O poeta António Carlos Cortez escreveu um poema-letra para esta Lisboa cujo fado não se tem podido ouvir, um fado sobre a Lisboa deserta, que publicou na sua página do Facebook (António Carlos Cortez Letras). Depois desafiou-me a dar-lhe resposta, como numa autêntica desgarrada, propondo um mano-a-mano que podia ser giro, mas demorado. Aceitei dar a primeira resposta, mas logo lhe disse que estava em teletrabalho e não poderia prosseguir «a conversa». Então, para não quebrar a corrente, combinámos que desafiaríamos outros poetas para escreverem fados sobre este momento do confinamento. E não só os poemas apareceram muito naturalmente (de Mário Cláudio, Nuno Júdice, Luís Filipe Castro Mendes, José Carlos Barros, Rui Cóias, Manuel Alegre, Maria Teresa Horta..., alguns dos quais até repetiram a dose), como o apelo estendeu-se a alguns autores menos conhecidos e até a poetas populares que quiseram arriscar. Qualquer dia ainda temos antologia... Deixo-vos o meu fado, mas procurem os outros na página que referi, pois valem muito a pena.
«Fado da Lisboa doente»
Quem a viu e quem a vê,
Esta Lisboa onde moro.
Mas não perguntem porquê.
Pois, se explicar, ainda choro.
Na padaria da esquina
Já só se entra às pinguinhas
E até se tornou rotina
Estar a um metro das vizinhas.
Há fila para a farmácia,
Fila pró supermercado;
E nem é precisa audácia
Para se andar mascarado.
Nas traseiras do meu prédio
Uma jovem namorada
Tenta combater o tédio
Com uma videochamada.
A uns metros de distância
Parte um atleta em corrida;
Para manter a elegância
Há que fazer pela vida.
De resto, com a emergência,
Ficam as ruas desertas.
Podemos conferir a ausência
Pelas janelas abertas.
Está tudo em teletrabalho,
A olhar p’ró monitor.
Mas não encontro o atalho
Para vos falar de amor.
Dar beijos é só por escrito,
Que o vírus mata a valer.
E está tudo tão aflito
Que nem apetece ler.
Ai Lisboa, que saudade
Da tua irrequietude.
Mesmo que, em boa verdade,
Mais importante é a saúde.
Que tudo passe ligeiro,
E não afecte o meu ninho.
Da Praça do Areeiro
Envio um tele-beijinho!
Hoje proponho como leitura Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie, com tradução de Ana Saldanha. (Dedico esta leitura às mulheres que estão desesperadas a pensar que não conseguem arranjar o cabelo até final de Maio...)
Tenho passado os dias a ler: provas de livros que serão publicados, obras originais de potenciais autores, livros publicados no estrangeiro para ver se me interessa traduzi-los, livros cá publicados (à noite, antes de dormir). E noto que a leitura recorrente de notícias sobre o Coronavírus e o isolamento forçado me estão a afectar mais do que gostaria quando dou por mim a já não conseguir separar as águas... Por exemplo, li agora uma cena de um livro em que os avós acenavam de longe a um rapazinho, num jardim das Caldas da Rainha, e pareceu-me bem; mas, quando eles resolvem ir ter com ele e sentarem-se todos numa esplanada, só pensava que deviam estar doidos e que nunca deveriam ter saído de casa. Infelizmente, sempre que aparece no texto que estou a ler um aperto de mão, um abraço, alguém que cumprimenta com um beijo, em vez de achar natural e passar adiante, não consigo deixar de pensar no perigo de contágio... Mas para onde me havia de dar, raios! Devo estar a ficar maluquinha com o encerramento... Por acaso acontece o mesmo a algum Extraordinário ou sou eu que sou mesmo um caso perdido (coisa que o nosso Anónimo de estimação adoraria)?
Para hoje sugiro O Filho, de Philipp Meyer, um livro em que o protagonista só se salvou do jugo dos índios porque estava vacinado...
Os pais de crianças mais pequenas devem andar um bocado desesperados, obrigados que estão a mantê-las confinadas ao espaço da casa, e sabendo nós como algumas das casas devem ser pequenas... Sobretudo os que, além de tomar conta dos filhos, estão em teletrabalho. Mas há um livro bonito que ensina as crianças a aceitar situações diferentes. Chama-se A Aldeia Verde e Vermelha, é de Paulo M. Morais, tem ilustrações de Sandra Sofia Santos, e foi publicado pela Tcharan. É a minha sugestão para hoje. Para os mais velhos, Pátria, de Fernando Aramburu, sobre a ETA, o País Basco e o que une e separa duas famílias tão amigas. Bom fim-de-semana.
E não é que me esqueci do post para hoje? Isto é do confinamento forçado, desculpem... Bem, agora também não tenho tempo para quase nada. Vou por isso socorrer-me do jornalista João Morales, que gravou recentemente conversas espontâneas com escritores e outras personalidades na última edição das Correntes d'Escritas que vão sendo colocadas no Blog BranMorrighan. A primeira é com a Manuela Ribeiro e o Francisco Guedes, justamente os “pais” das Correntes d' Escritas. Desculpem o mau jeito. Obrigada, João Morales. Aqui vai o link.
Aproveito para sugerir um clássico: Fome, de Knut Hamsun. A edição que me espreita ali da estante é da Cavalo de Ferro e a tradução de Liliete Martins (imperdoável esquecimento nos outros casos em que aconselhei livros não ter mencionado os tradutores, desculpem).
Sábado passado foi Dia Mundial da Poesia, embora a poesia devesse ser de todos os dias. Como é habitual de há vários anos para cá, a Casa Fernando Pessoa tinha um programa de actividades muito cheio para sábado: a feira do livro de poesia no Jardim da Parada, que tem sempre edições difíceis de encontrar nas livrarias, e várias sessões de leitura no auditório da Casa, entre elas uma realizada por Maria Rueff. Mas nada disso pôe fazer-se, pois manda a lei que estejamos bem recolhidinhos em casa para evitar o contágio. Em todo o caso, a directora da Casa Fernando Pessoa não parou para nos poder oferecer uma série de «poemas que ficam no ouvido», lidos não apenas pela actriz, mas por muitíssimas pessoas, algumas das quais se voluntariaram para alegrar os nossos dias. A sessão pode ser vista a partir daqui:
Há muitos anos, quando comecei, ainda tão nova, a ir à Feira do Livro de Frankfurt, conheci um casal da edição do qual nunca mais me separaria: a Maria da Piedade Ferreira, que é hoje a editora de António Lobo Antunes na LeYa, mas passou por variadísimas chancelas, como a Bertrand, a Difel, a Quetzal e a Gótica; e o Rogério Petinga, um artista que fez algumas das capas de livros mais lindas que Portugal já teve. Ambos, com Maria Carlos Loureiro e Francisco Faria Paulino, foram os fundadores da editora Quetzal, que primou sempre pelo bom gosto extraordinário quer na escolha dos autores (Duras, Tabucchi, Julian Barnes...), quer na imagem gráfica. Fico orgulhosa de ter publicado lá o meu primeiro livro de poesia, com capa de Rogério Petinga. Na Gótica, que os dois fundaram mais tarde, foi também ele que fez as capas dos meus livros seguintes. Infelizmente, este grande artista escondido (sim, era um homem discreto e metido consigo) deixou-nos na sexta-feira passada. Espero que a sua obra gráfica possa ser um dia mostrada a todos, pois é notável. Paz para ele.
Sugiro hoje um livro que foi editado originalmente pela Quetzal com capa do Rogério Petinga: O Papagaio de Flaubert, de Julian Barnes. Imperdível ainda hoje.
No Reino Unido, com a situação de confinamento provocada pelo Coronavírus, as vendas de livros dispararam. Nada melhor para enriquecer o espírito, aprender, desenvolver capacidades e passar bem o tempo. Os britânicos já sabem disso há muito (já tiveram 86% de pessoas que compravam e liam livros regularmente); mas em Portugal não sabemos ainda o que vai acontecer, até porque passámos do analfabetismo real ao funcional num abrir e fechar de olhos e nunca conseguimos formar uma população francamente leitora. Ainda assim, tenho recebido imensos e-mails e mensagens com iniciativas e actividades em redor da leitura, da escrita e dos escritores que podemos acompanhar de casa. E achei especialmente graça a uma delas: a criação de um clube de leitura da Josefinas, uma boa marca nacional de sabrinas (e outros sapatos). Chama-se Josefina's Book Club e pode ser acompanhado no Instagram da marca. Foi criado sob o signo de Malala Yousafzai: «Um professor, uma criança, um livro, uma caneta, pode mudar o mundo.» Mesmo sem fazer parte do clube, hoje aconselho, por sugestão de um Extraordinário, a leitura de A Lição de Anatomia, de Philip Roth. Humor não lhe falta e precisamos dele nestes dias.
Aproveito para saudar todos os artistas que têm estado a dar concertos em directo de suas casas, às vezes cantando a capella por falta de outros recursos, como foi o caso de Cristina Branco, que acompanhei; ouvi também Boss AC, que tinha a música gravada e «falava» em cima; e António Zambujo, mas ele toca guitarra e assim fica mais fácil). Lembro que, com tantos concertos anulados, os músicos e intérpretes são obviamente muitíssimo atingidos por este período de confinamento, pois o que ganham é normalmente das tournées e espectáculos que realizam em Portugal e no estrangeiro, já que quase ninguém compra CD. Faço um apelo para que comprem uns discos nas lojas virtuais para os ajudar (mesmo que os direitos de autor sejam pouca coisa), e a talho de foice digo a mesma coisa para os livros. Os escritores também andam por aí a ler excertos da suas obras nas redes sociais e a fazer workshops, leituras e conferências por skype, na maioria gratuitamente. Nestes tempos difíceis, esta gente precisa de ser apoiada por nós.
Um dos Extraordinários (perdoe-me sinceramente não referir o seu nome, mas já não sei em que post pôs o seu comentário) lembrou, e bem, que o JL,Jornal de Letras, Artes e Ideias, fez 40 anos e eu nem uma palavrinha escrevera sobre o assunto. Diabo, realmente foi um esquecmento imperdoável e uma grande injustiça. Comprei o primeiro número do JL, andava ainda na faculdade, descobrindo que um dos meus professores favoritos (Mário Jorge Torres Silva) escrevia no semanário (na altura era semanário) sobre cinema. Porém, outro dos meus professores da altura chamou-lhe A Bola da literatura e aconselhou-nos a ler, em vez dele, coisas mais académicas. As opiniões, enfim, dividiram-se sempre, mas o que é certo é que nunca apareceu outro jornal de livros, exposições, música, etc., que circulasse por toda a lusofonia, que resistisse 40 anos e que, com recursos mínimos, conseguisse fazer mais pela literatura e as outras artes portuguesas do que muitos outros meios de comunicação. Parabéns, quarentão. Continua assim. Deixo-vos um link com capas dos 40 anos:
Há muita gente que, estando a trabalhar em empresas, desejaria ardentemente trabalhar a partir de casa. Pois eu sou o contrário: como preciso de trabalhar em casa por motivos pessoais (uma crónica semanal, este blogue, etc.), se trabalho em casa para a LeYa é certo e sabido que depois já não me apetece trabalhar para mim, porque deixa de haver um corte, de horário e de lugar. Além disso, agora tenho de fazer almoço, e eu detesto cozinhar. O meu irmão, que é professor universitário, diz também que lhe é muito mais difícil ensinar pela Internet do que dar as aulas presencialmente. E com os professores do Secundário e do Básico imagino que aconteça o mesmo, ou seja ainda pior, apesar de os principais editores escolares terem aberto de forma gratuita as suas plataformas para os ajudarem. (Pelo menos, não aturam a má-criação.) Tenho dificuldade em perceber o que acontecerá mais para a frente, se a reclusão se prolongar, inclusivamente porque conheço alguns efeitos secundários do isolamento social e não são bons. E mesmo ler, que podia resultar bem em ambiente doméstico, agora não funciona: ora porque estamos sempre a receber emails e whatsapps da empresa (temos de comunicar de alguma maneira), ora porque com o computador ligado estamos atentos a todos os alertas do vírus, ora porque a situação é muito grave e não conseguimos concentrar-nos. Pode parecer uma parvoíce, mas não é que tenho saudades de ir para o emprego...?