Como ainda estou com o trabalho muito atrasado devido à ausência nas Correntes d'Escritas, junto para se entreterem uma frase maravilhosa de Cervantes que, aliás, deixo em castelhano, pois creio que todos compreendem. Bom fim-de-semana.
«El poeta puede contar o cantar las cosas, no como fueron,
Sino como debían ser;
Y el historiador las ha de escribir no como debían ser,
No regresso das Correntes d'Escritas esperava-me um montão de e-mails a que, de longe, não foi possível dar vazão. Respondi no telemóvel ao que sabia que era mais urgente, mas deixei os outros para ler com calma na segunda-feira. E, no meio desses, comunicavam-me uma coisa surpreendente: que a revista Lux nomeara como personagem masculina do ano na área da literatura Afonso Reis Cabral (além de António Lobo Antunes e José Tolentino Mendonça). Pois bem: eu desconhecia que tal revista falasse de outras pessoas que não actores de telenovela e músicos de sucesso, pelo que a notícia foi realmente inesperada. Mas, claro, fico grata, até porque se 1% das pessoas que lêem a revista ficarem curiosas com a obra do Afonso e lerem um dos seus livros já será bom. Não acredito que ele ganhe (apesar de ser giro e isso contar para a Lux), mas em qualquer caso se algum Extraordinário quiser votar no meu autor, aqui vai o link onde se explica tudo.
Ainda no rescaldo das Correntes, onde tanta coisa interessante se diz sempre, e com o trabalho muito atrasado pela ausência (levei o computador, mas nunca é a mesma coisa), dei com esta frase de um dos meus poetas espanhóis queridos, António Machado: «Se todos os espanhóis falassem apenas do que sabem, e de mais nada, haveria um grande silêncio que poderíamos aproveitar para o estudo.» Notável. É verdade que nuestros hermanos (sobretudo os de Madrid) falam imenso e em voz alta; e aonde quer que vamos nota-se logo onde há espanhóis, pela barulheira que fazem e porque falam espanhol com toda a gente, em Portugal ou em qualquer outro país estrangeiro. Mas, no fundo, a frase de Machado adapta-se a todos os povos do mundo e, em especial, àquelas pessoas que julgam perceber de tudo e têm sempre uma opinião a propósito de qualquer matéria. Eu cá também preciso de muito silêncio para ler e estudar e dispensava alguns conselhos e comentários que vou ouvindo por aí. Todos nós, imagino.
David Machado está de volta com mais um romance depois do Prémio da União Europeia para a Literatura dado a Índice Médio de Felicidade (também adaptado ao cinema) e de Debaixo da Pele, um livro fundamental sobre a violência no namoro com uma estrutura altamente inventiva. A Educação dos Gafanhotos, assim se chama a novidade, é um road book e conta a viagem que David e Marco fazem pelos Estados Unidos quando acabam o curso. São dois jovens recém-licenciados em Economia, com esperança de ficar a trabalhar no país do Tio Sam, mas na verdade gostam é de escrever e, como tal, prometem a si mesmos que tudo o que contarem da sua vida a quem forem conhecendo nessa viagem será ficção pura e dura, tão depressa à Faulkner como à Hemingway, dois autores que adoram. Porém, este salto para a liberdade acaba por ser interompido por um acontecimento que os põe no lugar e os reduz à insignificância de gafanhotos... Bom, divertido, cinematográfico, um excelente retrato da juventude actual. A não perder.
Como todos os anos, lá vou eu mais logo para a Póvoa de Varzim, onde se realiza esse que é o melhor festival de escritores português, o Correntes d'Escritas, e estarei a acompanhar alguns autores que tenho por lá: a catalã Marta Orriols, por exemplo, mas também Isabel Rio Novo, David Machado, o também músico cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa ou mesmo a escritora de viagens Raquel Ochoa. E, como tal, agora só voltará a haver post na segunda-feira dia 24 (véspera de Carnaval), mas deixo-vos já a crónica que habitualmente só chega ao Horas Extraordinárias à sexta. Durante estes dias leiam e divirtam-se!
O nosso Extraordinário Fernando Costa, assíduo frequentador e comentador deste blogue, enviou-me por e-mail um link para um artigo da Sapo 24 que, quanto a ele, merecia ser partilhado aqui no «salão». E merece! Diz respeito a uma proposta feita ao Governo de Moçambique pela Associação dos Antigos Alunos da Escola Secundária Francisco Manyanga para reduzir algumas penas de prisão em, no máximo, 48 dias anuais, especialmente porque os estabelecimentos prisionais se encontram sobrelotados (o que é, como sabemos, um convite a mais violência) e, ao que parece, Moçambique ainda não tem a regra das pulseiras e dos detidos em prisão domiciliária E em que consiste a proposta? Pois bem, pura e simplesmente, em ler! Sim, ler livros. Cada recluso deve ler um livro e fazer por escrito o seu resumo; e, se este efectivamente corresponder à obra, terá menos quatro dias de pena a cumprir. Se ler um livrinho por mês, não só ganhará hábitos de leitura (com tudo o que isso implica para o seu futuro) como ficará menos mês e meio preso. Obrigada, Fernando, pela partilha desta notícia! Veremos o que decidem os governantes moçambicanos.
Na próxima semana, mais precisamente na quarta, começam as Correntes d'Escritas. O programa contém inúmeras actividades ligadas à literatura, desde mesas-redondas a conversas ou idas a escolas. Os nomes dos autores, de todos os cantos do mundo onde se falem línguas ibéricas (e desta vez os catalães vêm em força), ocupam quase uma página de alto a baixo e haverá repetentes, mas também muitos que chegam pela primeira vez. Se estiverem pelo Norte, tirem uns dias para isto; senão, arranjem umas férias. Este festival vale mesmo a pena.
Eco dizia coisas inesquecíveis, entre as quais recordo duas frases geniais. Uma delas dizia respeito ao facto de as redes sociais serem a invenção que deu voz a todos os imbecis que antes estavam caladinhos e inibidos de abrir a boca; a outra que, se a China inteira usasse papel higiénico, já não tínhamos planeta. Mas, no que tem que ver com o que nos une aqui no blogue, li recentemente uma outra, que alguém partilhou no Facebook, que é mesmo interessante para complementar aquilo que há dias escrevi sobre o fio narrativo e a imagem do colar fornecida por Eugénio Lisboa. Ora leiam: «Eu penso que, para criar uma história, é necessário, antes de mais nada, construir um mundo, o mais «mobilado» possível, até aos mais pequenos pormenores. Se eu construir um rio com duas margens e se, na margem esquerda, puser um pescador, se atribuir a esse pescador um temperamento irascível e um cadastro não muito limpo, pronto, poderei começar a escrever, traduzindo em palavras o que não pode deixar de acontecer. Que faz um pescador? Pesca (e eis uma sequência completa de gestos mais ou menos inevitáveis). E depois que se passa? Ou o peixe morde, ou não morde. Se morde, o pescador agarra os peixes e volta para casa todo contente. Fim da história. Se não morde, e dado que se trata de alguém irascível, talvez se encolerize. Talvez parta a cana de pesca. Não é grande coisa, mas já é um começo. Ora, há um provérbio indiano que diz: "Senta-te na margem do rio e espera, o cadáver do teu inimigo não tardará a passar." E se, arrastado pela corrente, passasse um cadáver, já que esta possibilidade está contida na área intertextual do rio? Não esqueçamos que o meu pescador tem um cadastro carregado. Quererá correr o risco de se meter em maus lençóis? Que fará? Fugirá, fingirá não ver o cadáver? Sentirá pesar sobre si todas as suspeitas, pois que, seja como for, este é o cadáver do homem que ele odiava? Irascível como é, irritar-se-á por não ter sido ele a realizar a vingança ardentemente desejada? Como vêem, bastou «mobilar» o mundo com quase nada e logo nasceu o começo de uma história. E também o começo de um estilo, porque um pescador a pescar deveria impor um ritmo narrativo lento, fluvial, o da espera paciente, mas também o dos sobressaltos da sua impaciente irritabilidade. Basta construir um mundo, as palavras vêm a seguir, quase sozinhas: Rem tene, verba sequentur.» Quem sabe sabe.
Este foi um dos livros com os quais mais empatia senti nos últimos tempos e, ao lê-lo, percebi logo que faria tudo para o poder publicar. Trata-se de Aprender a Falar com as Plantas, da catalã Marta Orriols, o segundo livro catalão mais vendido em toda a Espanha no ano passado, e apresenta um enredo incrivelmente imaginativo. Paula é uma neonatologista apaixonada pelo que faz e com um relacionamento desgastado pela rotina quando aos 42 anos pensa, pela primeira vez, em ser mãe; mas, no dia em que contava informar disso o companheiro, este diz-lhe que tem outra pessoa e quer sair de casa. Não há tempo, porém, para Paula gerir a raiva que a revelação lhe provoca: duas horas depois ele morre num acidente. E então, juntamente com o choque de uma morte estúpida e prematura, Paula terá de enfrentar o desgosto de ter sido abandonada e de lidar não apenas com o luto, mas também com o ressentimento. A autora estará em Portugal para as Correntes d'Escritas e valerá certamente a pena ouvi-la. Lê-la eu sei que vale a pena.
Quando era miúda tive uma professora de Matemática que um dia, ao descobrir que uma colega minha e eu estávamos a conversar e não tínhamos prestado atenção, disse que não gostava nada de «deitar pérolas a porcos». Enfim... Se fosse agora, talvez o Conselho Directivo ou a Associação de Pais a punisse ou chamasse à pedra pelo insulto, mas nesse tempo as coisas eram diferentes. De qualquer modo, as pérolas interessam-me hoje por outro motivo mais literário. Numa sessão de homenagem à escritora Rosa Lobato de Faria que ocorreu na quinta-feira passada, dez anos passados da sua morte, o ensaísta Eugénio Lisboa falou do preconceito que a Academia alimentou ao longo de muitos anos em relação aos livros que contavam bem uma história, crendo-os menores do que aqueles que privilegiavam o trabalho de linguagem. E usou uma imagem que é muito perceptível para a suma importância do fio narrativo que, segundo ele, é o que mantém de pé toda a construção literária. Disse que o que interessava na literatura eram as pérolas, sim, como a Academia defendia, mas que, se não houvesse fio, o colar estaria todo espalhado pelo chão. Achei bem interessante. No que me diz respeito, não foram pérolas deitadas a porcos.