Desculpem chover no molhado, mas tenho esperança de que, debaixo do molhado, haja uma pedra (e água mole em pedra dura tanto dá até que fura). Não aguento mais crianças e adolescentes agarrados a um telemóvel sem trocar um olhar com as pessoas que lhes fazem perguntas ou falam com eles. Passei o Verão a assistir a cenas deste tipo: pais que estão à mesa a querer saber o que querem os filhos comer, e filhos a responder olhando para o estupor do ecrã; grupos de crianças que, em vez de brincarem umas com as outras e irem ao banho, estão mergulhadas num qualquer interminável jogo; rapazes que já tinham idade para ter juízo (16, 17 anos) a quem os pais perguntam com jeitinho, como se tivessem de pedir licença, se eles poderiam desviar só um minutinho os olhos do telefone e tomar atenção. Aquilo é uma droga, convençam-se. É uma dependência. Se alguém que tenha filhos pequenos me está a ler, por favor, doseie o uso dos aparelhos nas mãos da criançada. Nos EUA, a Direcção-Geral de Saúde afirma que já só 33% das crianças e adolescentes são fisicamente activos (não se mexem, daí a obesidade gritante) e que passam em média sete horas e meia diante de um ecrã (sete horas e meia significa a maior parte do dia útil). Pior: diz que existem no cérebro das pessoas umas sinapses que não estão a ser usadas neste tipo de leitura (em papel, sim) e que «if you don't use, it, you loose it»; por isso, se isto não parar, em duas gerações a humanidade será incapaz de ler livros... Por favor, façam como eu, chovam no molhado. Sejam contra o uso exagerado destes aparelhos e contra a dependência dos mesmos.
«Felizmente, existem os livros. Podemos esquecê-los numa prateleira ou num baú, deixá-los entregues ao pó e às traças, abandoná-los na escuridão das caves, podemos não lhes pôr os olhos em cima nem tocar-lhes durante anos e anos, mas eles não se importam, esperam tranquilamente, fechados sobre si mesmos para que nada do que têm dentro se perca, o momento que sempre chega, aquele dia em que nos perguntamos, Onde estará aquele livro que ensinava a cozer os barros.» A frase, absolutamente maravilhosa, é de José Saramago e pertence ao romance A Caverna, o primeiro que o escritor publicou depois de vencer o Nobel da Literatura, há vinte anos; foi recentemente partilhada por um jovem escritor no Facebook que me deu a ideia de a partilhar também. Além de tudo, fez-me lembrar os anos em que eu fazia a Feira do Livro de Lisboa dentro do stand, atrás do balcão, e numa bela tarde uma senhora, que quase de certeza nunca entrava em livrarias por se sentir intimidada, chegou ali ao parque, viu aquelas casinhas, tomou coragem, aproximou-se e disse, a olhar para mim: «Ó menina, tem algum livro que ensine como se deitam os canários?» Eram outros tempos. Boas recordações.
Quase toda a gente conhece J. D. Salinger pelo seu famosíssimo romance À espera no Centeio e também por, apesar do seu sucesso, se ter retirado cedo do mundo da escrita. Um dia destes, tirei um livrinho dele da estante, publicado há muitos anos pela velhinha Quetzal, e li Carpinteiros, Levantem ao Alto o Pau de Bandeira, seguido de Seymour, Uma Introdução, duas pequenas novelas publicadas originalmente na revista New Yorker e só em 1963 saídas em livro. Trata-se de histórias da família Glass (de que há outras) contadas por um dos membros (Buddy, que se diz ser um alter ego do escritor) sobre o seu irmão mais velho, Seymour. A primeira decorre em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, quando Buddy está de licença para assistir ao casamento do irmão com a jovem e apaixonada Muriel, mas Seymour não aparece (há indícios de que é, de resto, algo desequilibrado pela leitura de excertos do seu diário e pelas estranhas atitudes relativamente à noiva e não só); a segunda fala do suicídio do mesmo Seymour já em 1948 (os índicos comprovam-se) e constitui uma espécie de apresentação da personagem feita por Buddy. Salinger influenciou gerações de escritores americanos, mas estas duas peças são mesmo diferentes de tudo o que li até hoje, e nem consigo dizer se gostei muito, achei-as estranhas, é um facto, mas isso não é necessariamente bom nem mau.
Num país como o nosso é muito difícil os projectos culturais com poucos meios vingarem, mas a verdade é que a revista Nervo está aí com o seu terceiro número para provar que com muito trabalho e empenho tudo se consegue. Com o propósito de «divulgar a poesia contemporânea, nos seus diferentes estilos e linguagens, e partilhar a actualíssima visão do mundo dos nossos poetas», este terceiro Nervo apresenta textos de alguns nomes bastante conhecidos como Helder Moura Pereira, Carlos Bessa e Manuel Gusmão, ou mesmo Maria Quintans e Manuel Halpern (entre outros). E dá lugar aos estrangeiros Alessandra Racca (Itália), Amosse Mucavele (Moçambique), Hussein Habasch (Síria) e Pablo García Casado (Espanha) com as traduções de André Domingues (língua espanhola), Francesco Selva (língua italiana) e Isilda Ribeiro (língua inglesa). O design de todo este número, incluindo a magnífica capa, é da autoria do artista plástico Daniel Garcia. Para quem queira participar no próximo número (já para 2019), os contactos da revista são:
Numa noite de lobos em que todos rezam a Santa Bárbara e os mais velhos recordam uma tragédia antiga, chega misteriosamente à aldeia um estrangeiro e a sua filha Maddalena. Nessa mesma noite, a criada do solar vem chamar a parteira para que acuda à sua senhora, e Celeste nascerá pouco depois, ignorando que a solidão rodeará grande parte da sua vida. No Fundo do Lugar, onde a água da chuva irrompe em ondas pelas casas mais pobres, é a vez de Samuel – o que desenha bichos no chão dos quintais e imita o canto das aves – temer, como sempre, pela vida da mãe. Maddalena, Celeste e Samuel são os lados desiguais do triângulo donde brotam os fios desta história, contada por três mulheres que se assemelham a fiandeiras do tempo: Antónia, a viúva que tricota camisolas e mantas, acrescentando dias à vida de cada um; Violeta, a que apara nas mãos os filhos da terra e guarda segredos tristes numa gaveta; e Emília, a que ouve em sonhos o afiar de facas e calcula os caminhos que a morte escolhe percorrer. Os Fios, romance de estreia de Sandra Catarino, lindo e imperdível, combina a crueza do meio rural com um lirismo inesperado que torna esta narrativa mágica e poderosamente empática. Acaba de sair e recomenda-se.
Hoje começa a Feira do Livro do Porto e a verdade é que parece bastante mais rica em termos de programação do que foi a de Lisboa (o que certamente se deve a Anabela Mota Ribeiro e José Eduardo Agualusa, convidados para organizar as actividades e moderar algumas conversas). Celebrando o 50.º aniversário do Maio de 68 e outras revoluções e revoltas, o certame durará até dia 23 e terá muitos convidados de peso, também estrangeiros, entre eles Leila Slimani e Daniel Cohn-Bendit, que conversará com Rui Tavares sobre as manifestações estudantis que viveu pessoalmente em Paris. Haverá debates, leituras de poesia, música e até uma residência literária para o autor brasileiro Bernardo Carvalho, que resultará na produção de um conto. Poderemos ouvir, entre outros, Mia Couto, Mário de Carvalho, João Pinto Coelho, Filipa Martins, Francisco José Viegas, Ana Margarida de Carvalho, João Luís Barreto Guimarães, compondo-se neste festival um verdadeiro curso de literatura, que tomará de empréstimo o título de um livro de Italo Calvino (Porquê Ler os Clássicos?) e abordará esta forma de arte maravilhosa desde a Grécia antiga até Fernando Pessoa, passando por Dante, Shakespeare e outros nomes que não morrem. Se estiver pelo Porto e arredores, não perca, vai valer a pena.
O Nobel da Literatura para Bob Dylan foi uma decisão francamente inesperada – muito saudada por uns, muito criticada por outros. É bem possível que essa decisão tenha sido, de resto, o princípio das dissensões no comité Nobel que redundaram em despedimentos e adiamentos. E agora o Man Booker Prize deu um passo igualmente inovador ao introduzir na lista de candidatos a um dos mais importantes prémios para uma obra de ficção em língua inglesa a novela gráfica Sabrina, da autoria do norte-americano Nick Drnaso, autor que já tinha sido bastante elogiado com a sua obra de estreia – Beverly – e, com este segundo livro, chegou definitivamente «ao céu». Tanto quanto percebi, a história tem que ver com o desaparecimento de uma rapariga na sequência de ter combinado com a sua irmã Sandra um fim-de-semana no Lago Michigan; e – entre outras coisas – fala de teorias da conspiração, verdade e mentira, ausência, medo, manipulação tecnológica e redes sociais (na era Trump). Parece-me que pode ser uma obra muito interessante, que recebeu o louvor de numerosos jornais e revistas e americanos e está a ser igualmente bem recebida pela crítica britânica, que a classifica como uma mistura de Don DeLillo com Jim Jarmusch e reconhece a literatura atrás de uma história com palavras e desenhos. É a primeira vez que um cartoonista entra na lista do Man Booker Prize e, mesmo que não passe à shorlist, já entrou para a história.
A minha mãe, quando os netos vão de viagem (e os meus sobrinhos empreendem muitas vezes viagens longas e para sítios distantes, ou para fazerem voluntariado, ou simplesmente para se divertirem), pede-lhes que lhe mandem um postal, postal esse que habitualmente chega a Portugal depois deles, já que os correios nessas paragens (e cá também!) são bastante maus. Já pouca gente envia cartas e postais (manda dizer por SMS que chegou bem, ou telefona, e está o assunto arrumado). Mas é pena, porque um postal é uma coisa mais personalizada e há histórias de postais deliciosas. A nossa Alice Vieira, que recebe quase uma centena de cartas e postais no dia dos seus anos dos seus leitores de várias épocas, pedia aos filhos, quando eles eram pequenos e iam a qualquer lado sem ela, que lhe mandassem um postal, tal como a minha mãe. E, no Facebook, conta que traz sempre com ela um postal que lhe mandou o filho quando foi a um torneio de xadrez em Coimbra, tinha oito ou nove anos. Uma maravilha, não é?
Durante as férias do blogue (e as dos Extraordinários, na maioria dos casos), morreu V. S. Naipaul, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2001 (cem anos depois do primeiro premiado) e considerado um dos maiores escritores britânicos contemporâneos. Nascido em 1932 em Trinidad e Tobago, no Caribe, o autor de Uma Casa para Mr. Biswas, A Curva do Rio (traduzidos em Portugal e publicados inicialmente pelas Publicações Dom Quixote e mais recentemente pela Quetzal) e muitos outros títulos de ficção e não ficção, tinha, ao que se sabe, um feitio impossível e, quando esteve em Óbidos, fez a vida negra ao seu entrevistador, o jornalista José Mário Silva, como este próprio contou a quem não assistiu a essa penosa sessão. Uma das editoras de Naipaul (no fundo, a que o publicou durante mais tempo) diz que ele foi de longe o autor com quem mais lhe custou trabalhar e que, quando Naipaul mudou de editora, ela nunca mais o voltou a ver, apesar das insistências da mulher do escritor; aliás, como revela num artigo do The Guardian, acrescenta, a esse respeito, que «um bom autor não tem de ser boa pessoa» e que, apesar de ele não ser nem de longe um dos autores mais vendáveis do catálogo, a verdade é que os seus livros eram admiráveis. E, a terminar, explica que o grande Naipaul hoje não teria provavelmente a possibilidade de fazer carreira nas letras porque «os editores não podem simplesmente publicar autores que não se vendem»… Tudo certo, mas quem serão então os nobelizados daqui a uns anos? De luto por Naipaul.
Ora então cá estamos (se bem que com pouca vontade, pois a seguir a umas férias relativamente longas nunca me apetece muito trabalhar). E, como é princípio do mês, digo já o que ando a ler e, nos dias que aí vêm, falarei também do que li nestas férias (muitas páginas, mas poucos livros). Agora tenho em mãos a obra originalíssima de um autor de que gosto particularmente – o multifacetado Geoff Dyer, que escreveu também uma maravilha chamada Jeff em Veneza, Morte em Varanasi, romance de que falei aqui no blogue há muito tempo. Neste momento, o livro que me ocupa chama-se Areias Brancas e é um livro de viagens, mas não de viagens no sentido puramente geográfico – embora, claro, se façam deslocações –, antes de viagens para visitar obras de arte em grande escala ou repetir a experiência de algum artista ou escritor desaparecido num local específico. (Até ao momento, apreciei muito o primeiro capítulo, sobre a Polinésia e Gauguin, e o flop do autor e da mulher – de quem Dyer não usa o nome verdadeiro, fazendo dela personagem – na vã procura de uma aurora boreal.) O narrador, que cita profusamente D. H. Lawrence e lhe segue passos e ideias, é profundamente irónico num sentido muito British que estou a adorar. E, já agora, a tradução, publicada pela Quetzal, é de João Tordo.