Não sou muito de reler livros, sobretudo aqueles de que gostei muito, pois já apanhei uns baldes de água fria em releituras (num caso, a tradução era tão má que fiquei chocada por só o ter percebido tantos anos mais tarde). Por outro lado, tenho sempre tanta coisa para ler profissionalmente e tantos livros que vão saindo e me interessam que sobra pouco tempo para reler (mesmo que alguns clássicos lidos na adolescência ou nos primeiros anos de faculdade estejam sempre a chamar por mim das estantes). No entanto, para orientar as sessões do Próximo Capítulo, a comunidade de leitores da LeYa, reli O Nervo Óptico, de María Gainza, e descobri muitas pérolas que, das outras vezes, não tinha registado com a mesma atenção. Uma delas diz respeito a bibliotecas pessoais. Conta a história da visita da narradora a casa de uma amiga e a observação que faz das suas estantes «como um carteirista, lançando olhares furtivos». E continua: «sabia que o que estava a fazer era no fundo uma indiscrição, como remexer no armário dos remédios de uma casa de banho alheia. Não consigo evitá-lo, são ambos lugares que fornecem informação-chave sobre os seus donos.» Diz-me o que lês (e as drogas que consomes) e dir-te-ei quem és? Hum... Uma proposta muito interessante.
Como na semana passada se falou aqui de Stefan Zweig, hoje recomendo deste autor Novela de Xadrez, uma pequena pérola incrível.
Gosto muito da expressão «fazer-se difícil», e ela hoje vem muito a propósito, uma vez que condiz bem com a história que vou contar. Roubei-a no mural do meu querido autor Itamar Vieira Junior (o vencedor do Prémio LeYa com Torto Arado) e é notável, sobretudo vinda de quem vem: Faulkner, que (não por acaso) é um dos autores preferidos de Lobo Antunes e que, muito ao avesso dos seus confrades norte-americanos (habitualmente secos na prosa e mais dedicados ao enredo e à estrutura), tem uma escrita muito pouco linear, frequentemente visceral e algo exigente. Ora, parece que uma jornalista lho fez notar ao longo de uma entrevista, perguntando-lhe o que diria ele às pessoas que liam duas e três vezes passagens dos seus livros e, ainda assim, continuavam sem perceber nada. William Faulkner respondeu com graça, aconselhando-os a tentar lê-las uma quarta vez... Sobre autores difíceis (e não é que se façam de difíceis, é mesmo o seu natural), e para homenagear a pátria de Itamar Vieira Junior, recomendo Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Preparem-se: demora a entrar, e é para lá ficar dentro bastante tempo.
Há quem diga que, depois da pandemia, nada será igual; há quem, pelo contrário, declare que, passada a fase pior, tudo voltará a ser como antes (Houellebecq dizia-o num artigo recentemente publicado no Expresso). Acredito que haja mudanças... A quantidade de coisas que deixámos de comprar e que percebemos que realmente não nos fazem falta é uma delas (e o dinheiro vai ser menos para muita gente); mas mudará também a forma como os pais olham para os seus filhos pequenos, pois finalmente passaram com eles o tempo que só lhes dedicavam à hora do banho ou aos fins-de-semana. E talvez tenham descoberto que eles se entretêm maravilhosamente com um livro de histórias, uma corda de saltar, uns lápis de cera e meia dúzia de carrinhos com mais felicidade do que com o inglês, os cavalos, as aulas de piano, o atelier de cerâmica... Tomara. Como diz, numa entrevista que li há meia dúzia de dias (embora tenha mais de um ano), um homem muito sábio (refiro-me a Laborinho Lúcio), hoje «encharcamos de tal maneira as crianças com competências que nem chegamos a descobrir quais são as suas verdadeiras capacidades». Ter nascido e brincado antes do nascimento da Internet dá de facto esta lucidez impressionante. Espero que da pandemia possa nascer realmente algo de positivo quanto a este assunto.
Hoje recomendo um livro que dá para grandes e pequenos e pode ser lido pelos pais aos filhos: Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez. O autor foi Prémio Nobel da Literatura em 1956, embora em Portugal seja um desconhecido.
Como editora, prezo muito a inovação, uma vez que, à medida que o mundo avança, é cada vez mais difícil fazer-se ou encontrar-se o nunca visto. Mas, embora o material da escrita seja o mesmo que usamos para pedir uma bica em Lisboa ou dizer «continuação» no Porto com o sentido de que tudo fique bem, a verdade é que ainda há pessoas capazes de ter ideias diferentes. E, para variar, hoje nem falo nos artistas propriamente ditos, mas nos que «editam» e não são, por causa disso, menos originais. Refiro-me, por exemplo, à professora Rosa Maria Martelo, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que assina um livro intitulado Antologia Dialogante na Assírio e Alvim, do qual constam poemas de variadíssimos autores de épocas diferentes que, isso mesmo!, dialogam entre si. Imaginem quantos versos de Camões se escondem por aí em poemas alheios... Pois a professora caçou-os (a estes e a outros, citados, glosados, em alusões mais discretas ou mais óbvias) e constrói uma interessante colectânea poética, toda ela teia, que é também uma espécie de jogo de espelhos. E alguns dos poetas que «roubam» (e que bem o fazem) aos antecessores também acabarão roubados, o que tem certa graça. Enfim, para quem gosta de poesia e jogo limpo, uma obra inovadora.
E, como falei de Camões, é ele quem hoje vos recomendo (a lírica, mesmo que Os Lusíadas sejam a obra maior da nossa língua), até porque, no centenário de Amália Rodrigues, que se comemora desde segunda-feira passada, faz sentido reler um soneto do mestre que está na origem de uma das maiores inovações da diva: cantar os eruditos!
No livro de João Tordo que referi recentemente neste blogue, Manual de Sobrevivência de Um Escritor, numa espécie de conselho àqueles que querem tornar-se escritores e submeter o seu primeiro manuscrito a um editor, o autor recomenda que sejam humildes e saibam ouvir. Mas também conheço muitos jovens escritores que entendem humildade como subserviência e preferem não publicar o seu livro a ouvir uma crítica ou ter de mexer uma linha no seu manuscrito. A humildade tem que se lhe diga... Li recentemente que os famosíssimos irmãos Goncourt (sim, aqueles que deram nome ao célebre prémio literário francês e são referidos sempre que alguém fala dos intelectuais da sua época), escritores e homens ricos e cultos que conheciam absolutamente todos os confrades e artistas seus coetâneos, têm na sua sepultura em Montmartre apenas os respectivos nomes e as datas de nascimento e morte, mais nada. Porém, se a maioria das pessoas sempre interpretou tal facto como prova da sua humildade, a verdade é que o comentário de Jules Renard no seu diário sobre esta situação faz cair na decisão uma nódoa de ambiguidade. Humildade?, duvida Renard. Qual quê! Pelo contrário, eles acharam que eram de tal forma conhecidos que bastavam os seus nomes para toda a gente saber quem ali repousava...
Nunca li nada de Renard (a não ser pequenas citações em livros de outros autores), mas ando mesmo com vontade de o fazer (até porque essas citações aparecem em obras de escritores muito distintos e de idades diferentes). Não posso, por isso, recomendá-lo para já, mas conto fazê-lo em breve. Li em jovem, para uma cadeira de Francês, parte de uma biografia de Maria Antonieta feita pelos irmãos Goncourt, mas não sei se está cá traduzida. Escolho então um romance que recebeu o Prémio Goncourt já neste milénio e que fala do mundo dos artistas e críticos com verrina que baste (como a de Jules Renard): O Mapa e o Território, de Michel Houellebecq.
Agora, que por causa da pandemia todos pensamos mais frequentemente na morte e, sobretudo, no medo de morrer, as cenas em que a morte está presente nos livros que lemos saltam mais à vista e tenho vindo a sublinhar algumas (eu, que nem sou de sublinhar livros). Mas, pior do que o medo de morrer, é certamente o medo de ficarmos diminuídos mentalmente com o tempo, ou mesmo de perdermos o tino, o que para um artista será, creio, ainda mais terrível. Stravinsky, quando já estava no fim da vida e a mulher lhe perguntava se precisava de alguma coisa, respondia brilhantemente que apenas precisava de ter a certeza da sua própria existência, o que é também uma forma de se assegurar da própria lucidez e saber-se vivo. Somerset Maugham não teve grande sorte quanto a isso, pois diz-se que, depois dos oitenta, baixava as calças em qualquer lado e fazia cocó atrás dos sofás, num caricato e triste regresso à primeira infância. Goethe, porém, manteve-se com a cabeça fresca até muito tarde (sobretudo se tivermos em conta que no seu tempo as pessoas morriam bastante mais novas do que hoje); passou os 80 anos com uma saúde de ferro e a mente a funcionar em beleza (Fausto é dessa altura) e só aos 83 acabou por sucumbir a uma trombose e perder a fala, mas diz-se que, mesmo assim, continuou a escrever letras na manta que lhe cobria as pernas, com pontuação e tudo!, como só pode acontecer a um verdadeiro génio. Sobre o livro em que tudo isto e muito mais nos é contado, falarei um dia destes, quando o terminar.
Hoje recomendo, por piedade deste fim de Maugham, que não merecia, O Fio da Navalha, o Véu Pintado ou A Servidão Humana, mas ele foi um autor prolixo, há muito por onde escolher.
Todos os que leram e estudaram Os Lusíadas devem lembrar-se bem da palavra «Taprobana» logo na primeira estrofe. Porém, se lhes perguntarem onde fica, muitos provavelmente já não o saberão. Pois bem, Taprobana foi um dos nomes que o Sri-Lanka teve no passado, além, claro, de se ter chamado Ceilão (coisa de que não nos teremos esquecido tão facilmente). Vem isto a propósito de um thriller histórico de Eduardo Pires Coelho, cujo título é justamente Taprobana, que cruza a história da chegada dos Portugueses a essa ilha no século XVI (e as batalhas que ali travaram com os cingaleses) com a morte misteriosa de um cientista do Sri Lanka na Lisboa actual, morte essa que está relacionada com um mosteiro que já existia no tempo em que Portugal dominou o Ceilão. Com muito ritmo e suspense, cheio de informação histórica interessante (e desconhecida da maioria dos leitores, aposto), agradará a quem goste de uma boa história e também de História. Mas, se quiserem saber mais, esta semana vai haver um evento dedicado ao livro no Museu da Farmácia que será transmitido em directo online e ficará gravado, circulando nas redes sociais. Eu vou estar a ver.
Sem desvendar porquê, mas relacionado com este livro, recomendo a consulta de um clássico português do século XVI: Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia..., de Garcia de Orta.
Não sou, já aqui o disse, grande apologista de cursos de Escrita Criativa. Parece-me que o talento não se arranja neles e que muitos dos seus frequentadores sem talento atafulham depois a minha caixa de correio electrónico com propostas que mais valia terem ficado na gaveta (ou até por escrever). Mas também sei que muitos destes cursos podem ajudar os que já têm talento a organizar as ideias, a encontrar o tom, ou até a escrever melhor um texto que nada tenha que ver com ficção. E não duvido de que ouvir «lições» de quem é profissional da escrita é certamente uma benesse. Até por isso, interessei-me pelo livro Manual de Sobrevivência de Um Escritor, de João Tordo, que acrescenta ao livro um subtítulo que desarma: o pouco que sei sobre aquilo que faço. E nem é porque ele me recorde no seu caminho de escritor num ou noutro passo do livro (fui sua editora muitos anos) que o recomendo aqui, mas sobretudo porque, longe de funcionar como a maioria desses cursos, é um conjunto de experiências e conselhos para quem pensa tornar-se escritor que servirá, em muitos casos, para que alguns escolham mesmo outra vida... É que, como sabe quem escreve (e João Tordo teve de lutar muito para poder sobreviver escrevendo a tempo inteiro), não é uma vida fácil... Vale muito a pena ler e levar a sério. Tiro o chapéu, aliás, a várias afirmações que muitos outros escritores que conheço nunca fariam. Leiam-no, pois.
Hoje recomendo também um livro de um homem que não escreveu sobre a escrita, mas sobre a leitura: Dicionário dos Lugares Imaginários, de Alberto Manguel (que leu para Borges em jovem), mil e tal páginas maravilhosas sobre mundos que só existem nos livros, como Avalon, Xanadu, Macondo e muitos mais.
Soube recentemente uma história muito curiosa através de um post publicado no Facebook pela tradutora Maria do Carmo Figueira. Certamente se lembram dos Peanuts, um cartoon ultra-inteligente de Charles Schulz, protagonizado por Charlie Brown e os seus amiguinhos e colegas (além do Snoopy, claro). Na tira deste comic, altamente popular por ser publicada diariamente nos jornais, apareceu em 1968 uma nova personagem que pôs os Estados Unidos em polvorosa. Chamava-se Franklin Amstrong e era a primeira personagem negra dos Peanuts (e provavelmente da maioria dos cartoons norte-americanos). Mas de quem foi a ideia? Não de Schulz, mas de uma professora que lhe escreveu uma carta na sequência do assassinato de Martin Luther King. Consciente da influência dos Peanuts nos jovens norte-americanos e tendo trabalhado muito com crianças, dizia que raramente se encontravam BD, livros ilustrados e cartoons em que estivessem representadas juntas crianças negras e brancas numa sala de aula; e que, se Schulz estivesse aberto a introduzir uma criança negra nos seus Peanuts, ajudaria decerto a que os mais novos percebessem que os negros não eram os excluídos da sociedade e a que, assim, a situação se alterasse para evitar mortes como a de Luther King. Schulz confessou-lhe o receio de poder parecer apenas condescente, mas a professora e o cartoonista trocaram uma longa correspondência, até que finalmente apareceu na tira de um jornal Franklin Armstrong, um rapaz negro americano cujo pai estava... na guerra do Vietname a defender o seu país (esta foi um golpe de génio). Muitos negros, ao que se diz, choraram de comoção nesse dia 31 de Julho de 1968. E a professora, estou certa, terá chorado de alegria. Uma bela história que começou assim:
Para hoje recomendo Os Pretos de Pousaflores, de Aida Gomes, um livro sobre os três filhos mulatos de um português «retornado» à aldeia pequena (e racista) em que nascera, em 1975. E, porque ontem me esqueci completamente de recomendar uma leitura (como a Bibi referiu), do que peço desculpa, proponho hoje que leiam álbuns da Mafalda, de Quino, ou de Calvin & Hobbes, de Bill Watterson.
A Sociedade Portuguesa de Autores é das instituições que menos parou durante o confinamento imposto pela pandemia, apoiando os autores nestas horas difíceis em que não puderam tantas vezes trabalhar (e por «autores» quero dizer criadores em todas as áreas, da música à pintura, passando pela fotografia e, claro, pela literatura). Mas a SPA também aproveitou o tempo para criar projectos novos, um dos quais é a divulgação no seu site de entrevistas gravadas ao longo dos anos a grandes figuras da cultura portuguesa, algumas das quais, de resto, deram origem a livros. A divulgação destas entrevistas é uma forma de não só nos dar a conhecer os «autores», mas também de registar para o futuro perfis de personalidades como António Victorino d'Almeida, José de Guimarães, Graça Morais, António-Pedro Vasconcelos, António Torrado, Fernando Tordo, João Abel Manta, Mário de Carvalho, Eduardo Lourenço, Artur Cruzeiro Seixas, Mário Cláudio e outos. Novas entrevistas estão em curso. As datas de divulgação serão anunciadas oportunamente.