Apesar do confinamento, o festival de literatura de viagens que todos os anos decorre em Matosinhos, mais conhecido por LeV, realiza-se pela primeira vez à distância e já começou! Isabel Allende já esteve em directo no dia 13, e ontem pudemos assistir a entrevistas e conversas com Ana Luísa Amaral, Rosa Montero ou Javier Cercas; mas, para quem esteja a trabalhar e não tenha visto, os vídeos ficarão disponíveis em várias páginas do Facebook, desde logo a da Câmara de Matosinhos, a da Biblioteca Florbela Espanca, a da Book Office (que organiza o evento) e a da Casa da América Latina, quando não nas das editoras dos escritores que participam no festival. Deixo-vos o programa completo abaixo e espero que me façam companhia no domingo à tarde, quando for a minha vez. E, claro, que para o ano possamos todos viajar até Matosinhos, de corpo e alma, porque tem muito mais graça ouvir e aplaudir ao vivo.
Ontem falei de bibliotecas, hoje falo de livrarias e de livreiros. No tempo em que eu me tornei leitora, as livrarias eram muito diferente das de hoje. Tinham à frente homens e mulheres que eram grandes leitores, ou pelo menos conheciam muito bem o que tinham dentro da loja. Estabeleciam frequentemente com os clientes um relacionamento pessoal, chamando a atenção para determinadas novidades que provavelmente lhes interessariam. Sabiam aconselhar livros para crianças de idades diferentes; e, por vezes, até telefonavam a um cliente específico a dizer que tinha chegado de longe aquele livro, que depois guardavam debaixo da mesa para não serem apanhados pela PIDE. Com honrosas excepções, esta espécie de livreiro já não se encontra, não só porque, com o aumento do número de leitores e pessoas escolarizadas, a edição se foi progressivamente transformando numa indústria, mas porque, para a maioria dos jovens, a cultura se tornou uma coisa muito mais superficial e as pessoas hoje estão, infelizmente, mais viradas para a informação e o conhecimento rápidos, e também mais dispostas a uma fruição rápida (meia hora de um episódio de uma série contra duzentas páginas de um romance). Em Portugal desapareceram as livrarias independentes quase todas, mas em Espanha, por exemplo, elas ainda contam muito, e dois escritores espanhóis quiseram prestar-lhes homenagem nestes tempos horríveis com um artigo maravilhoso que aqui vos deixo. Gostei muito de duas ideias: a do livreiro que escolhe os livros para o jovem cliente como quem escolhe flores para a abelha, estimulando o pólen da imaginação; e a ideia de que o escritor é uma ilha e o leitor um continente. Mas, por favor, leiam estes elogios aos livreiros, merecidíssimos, e honrem os vossos livreiros, se ainda os têm, partilhando-os com eles.
Como falei de livrarias, hoje recomendo uma verdadeira pérola: A Casa de Papel, de Carlos María Domiguez. (Não tem nada a ver com séries de televisão, aviso já.)
Pronto, está bem, encontramo-nos todos (ou muitos de nós) fechados em casa em teletrabalho (ou, pior, subitamente desempregados) por causa de um maldito vírus que começou na China (onde comem todo o tipo de bicharada) e foi alastrando ao mundo todo. Mas foi também na China que, quando as coisas começaram a azedar, construíram um hospital ou dois para tratar os doentes da Covid-19 em duas semanas, enquanto as obras do metro do Areeiro (e é só metade da estação porque a outra metade já está pronta há anos) duram e duram e duram, muitas vezes com um barulho que me obriga a fazer uma pausa nas leituras. A supremacia chinesa na construção não tem par, é um facto; e, embora não me lembre se os hospitais eram bonitos, posso atestar que assiste um talento especial aos Chineses para a arquitectura de bibliotecas bonitas. Hoje, mostro-vos uns quantos destes templos dedicados aos livros, na China e na América do Norte, todos de arquitectos chineses. Deliciem-se.
Como falei de bibliotecas, o lugar que Jorge Luis Borges dizia que devia ser o Paraíso, recomendo-vos deste autor Ficções, traduzido por José Colaço Barreiros, e também a poesia, traduzida pelo poeta Fernando Pinto do Amaral.
Todos sabemos que muito do que se escreve tem como base a realidade. Se, por exemplo, Melville não tivesse trabalhado numa baleeira, provavelmente não teria escrito Moby Dick. Muitos escritores, mesmo sem o pretenderem, deixam escapar para os seus textos experiências pessoais ou episódios a que assistiram ou de que tiveram conhecimento. Mas, quando na vida real aparece uma história que, afinal, já tinha sido escrita, é mesmo incrível... E nem se pode dizer que os seus intervenientes tenham sido inspirados pela leitura do livro porque isso não aconteceu, foi mesmo mera coincidência. Quando William Golding escreveu O Deus das Moscas, não tinha a mais pequena ideia de que, em 1966, meia dúzia de adolescentes fugiriam de um colégio interno em Tonga num barco de pesca (queriam ir até à Nova Zelândia, calculem) e, apanhados numa tempestade, acabariam por ir dar a uma pequena ilha deserta onde viveram (sobreviveram) mais de um ano completamente sozinhos. Em casa, já lhes tinham, de resto, feito o funeral quando foram encontrados por um navegador australiano que não queria acreditar como os jovens tinham conseguido subsistir naquele fim de mundo e criado do nada uma sociedade bastante organizada (até um campo de badminton tinha) e extremamente solidária (um deles caiu de uma ravina e partiu uma perna e os outros foram buscá-lo, correndo risco de vida, e trataram-no tão bem que os médicos se supreenderam mais tarde quando viram o raio X). Vale mesmo a pena ler o artigo maravilhoso do The Guardian que conta esta história rocambolesca e perceber que, na realidade, não houve lutas pelo poder, como no romance do escritor britânico vencedor do Prémio Nobel. (Esperança na humanidade?) Deixo-vos o link, parece ficção, mas não é.
Além dos dois títulos já referidos no post, recomendo mais dois livros sobre adolescentes em grupo deixados sozinhos: O Jardim de Cimento, de Ian McEwan, e Casa de Campo, de José Donoso. Qual deles o melhor.
Um dos autores que publico, David Machado, é um verdadeiro cultor da felicidade. Acha (e com razão) que devemos aproveitar o melhor possível o tempo que nos cabe viver neste mundo; e, como tal, não se deixa abater por dá cá aquela palha e tem sempre boas ideias para combater a inércia e a tendência portuguesa para o entristecimento. Chegou a pandemia e não ficou quieto, mesmo sabendo eu que tem dois filhos pequenos em casa e que lhe cancelaram todas as idas a escolas e bibliotecas, que é como ocupa maioritariamente o seu tempo, com actividades que correspondem a uma parte significativa do que ganha. Com a colaboração de Paulo Galindro, que é um ilustrador com quem trabalha regularmente, criou uma página chamada Um Dia de Cada Vez, com uma actividade por dia para as crianças fechadas em casa. E não são actividades parvinhas, mas coisas muito criativas, inteligentes, cheias de humor e, ao mesmo tempo, que levam os miúdos a pensar sobre o que lhes aconteceu e a concluir que a vida não é um mar de rosas, mas há sempre maneira de substituir a neura por algo realmente construtivo. Agora, tudo isso pode (e deve) juntar-se num livro, e os autores estão a pedir apoio para isso. Deixo-vos o link para entenderem pormenorizadamente o projecto e, em querendo, contribuírem. Eu já o fiz e não custou nada. Acho que o meu sobrinho mais novo, quando vir o livro, vai adorar.
Quase me esquecia de recomendar um livro... Bem, como falei deste meu autor, vou recomendar a sua mais recente obra para adultos, A Educação dos Gafanhotos, um «on the road» nos Estados Unidos de dois rapazes que pensavam que já eram muito crescidos, mas a quem os factos trocam as voltas.
Sempre houve estrangeiros que visitaram e se apaixonaram por Portugal (o poeta inglês Byron, por exemplo) e aqueles que aqui se refugiaram durante a Segunda Guerra Mundial e depois acabaram por criar cá família e ficar. O nosso clima é bom, a comida, óptima (com doses generosas), o povo é calmo e simpático (sobretudo para quem vem de fora), as cidades são seguras, mesmo de noite (há excepções, mas é fácil identificá-las e evitá-las). A nossa língua é, mesmo assim, tremendamente difícil para um estrangeiro... Mas isso não impediu que muitos se apaixonassem pela nossa literatura (Fernando Pessoa é o principal «culpado» desde os anos 1970) e alguns desses acabassem até por vir morar para Portugal para investigar e ensinar, como o norte-americano Richard Zenith ou, noutro tempo, Antonio Tabucchi e Maria Lúcia Lepecki, entre muitos outros. Na Casa Fernando Pessoa, celebraram o Dia Mundial da Língua Potuguesa dando a palavra a alguns destes «forasteiros» que, num vídeo, escolhem as suas palavras preferidas da nossa língua. A surpresa é constante: ora o muito simples, ora o francamente invulgar, ora enfim o que é curioso e exclusivo. Vejam as palavras. E ouçam, claro, as vozes e os sotaques de quem as diz. O link vai abaixo.
Hoje recomendo justamente um ensaio ligado a este assunto escrito por Maria Filomena Mónica. Confesso que ainda não tive oportunidade de o ler, mas tenho a certeza de que dirá muito de nós e interessa-me por isso deitar-lhe a mão. Chama-se O Olhar do Outro: Estrangeiros em Portugal do Século XVIII ao Século XX; e, conhecendo alguns textos antigos de visitantes estrangeiros, calculo que esteja cheiinho de opiniões tremendas a nosso respeito... Para variar dos elogios recentes e unânimes.
Estamos na fase em que já existe alguma abertura ao contacto com o outro, mas continua a recomendar-se algum distanciamento. Tenho um amigo que já almoçou com a sua mãe de certa idade, mas numa mesa comprida e num terraço (e antes de começarem a comer, tinha a máscara posta). Mesmo assim, é cedo para eventos ao vivo e, como tal, o melhor é prosseguir com os virtuais. É um jantar deste tipo que vai ocorrer hoje às 22h00, na página de Instagram do restaurante Palácio Chiado, em que o jornalista João Morales cumprirá mais um dos seus À mesa com. Desta feita, o convidado é Júlio Machado Vaz, «psicólogo, sexólogo e praticante da arte da conversa», que do Porto se junta a Morales. Não sei se vai haver realmente vinho e comida, mas o alimento das palavras promete e, enquanto não podemos estar realmente juntos, vale-nos a presença virtual de quem pergunta e quem responde. A actividade tem o apoio da Fado in a Box.
Hoje recomendo um clássico: O Adeus às Armas, de Hemingway. Lembrei-me que também andamos em tempos de hospitais (mas não é só isso, não se preocupem).
Dickens começou a escrever os seus romances em fascículos publicados nos jornais como forma de receber um pagamento regular (a sua infância a trabalhar em fábricas fora miserável e inspirou muitas das suas ficções). Camilo também o fez, e também por precisar de dinheiro. E os fascículos de vários géneros (ficção, história, biografia, enciclopédia...) circularam ao longo de todo o século XX, por vezes em cadernos independentes e agrafados (no final, recebia-se a capa e mandava-se encadernar), por vezes impressos nas páginas ou suplementos literários dos jornais e revistas que se podiam coleccionar. No actual estado de coisas, em que as páginas de Cultura dos periódicos têm infelizmente pouco de que falar (passa-se quase nada em termos de lançamentos, espectáculos e eventos), o Diário de Notícias lembrou-se de resgatar o fascículo e está desde segunda-feira a publicar um romance em doze episódios do repórter e crítico João Céu e Silva. Chama-se O Regresso de Fernando Pessoa e tem como protagonista o heterónimo Vicente Guedes, que foi preterido como autor do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares. Espreite aqui o primeiro capítulo:
Pessoa disse que a sua pátria era a língua portuguesa e hoje é a melhor oportunidade para a festajarmos, já que este dia 5 de Maio é justamente o Dia Internacional da Língua Portuguesa. Infelizmente, dadas as circunstâncias, muitos dos eventos pensados e planeados não puderam realizar-se (estava no horizonte um festival literário na capital portuguesa com o apoio do município, mas creio que não acontecerá) ou sê-lo-ão, mas em modelos adaptados aos novos tempos, como quase tudo. Na página do Facebook do Museu da Língua Portuguesa (a instituição na cidade de São Paulo que melhor condensa uma língua que abarca milhões de pessoas em cinco continentes), desde o último domingo que estão a ser transmitidas actividades, entre as quais apresentações de livros, concertos, leituras, debates, declamações de poesia, oficinas de escrita e muito mais, destacando-se entre elas o projecto Fado Bicha (já lhes fiz uma letra para um fado) e a performance do escritor e músico Kalaf Epalanga. Celebre este dia onde quer que esteja lendo um livro em língua portuguesa. Recomendo-lhe, por exemplo, Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, apopriado aos dias em que vivemos.
Estou mesmo no fim de A Contraluz, de Rachel Cusk, uma autora canadiana de quem ainda não tinha lido nada. Foi considerada pela revista Granta em 2003 uma das mais promissoras escritoras de língua inglesa e já publicou quase uma dezena de romances, tendo sido galardoada ou finalista de importantes prémios, tais como o Whitebread, o Somerset Maugham ou o Orange. O romance é muito curioso porque trata de como alguém que escreve (como a autora, de resto) é, em muitos casos, um ouvinte exemplar. A protagonista, que é escritora e vai fazer uma oficina de escrita em Atenas durante o Verão, está ao longo da sua estadia na capital grega com variadíssimas pessoas (o homem que veio ao seu lado no avião, uma escritora grega de sucesso, amigos gregos, os alunos do curso, a mulher que ocupará o quarto que ela alugou e chega mais cedo do que era suposto); e, na verdade, essas pessoas carregam-na com as suas histórias e ela pouco consegue dizer de si mesma aos que a rodeiam (nós, leitores, sabemos alguma coisa, apesar de tudo). Um ponto de partida interessante, mesmo que o resultado seja diferente do que eu esperava (a parte melhor é mesmo a dos trabalhos dos alunos, já mais para o fim), mas sem dúvida inteligente e original. O texto da contracapa lembra que, nos seus livros anteriores, Rachel Cusk se expunha mais, aqui sobram ainda vestígios da escritora na protagonista que, porém, se vai «anulando» nas histórias e vidas das outras personagens. Publicado pela Quetzal e traduzido por Ana Matoso.
Hoje recomendo mais uma maravilha imortal que todos devem absolutamente ler: Pedro Páramo, de Juan Rulfo. (A minha edição inclui, além desta, mais duas novelas curtas, leiam-nas também.)