil, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Lousã, Miranda do Corvo, Oliveira do Hospital, Pampilhosa da Serra, Pedrógão Grande, Penela, Sertã e Tábua. De hoje até ao dia 18, as Palavras de Fogo (o nome deste Festival Literário Internacional do Interior) vão contar com inúmeros escritores, portugueses e estrangeiros, em mesas-redondas e conversas, bem como com exposições, música, um mercadinho de poesia, caminhadas literárias (a pé), workshops – e muito mais. O programa é extensíssimo – e os escritores irão estar nos mais improváveis espaços, desde fábricas a praias, passando por descampados, o que é, sem dúvida, original (e deve dar umas boas fotografias). Ana Filomena Amaral, da Arte-Via, festeja assim os 18 anos da cooperativa, e conta com a ajuda de Pedro Mexia, José Luís Peixoto e Fátima Cabral nesta programação.
P.S. Amanhã vou de férias e só regresso aqui no dia 25.
Se há coisa que me enerva é ver nos hipermercados meninos e meninas agarrados a livros e os pais a puxarem-nos dali para foram perguntando para que querem eles «aquilo»? Não gosto de me meter na educação alheia, mas lá que dá vontade de dizer alguma coisa e de mostrar que «aquilo» pode fazer toda a diferença, lá isso dá. O problema é que estes pais que não lêem não são os únicos a afastar as pessoas dos livros. Num artigo do suplemento de Economia de um jornal lisboeta em que se falava basicamente de como poupar dinheiro, o autor avançava com várias medidas (sete, ao todo) e, de forma bastante infeliz, na que tinha o número 4, dizia que não devíamos comprar livros… Assim, com todas as letras escarrapachadas. E porquê? Segundo ele, porque, depois de lidos, os livros não servem para nada (ele não consulta nem relê, está visto). Sob o ponto de vista puramente económico, claro que os livros – salvaguardadas as excepções – raramente se revendem e não valorizam com o tempo. Mas dizer preto no branco às pessoas que querem poupar que não comprem livros é uma afronta. Eu dir-lhes-ia que comprassem menos roupa, ou andassem mais a pé para poupar gasolina, por exemplo; até poderia dizer-lhes que a versão digital de um livro custa menos que o livro em papel, mas escrever que não devemos comprar livros é igual a levar os filhos da secção de livros do hipermercado para a peixaria – anda e larga «isso», que não serve para nada! Uma lástima.
Há muitos anos, quando era professora de Francês, pendurei à frente do quadro um grande mapa de França – um mau mapa, confesso, porque era apenas o contorno do país e, lá dentro, uma bolinha preta no lugar da capital a dizer Paris. Assim que me voltei e disse que aquele era o mapa de França, um aluno perguntou: «Eu estou a ver onde está Paris, mas onde é que está a França?» Mais tarde, noutra escola, precisei de um mapa-múndi e, quando o tinha todo esticadinho à frente dos alunos, houve uma miúda que comentou, espantada, olhando as margens esquerda e direita do mapa: «Eu não sabia que havia dois Oceanos Pacíficos…» (e eu a seguir fiz uma espécie de cilindro para lhe explicar que, enfim, a Terra era redonda… Leio nos jornais que 45% dos alunos portugueses do 5º ano não sabem situar Portugal no mapa da Europa – aliás, os títulos dos jornais diziam que eles não sabem situar Portugal na Europa, levando alguns leitores a crer que o situavam na Ásia ou na África, o que não é verdade; o que os meninos não sabem é onde fica o seu país no continente europeu – e, se isso é de facto bastante escandaloso, a verdade é que mais escandaloso ainda é o facto de, muito provavelmente, ninguém lhes ter mostrado o mapa da Europa na escola ou em casa e lhes ter dito que Portugal é o país mais à esquerda… Mas isto não é novo, como atrás mostrei e a seguir confirmo: uma vez, Pacheco Pereira contou-me que estava a dar uma aula numa universidade sobre os regimes do Leste antes da perestroika (penso que o curso era de Relações Internacionais) e que pediu a um aluno que indicasse a Hungria no mapa da Europa. Não só esse estudante não foi capaz de o fazer como quase toda a turma o ignorava…
Quem nos diz quem somos? No romance Fora de Si, Sasha Marianna Salzmann explora esta questão, mostrando como a vida é um imenso desafio e os nossos anseios muitas vezes insaciáveis.
Fora de Si é a história de como alguns episódios do século xx influenciaram decisivamente o novo milénio. Conta a história de quatro gerações de uma família – a história do anti-semitismo latente e indisfarçado na União Soviética; a história da emigração e da esperança de uma vida melhor num país estrangeiro; a história de uma geração educada no país de acolhimento que perdeu o rasto da pátria e procura, mesmo assim, um lugar de pertença; a história de uma busca: de um irmão gémeo desaparecido, de auxílio, de identidade e, claro, de resposta para a pergunta: quem somos?
O romance vai de Odessa, na época da Revolução Russa, até Istambul, nas vésperas do golpe de Estado de 2016. E é absolutamente maravilhoso. A tradução é de Paulo Rêgo. (Para os mais distraídos: não percam os gémeos na base da capa: é dos seus cabelos que partem as aves.)
A 6ª edição da Noite da Literatura Europeia, organizada pela EUNIC Portugal, realiza-se amanhã, entre as 18h00 e as 23h30, na zona do Bairro Alto, em Lisboa. Além da novidade de um espectáculo de abertura no Liceu Passos Manuel – a associação cultural Miso Music Portugal e a Companhia Maior apresentam um «coro falado» a partir de um conjunto de poemas de autores portugueses –, haverá como sempre leituras de 10-15 minutos de excertos de obras de 14 países em vários espaços entre a Rua do Século e a Calçada do Combro (ah, e a entrada é livre!). Estou especialmente contente por ter sido escolhida pelo Goethe Institut este ano uma autora alemã que acabo de publicar (o seu livro intitula-se Fora de Si e está apenas há uma semana nas livrarias). Trata-se da ficção de estreia de Sasha Marianna Salzmann (na imagem é a última da terceira fila a contar da esquerda), conhecida sobretudo pela sua obra para teatro, multipremiada; mas desse suculento romance falarei na segunda-feira, para não estragar o prazer de quem queira ir ouvir os excertos em português para lhe tomar o gosto, excertos esses que serão lidos pela actriz Patrícia André numa sala maravilhosa da Secretaria-Geral do Ambiente. Bom fim-de-semana!