Nas vésperas de ser imposto o confinamento, os Portugueses já andavam transidos de medo e aconteceram duas coisas: no fim de semana de 14-15 de Março, as ruas ficaram vazias, como em Agosto, e os supermercados foram «assaltados», ficando com muitas prateleiras vazias. Lembro-me de que, quando precisei de legumes para a sopa dois dias depois, os stocks ainda não tinham sido repostos e senti-me em verdadeiro clima de guerra. Mas, embora o vírus seja muito difícil de conter e combater, embora seja um inimigo desconhecido e dissimulado, a verdade é que a situação dos fornecimentos de géneros alimentares se normalizou rapidamente depois desse primeiro susto, enquanto durante as duas maiores guerras que assolaram a Europa isso não aconteceu, e a fome grassou por todo o lado (mesmo em Portugal, que não entrou na Segunda Guerra Mundial, houve racionamento). A LeYa fez uma campanha para mostrar que já houve tempos bem piores do que os que atravessamos, só com livros sobre as duas Guerras Mundiais, e pode encontrar entre eles ficções dos geniais Primo Levi, Italo Calvin ou Gunther Grass, mas também biografias de Hitler ou Leni Riefenstahl, ou mesmo livros para jovens e crianças como O Rapaz do Pijama às Riscas ou O País das Laranjas, bem como obras de autores portugueses que tive o gosto de publicar: Perguntem a Sarah Gross, de João Pinto Coelho, ou Os Olhos de Tirésias, de Cristina Drios. Vão lá espreitar, que vale muito a pena, pois há grandes descontos em livros de fundo e títulos para todos os gostos. Até 10 de Maio.
Amanhã é feriado,volto segunda. Vou então recomendar, a propósito desta campanha, O Sistema Periódico, de Primo Levi, que eu própria traduzi com 29 anos; uma autobiografia literária que parte de elementos químicos para nos falar de uma vida muito rica e acidentada, que também passou por Auschwitz. Bom fim-de-semana.
Faço muitas vezes letras de fados e canções para artistas que não conheço pessoalmente, mas que já ouvi cantar, nem que seja no YouTube. Há já uns meses que estou a trabalhar num projecto com um compositor cujos nome e trabalho conheço há séculos, embora nunca tenhamos sido apresentados; e, apesar de termos planeado encontrar-nos para acertarmos detalhes e nos olharmos olho no olho, veio o estupor do Coronavírus e já não foi possível (entretanto, o trabalho avança). É estranho criar com alguém que não vemos (e não me venham, por favor, falar do Zoom e do Skype, que não é nada a mesma coisa). Há cerca de duas semanas fui convidada para inspirar uma obra plástica à distância num projecto da Bienal de Cerveira. Estou entre 15 escritores que farão um texto com apenas 15 palavras para 15 artistas partirem deles para... criar uma obra em confinamento. E mais uma vez não conheço pessoalmente o artista que me calhou: Isaque Pinheiro. Vamos lá ver o que isto vai dar. Deixo-vos um link com os pormenores.
Hoje vou sugerir poesia, já que foi com poesia que colaborei para a Bienal de Cerveira. Leiam então, por favor, Epílogo, de José Agostinho Baptista. A sua obra mais completa possível. E tudo tão bom.
No Brasil já saiu uma antologia de contos da quarentena. Cá, embora esteja imensa gente a escrever sobre o assunto (falo de profissionais da escrita, bem entendido), no geral, esses textos e capítulos de romances colectivos têm sido publicados quase exclusivamente nas redes sociais. Porém, a Livraria Lello decidiu agora propor um concurso de contos para escritores anónimos, portugueses e não só, baseados na temática do confinamento. «Os contos apresentados a concurso deverão focar-se nas experiências individuais durante o período excepcional que vivemos devido ao Covid-19», dizem os organizadores, acrescentando que os seis melhores contos ganharão cada um um prémio de mil euros e serão publicados numa colectânea pela Livraria Lello. As inscrições e submissão dos textos devem ser feitas através do formulário que a Lello disponibiliza em https://bit.ly/2V31w8n até dia 31 de Maio de 2020. O regulamento pode ser lido aqui: https://bit.ly/2RC0tKs. Tenho a certeza de que, entre os Extraordinários, haverá candidatos.
Hoje recomendo um romance que adorei e li muito antes de saber que dele fariam um filme (por sorte, igualmente bom). Trata-se de O Doente Inglês, do canadiano Michael Ondaatjie. As partes que não entram no flme (a solidão no deserto seria muito difícil de fixar em imagem sem resultar aborrecida) são absolutamente geniais de ler. A tradução é de Ana Luísa Faria.
Para comemorar o Dia do Livro, que aqui assinalei na semana passada, a LeYa criou um Clube de Leitura chamado Próximo Capítulo, no qual os interessados se deverão inscrever até ao próximo dia 5 de Maio (deixo o endereço abaixo). Não é um clube no sentido daqueles clubes que enviavam para casa uma revista e obrigavam à compra de um livro ou mais (eu fui sócia do Clube Juvenil Verbo e os meus irmãos mais velhos do Círculo de Leitores); é uma proposta de partilha, conversa e debate à volta de uma obra de ficção ou não-ficção, semelhante àquilo a que alguns chamam vulgarmente comunidade de leitores, mas orientado pelos editores da LeYa (lá chegará a minha vez também). Os inscritos serão informados sobre os livros a ler (e como adquiri-los com condições exclusivas) por e-mail, bem como sobre as datas dos encontros que, numa primeira fase, se farão através de plataforma digital e, mais adiante, quando o vírus tiver debandado, presencialmente. Vá dar uma espreitadela e junte-se a nós. Como dizia C.S. Lewis, «lemos para saber que não estamos sozinhos». Ora, isso vai sentir-se de forma muito clara no Próximo Capítulo.
Em tempo: são 15h30 e reparo que hoje me esqueci de aconselhar a leitura de um livro. Mil perdões. Desgraça, de J. M. Coetzee, Prémio Nobel da Literatura. Um grande livro.
Queridos Extraordinários, hoje é dia de crónica e está aí o link. Uma nota: é a última crónica... O jornal Diário de Notícias avisou-me delicadamente de que não iria poder pagar-me neste momento tão difícil para toda a comunicação social e a crónica ficaria suspensa por dois meses; se as coisas melhorassem em Junho, talvez regressasse às suas páginas. Mas, uns dias depois de ter sido «notificada», a mesma direcção que me convidou demitiu-se, não aguentando a imposição de tantos cortes... Por isso, não vejo hipótese de voltar com o meu Adeus, futuro. E tenho pena, estava a gostar mesmo muito de olhar para trás e para diante e de chamar a atenção para tanta coisa que aí vem que não vai ser como gostaríamos. Enfim, também sei que é mais importante pagar salários do que pagar a colaboradores. Despedi-me com cinema.
Para não ser tudo tão triste, aqui vai uma graça que encontrei por aí. Todos os comentadores de TV aparecem agora em suas casas com umas estantes cheias de livros atrás deles, e há quem suspeite de que seja só cenário, o que até já gerou piadas de Ricardo Araújo Pereira. Os espanhóis, porém, descobriram o segredo. E devem estar ricos. Ora vejam:
Para hoje sugiro A Herança de Eszter, um dos mais belos livros de Sándor Márai, conhecido sobretudo por As Velas Ardem até ao fim.
Hoje é um dia muito especial, pois comemora-se em todo o mundo o Dia do Livro, embora, claro, este ano haja países e cidades que habitualmente festejam a data com pompa e circunstância (em Barcelona, é uma verdadeira maratona de acontecimentos, com os autores a saltarem de livraria para livraria em sessões de autógrafos e toda a gente, incluindo os que não são leitores habituais, a comprar livros) que não o podem fazer. A data foi escolhida por ser o aniversário de Shakespeare e Cervantes, e aquilo que podemos fazer este ano para não deixar morrer a efeméride é (nem era preciso eu dizer) ler! A LeYa cria hoje uma comunidade de leitores chamada Próximo Capítulo, de que falarei aqui num «próximo capítulo». É uma boa forma de fazer alguma coisa pelos livros, de que as pessoas parecem tão arredadas hoje em dia (agora é só séries). Se gosta de aqui vir, prometa-me que hoje vai comprar e ler um livro. Eu recomendo-lhe esse «romance» estranho e belo que é Lincoln no Bardo, de George Saunders, com tradução de José Lima.
Sou bastante antiga, como já devem saber, e tenho um irmão apenas ano e meio mais velho do que eu. Falo disto porque, no nosso tempo de estudantes, nos anos 1960, o meu irmão fez parte desse projecto-piloto que foi a Tele-Escola e, concluída a instrução primária, completou assim os dois anos do então Ciclo Preparatório. Estava num colégio em que viam as aulas pela televisão e a seguir um professor ajudava a tirar dúvidas e a corrigir exercícios. Nem sei se era sempre o mesmo, se havia vários, do que me lembro muito bem era de assistir às aulas de Francês em nossa casa pela televisão, e o professor, de fato completo e muito aprumadinho, ter um ponteiro e, apontando para a câmara, dizer amiúde: Répétez! E eu lá repetia, que era para aprender tudo ao mesmo tempo que o meu irmão... Para quem tenha dúvidas sobre o sucesso da coisa, o meu irmão foi depois para o Liceu Camões e nunca mais saiu do quadro de honra, teve 20 a História e Filosofia nos últimos anos e tornou-se professor universitário, o que ainda é. Por isso, sou daquelas pessoas que acho que às vezes o ensino à distância é muito positivo (mesmo não apreciando o teletrabalho) e tem melhores resultados do que uma turma barulhenta ou com um professor mal preparado. Talvez por isso, deu-me muito gozo uma notícia que li ontem: a Tele-Escola, na RTP Memória, bateu todos os recordes de audiência e destronou a Correio da Manhã TV! Que felicidade!
Hoje sugiro Rabos de Lagartixa, de Juan Marsé, um enormíssimo romancista autodidacta (se não me engano era ourives), muito apreciado pelo nosso Lobo Antunes. Tem muitos outros livros bons, mas o que refiro é o meu preferido.
Houve em todas as épocas vários autores consagrados que leram poemas e ficções originais de aspirantes a escritores. E é célebre aquele veredicto de Diderot em relação aos textos de um jovem poeta (vou dizer de memória): «Não só os seus poemas não são bons como mostram que nunca conseguirá fazer melhores.» Mais generosos foram, porém, escritores que partilharam em livro as questões que se lhes levantaram ao escrever ou que tentaram até certo ponto criar manuais de ajuda para autores mais jovens. Entre eles está desde logo o maravilhoso Escrever, de Stephen King (quem diria que um autor de livros de terror pensava tão bem as coisas?), Carta a Um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke, ou mesmo Cartas a Um Jovem Escritor, de Mario Vargas Llosa. Mas o The Guardian traz um artigo interessante sobre livros dessa temática (alguns não conheço) que partilho hoje convosco. Há muito por onde escolher.
O que fazem os Extraordinários por estes dias é seguramente conviver com escritores e textos (eu também, até por razões profissionais). Mas conviver com livros é muito diferente de conviver (sem ser metaforicamente) com os seus autores. Ora, alguém no Reino Unido teve a bela ideia de criar conjuntos de escritores de várias épocas e géneros e metê-los ao molho numa casa. E, depois de formadas várias casas, o jogo é procurar a casa em que nos pareceria que viveríamos melhor durante o período de confinamento. Eu olho, olho, e na verdade, apesar de achar que seria feliz na Casa 5 (com os poemas de Dickinson e Eliot, a imaginação de García Márquez e as maravilhosas lições de Nabokov), também penso que a Casa 1 teria a sua graça, com as piadas inteligentes de Wilde e o génio de Flannery O'Connor (e muita animação brechtiana). Divirta-se com isto e veja qual é a casa em que se sentiria melhor e não daria em doido. Aproveite para ver quem é quem (os que não conhece).
Como falei de Wilde, hoje sugiro O Retrato de Dorian Gray ou os seus contos, um dos quais (O Fantasma de Carnterville) prefaciei recentemente para uma edição da 20|20. Não ponho os tradutores porque já não chego à prateleira de Wilde...
Nos últimos dias morreram dois escritores que tive o prazer de conhecer pessoalmente (e, claro, de ler): o brasileiro Rubem Fonseca e o chileno Luis Sepúlveda. A primeira morte não teve que ver com o vírus (Rubem tinha 90 e tal anos, chegou a a sua hora), mas a segunda, sim, e foi penosa em todos os sentidos porque a doença se arrastou muito tempo e não houve salvação. Além da perda, se já temos medo de ser afectados não conhecendo ninguém com o vírus, torna-se ainda mais difícil quando ele passa a ter nomes próximos e a levar-nos amigos. Mas, diante da morte, resta-nos fazer o luto, que também se faz não deixando morrer quem partiu. Assim, hoje sugiro livros destes dois escritores, os primeiros que li de cada um deles (não necessariamente os melhores, atenção): O Buraco na Parede, de Rubem Fonseca; Mundo do Fim do Mundo, do nosso Lucho. Que ambos descansem em paz.