Antes, mandar alguém para o manicómio podia ser deveras insultuoso, mas deparei recentemente com um artigo de jornal em que um artista se dizia muito contente por ir trabalhar para o Manicómio. Bem, tenho de explicar porquê: é que este Manicómio é um espaço de trabalho conjunto (de coworking, como agora se diz) no Beato, em Lisboa, para artistas e escritores com doença mental; na companhia uns dos outros, seja qual for a área (desenho, escultura, escrita), podem ali criar com dignidade e sem preconceito (e até pedir opiniões ou inspirar-se no trabalho alheio). O projecto foi criado por Sandro Resende e José Azevedo, que trabalharam durante vários anos no Hospital Júlio de Matos com pessoas com «experiência de doença mental», cruzando às vezes os seus trabalhos com os de artistas plásticos de renome (Pedro Cabrita Reis, Jorge Molder...) e artistas internacionais (Kusturica, por exemplo). Segundo eles, a ideia é tirar as pessoas dos hospitais psiquiátricos e integrá-las em espaços de criatividade, recebendo elas além disso um salário pelo seu trabalho. Com este artigo, descobri que a poetisa Cláudia R. Sampaio está neste espaço a desenhar (além de escrever) e que é sua a frase sobre a felicidade de ir para o Manicómio (diz que este é mesmo um bom nome para um grupo de artistas com uma sensibilidade muito apurada). Os seus desenhos são, aliás, bem bonitos (há um vídeo em que a vemos pintar) e estão à venda como qualquer outro objecto artístico, sem preços de favor. Existe ainda a ideia de abrir um restaurante chamado Manicómio neste espaço. O nome é tão bom (ou melhor) do que qualquer outro.
Todos os anos a Sociedade Portuguesa de Autores atribui um prémio de jornalismo cultural àqueles que se dedicam especialmente a divulgar a cultura nos nossos meios de comunicação; e deve estar a fazer mais ou menos um ano que falei aqui de Nuno Pacheco, jornalista do Público que se tem dedicado, entre outras coisas, à divulgação da música portuguesa (e a bater no Acordo Ortográfico, o que também é importante) e foi o vencedor em 2018. Anunciado há dias, o prémio de 2019 irá ser entregue, no próximo dia 7 de Março, ao jornalista Luís Caetano, que é uma voz inconfundível da Antena 2 da RDP. Depois de ter apresentado, com Inês Fonseca Santos, o programa diário Câmara Clara na RTP 2, Luís Caetano é responsável por apresentar na rádio, entre outros, os programas A Força das Coisas, A Ronda da Noite e A Vida Breve. E, além disso, sabe conduzir mesas-redondas e ler poesia, o que não é para todos. Parabéns!
Karl Lagerfeld, o estilista de alta-costura que foi responsável por marcas tão conhecidas como a Fendi ou a Chanel, morreu há mais ou menos uma semana e foi chorado por muitos, incluindo a princesa Carolina do Mónaco, que era sua amiga. Rui Zink, na sua prestação nas Correntes d’Escritas uns dias depois do acontecimento, disse, com o humor de sempre, que a partir de agora já não vai saber como se vestir; mas curiosamente não é a sua roupa (a desenhada por Lagerfeld, entenda-se) que aqui me traz hoje, mas a sua biblioteca. Antes de tudo, é gigantesca, já que compreende centenas de catálogos de colecções; e, formada sobretudo por álbuns (de pintura, arquitectura e design), foi uma exigência do costureiro alemão a colocação dos volumes nas estantes horizontalmente, para a fácil e rápida identificação dos títulos. Com o pé-direito altíssimo, a sala onde foi instalada é quase totalmente preenchida por livros, exceptuando uns sofás confortáveis em que os leitores podem sentar-se a ler e umas escadas para chegar ao topo das estantes. Noutras salas de casa do estilista, também há livros, colocados sempre na horizontal com a lombada para fora. Não sei o que será agora desta colecção de livros de Lagerfeld – e espero que não venham a ser vendidos a peso, como tantas vezes sucede quando as gerações seguintes não ligam aos livros nem têm onde os pôr. E, enquanto não desfazem a biblioteca, deixo-vos algumas imagens para se extasiarem.
Keiko foi sempre estranha – e os pais perguntam-se onde encaixará ela no mundo real. Por isso, quando a rapariga vai trabalhar para uma loja de conveniência, a notícia é recebida com entusiasmo, até porque na loja ela encontra um mundo bastante previsível, que domina com a ajuda de um manual e copiando os colegas até na forma de falar. Mas aos 36 anos é ainda na mesma loja de conveniência que trabalha, e além disso nunca teve um namorado, frustrando as expectativas da sociedade… Embora Keiko não se importe com isso, sabe que a família e os amigos estão mais ou menos desesperados. Um dia, porém, é contratado para a loja um rapaz com o qual Keiko tem algumas afinidades. Não será então aconselhável para ambos um relacionamento? Este é o ponto de partida de Uma Questão de Conveniência, de Sayaka Murata, uma das vozes mais originais e talentosas da ficção contemporânea japonesa. O romance, que foi traduzido em mais de vinte países e vendeu 650 000 exemplares no Japão, é o retrato de uma heroína deliciosa que promete ser tão memorável como Amélie Poulain. Espero que gostem.
Hoje é dia de partilhar a crónica, e desta vez tem que ver com acasos (ou não) que, bem vistas as coisas, se podem tornar desagradáveis. Aqui fica o link:
E, para que não se esqueçam, deixo também o convite para segunda-feira. Trata-se de uma conversa à roda do romance vencedor do Prémio LeYa, Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, na qual participam, além do autor, Ana Sousa Dias e Mirna Queiroz. Apareçam!
Em Portugal, pelo menos até há uns anos, dizia-se que os livros de contos não tinham grande sucesso e os livreiros também torciam o nariz quando publicávamos colecções de contos, a menos que fossem de um autor já celebrizado por romances. Parece estranho, porque para quem, por exemplo, anda de autocarro entre a casa e o emprego, ou tem de esperar na sala do dentista por uma consulta, ou quer ler só umas páginas antes de adormecer, o conto tem o tamanho ideal e podia, por isso, servir os leitores portugueses como serve os norte-americanos, por exemplo, grandes apreciadores das short-stories. Espero que os os hábitos mudem, ou já tenham mudado, pois há contistas que não se podem perder, sendo Borges, por exemplo, um mestre no género, e Cortázar, seu conterrâneo, outro. Os latino-americanos são, de resto, autores de pequenas histórias incríveis e, para os Extraordinários que não vão na conversa da estatística e gostam de ler contos, deixo aqui uma lista de cem que apanhei por aí numa revista de cem contos curtos da literatura universal. Há mesmo muito por onde escolher!
Bem, não consigo esconder que, apesar dos malefícios do turismo para as nossas cidades (e já se estão a ver na expulsão de pessoas das casas que há tantos anos habitavam, por exemplo), gosto muito de saber que lá fora consideram Lisboa e o Porto alguns dos melhores destinos turísticos do mundo; chamem-lhe patriotismo. Um dia destes uma poeta mexicana (Blanca Luz Pulido) mandou-me um artigo que começava assim (não traduzo, pois creio que os Extraordinários perceberão): «En Lisboa todos sus moradores son agradables, son corteses, son liberales y enamorados, porque son discretos.» Julguei que era de agora que falavam quando avancei no texto, toda inchada, e dei com isto: «La ciudad es la mayor de Europa y la de mayores tratos, en ella se descargan las riquezas del Oriente y desde ella se reparten por el universo. La hermosura de sus mujeres admira y enamora.» Oh diabo... Reparando melhor, concluí que estas eram palavras de Miguel de Cervantes, calculem, escritas em Los trabajos de Persiles y Segismundo (1617), romance publicado em Lisboa e Madrid um ano depois da sua morte. Pois parece que o autor do Quixote andou por estas bandas a ver se arranjava um emprego na corte de Filipe II. E esta, hein? Parece que nem os especialistas sabiam quase nada da estância de Cervantes na capital portuguesa que, ao que parece, foi justamente onde se fez escritor. Que orgulho, não? Coisa linda mesmo.
Hoje começam mais umas Correntes d'Escritas. Mas a data é mesmo especial porque se trata do 20.º aniversário deste fantástico encontro de escritores que, organizado pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim com a querida Manuela Ribeiro como «curadora» (e não é que ela cura mesmo de todos os males?), se tornou o festival literário português mais importante do ano, de tal modo que os editores já escolhem publicar no mês de Fevereiro os títulos de autores de línguas ibéricas que têm em carteira. Eu, como editora, terei este ano muitos autores nas Correntes: Mário Cláudio, Isabel Rio Novo, Afonso Reis Cabral, António Tavares e o estreante Itamar Vieira Junior, de cujo romance ontem aqui falei. Mas vou eu própria participar de um diálogo com Luís Carmelo a propósito da minha maneira de escrever e, bem entendido, assistir ao desempenho de tantos e tantos intervenientes dois dois lados do Atlântico. Entre eles, conta-se a minha querida fadista e amiga Aldina Duarte, que também vai cantar mais logo no Teatro Garrett. Para quem esteja por perto, não perca as lindas Correntes. Quem vai uma vez quer ir sempre! Parabéns pelos 20 aninhos! Programa completo no link abaixo.
Hoje começarei o dia com o vencedor da última edição do Prémio LeYa, Itamar Vieira Junior, que vem às Correntes d'Escritas e estará em Lisboa para dar entrevistas e lançar o seu belo e comovente romance. Torto Arado fala de duas irmãs, Bibiana e Belonísia, filhas de trabalhadores de uma fazenda no Sertão da Bahia, descendentes de escravos para quem a abolição é uma data marcada no calendário e nada mais. Intrigadas com uma mala misteriosa sob a cama da avó, pagam o atrevimento com um acidente que mudará as suas vidas, tornando-as tão dependentes que uma será até a voz da outra. Mas, com o avançar dos anos, a proximidade vai desfazer-se : enquanto Belonísia parece satisfeita com o trabalho na fazenda, Bibiana percebe desde cedo a injustiça da servidão que há três décadas é imposta à família e decide lutar pelo direito à terra. Para isso, porém, é obrigada a partir, separando-se da irmã... Para a semana, fazemos uma sessão em Lisboa, que lembrarei oportunamente. Entretanto, o livro está aí para quem o quiser ler.
Aproveito para dizer que amanhã às 15h00 a casa Fernando Pessoa organiza uma visita de uma hora dedicada a pais e filhos, tios e sobrinhos, avós e netos... As crianças irão descobrir a vida do poeta, os adultos os cantinhos à casa. Os mais pequenos pagam 2 euros (na verdade, o preço é esse até aos 12 anos) e os crescidos 4 euros. E o que é mais bonito é que esta actividade de visita à casa, sob marcação, está também disponível para surdos, em língua gestual. As inscrições fazem-se neste link: servicoeducativo@casafernandopessoa.pt