Os meus pais foram bastante liberais para a época e nunca chatos nem bota-de-elástico, embora nem sempre tenha sido fácil ser filha deles (tinham o seu feitio, enfim). Muitas vezes me têm pedido que escreva sobre esse duo, principalmente depois de tê-lo feito num texto que li nas Correntes d’Escritas há uns anos e de o fazer de passagem nas minhas crónicas. Mas sempre senti que teria de encontrar o tom certo para isso, tal como o encontrou Richard Ford ao escrever Entre Eles:Recordando os Meus Pais, um livro que reúne dois relatos escritos com quase trinta anos de intervalo: o primeiro pouco depois da morte da mãe (que chegou a ter uma publicação independente em vários países) e o segundo bastante mais recentemente, cujo protagonista é o pai, que morreu à frente do escritor tinha ele dezasseis anos. Este texto sobre o pai é, ainda assim, um texto sobre o casal, a forma como se conheceram, a sua paixão, a sua vida a dois pelas estradas da América profunda (o Ford pai era caixeiro-viajante) e a forma como o filho, que veio ao mundo quando já ninguém estava à espera, revolucionou a vida desse par, obrigando-o a regras que nunca tivera e até à decisão de ter um lar algures, coisa com a qual Edna e Parker nunca tinham estado muito preocupados. Um livro belíssimo sobre os laços familiares de um tipo que não me importava de escrever sobre os meus pais. Recomendo-o sem reservas a todos os leitores. A tradução é de Tânia Ganho.
Ora sejam bem-vindos de novo a este blog, findo que está o período de férias. As minhas foram boas e espero que as vossas também. O tempo deu para ler e reler muita coisa e nos próximos tempos falarei de tudo isso, mas hoje, como é de regra, aproveito para falar do livro que ando a ler e esse tem tudo que ver com a epidemia que actualmente assola o mundo, embora tenha sido escrito muitos anos antes de termos ouvido falar dela. Trata-se de A Peste, de Albert Camus, e em certas passagens parece que é um romance dos nossos dias, embora nele a doença esteja confinada a uma cidade cujas «portas» foram cerradas para a conter, não podendo dela entrar nem sair ninguém. E conheceremos, entre muitas outras personagens curiosas, um homem que cospe da sua varanda para cima dos gatos; o médico que deixou a mulher doente partir uns dias antes de eclodir a peste para se tratar na montanha e que agora só sabe dela por telegrama, nunca tendo a certeza se que o que lê é verdade; um homem que se enforca e pendura um aviso na porta para o salvarem; ou o jornalista que foi àquela cidade para fazer entrevistas para uma reportagem e ficou obrigado a permanecer num lugar que não é o seu e de que tem de sair a todo o custo, sob o risco de perder a namorada que arranjou recentemente. Quem narra a história é um mistério (suspeito de que terei de chegar ao fim para descobrir), mas, claro, os clássicos são o que há de mais seguro em termos de leitura e, portanto, estou a navegar em páginas pestilentas mas incrivelmente vivas. Espero que as vossas leituras também estejam a ser compensadoras. Bom regresso.