Recebo a notícia de que é já amanhã que, em Almada, se vai realizar um festival dedicado à narração oral, talvez a mais antiga forma de transmissão literária que se conhece. Eu adoro ler alto e penso que todas as crianças deveriam fazê-lo na escola e em casa, pois está provado que tem enormes vantagens para a fidelização à leitura; e gosto também de ouvir ler quando o narrador, dizedor, declamador (seja lá o que for), sabe convencer-nos e atrair-nos. Já ouvi uma actriz ler um conto infantil de David Machado maravilhosamente e escutei até ao fim, na verdade tão interessada como uma criança. Ora, entre as 11h e as 17h de amanhã, é uma boa altura para ouvirmos ler narradores profissionais e convidados neste Rio de Contos, que vai já na sua quarta edição: Ana Figueiras, Cláudia Pulquério, Paula Salema e Telma Marreiros, bem como Ana Sofia Paiva, Luís Carmelo, Paula Carballeda, Patrícia do Carmo, Ricardo Ávila, Thomas Bakk e Válter Peres. A narração será também traduzida para língua gestual portuguesa. Para quem não possa estar no Fórum Municipal Romeu Correia, em Almada, e queira assistir de longe pelo computador, então vai ser preciso fazer a inscrição aqui:
Uma vez ouvi contar a história de umas pessoas que, quando voltaram de férias, tinham a casa vazia. Uma camioneta de mudanças aparecera para empacotar o apartamento e, como era Agosto e estava toda a gente de férias, ninguém desconfiou de que não fossem profissionais (eram profissionais, mas do roubo). Curiosamente, deixaram apenas uma coisa: os livros… É triste, mas é cada vez mais verdade que as pessoas não estão interessadas em ler. E, porém, Amosse Mucavele, que foi curador da Feira do Livro de Maputo durante vários anos, contou no Facebook uma deliciosa história: trouxe de um alfarrabista uma série de livros emprestados e, de repente, descobriu que, entre eles, estavam livros que pertenciam a um seu amigo, tinham lá o nome dele e tudo, embora nunca o tivesse ouvido dizer que fora vítima de roubo ou que os emprestara a um… ladrão, mas também não o achava capaz de os ter vendido. Agora o dilema é se os devolve… e a quem. Depois disto, tornou-se mais atento e já encontrou muita coisa nos alfarrabistas que é, de facto, oriundo de bibliotecas de amigos e conhecidos. Nunca compra esses livros, por precaução… Mas, se foram roubados ou vendidos por algum amigo a quem foram emprestados, isso quer dizer que ainda há países onde os livros são, pelo menos, cobiçados por várias pessoas.
Sim, sei que o título deste post empurra para assuntos do coração, mas não é nada disso. Falo, para que saibam, do poeta Joaquim Namorado porque acabo de ver que a sua obra poética reunida num volume intitulado Sob Uma Bandeira vai ser apresentada no próximo dia 17, no Museu do Neo-Realismo, pela não de Fernando Pinto do Amaral e com a presença de António Redol, filho do escritor Alves Redol. Joaquim Namorado dirigiu a revista Vértice em Coimbra, para onde o Manel escrevia quando ali estudava na Faculdade de Direito; quando, porém, decidiu vir para Lisboa acabar o curso, foi comunicar a sua mudança para a capital a Joaquim Namorado, querendo saber se continuava a colaborar com a revista e explicando-lhe que, enfim, era em Lisboa que viviam os escritores e que estava desejoso de os conhecer. Foi então que o matemático e poeta estalinista lhe deu uma forte cachaçada e o preveniu: «Os escritores são para ler, e não para se conhecer!» Quanta razão, mestre. Há mesmo alguns que nem deviam pôr os narizes fora das suas casas.
Nestes dias que correm, sinto-me cada vez mais ultrapassada e fora de cenário, em vésperas de arrumar as botas e, como Herculano, retirar-me para um ermo qualquer. Enquanto há cada vez menos gente a ler, as discussões nas redes sociais tornam-se de uma esterilidade confrangedora – e ainda por cima carregadas de ódio – quando os problemas realmente graves continuam todos por resolver (além da fome, da precariedade e do desemprego, por exemplo, os refugiados do campo de Moria que Portugal disse que receberia continuam lá, e a dormir no chão). Enfim, sinto que tudo está a ser dominado de forma completamente cretina pelo politicamente correcto; e, se é óbvio que as situações de injustiça e desigualdade devem ser combatidas, chegou-se agora a excessos difíceis de aceitar. Recebi esta semana, de uma agente literária, a proposta de um livro que está ainda a ser escrito, mas pelo qual uma editora de nomeada nos Estados Unidos já avançou uma enorme quantidade de dólares. A agente está super-entusiasmada com a originalidade e diz-se convencida de que vai ser um êxito em todo o mundo. Fiquei curiosa o bastante para passar à sinopse, mas fui ficando de cara à banda à medida que a lia. O tema? Pois bem, mais ou menos isto: a tinta branca é racista. Pintar as nossas casas de branco não é inocente nem está isolado da supremacia branca. (Não sei como os arquitectos vão lidar com isto, mas estão tramados.) Para dizer a verdade, ainda pensei que fosse um livro humorístico, mas, lendo o texto até ao fim, percebi que não é uma piada, que pretende mesmo ser sério. Devo ser então eu que estou já fora de tempo e de jogo e acho isto estúpido e perigoso, porque alimenta conflitos onde não os havia (e já chegam os reais, ou não?). E, como adoro luz e tenho, por acaso, a minha casa toda pintadinha de branco, o melhor é preparar-me para ser considerada uma racista insuportável. Não tarda muito ainda vão desaconselhar o leite, diz uma colega minha. Adeus, futuro.
Costuma dizer-se que não há fome que não dê em fartura... e é o caso. Depois de meses de publicação de livros que não puderam ser lançados ao vivo por razões óbvias (e antes que a situação piore e nos voltem a confinar), as editoras Abysmo e Nova Mymosa fizeram, na segunda-feira dia 5, dia de comemorar a República, no espaço lisboeta do Espelho d'Água, uma maratona de doze lançamentos conjuntos, com apresentações e leituras ao longo de quatro horas e transmissão online para quem, apesar de tudo, continua com medo de sair. Os livros são pequenos, evidentemente, alguns de pouco mais de vinte páginas, e alternam entre poesia e prosa. Entre eles, contam-se os de autores como Márcia Balsas, Mónica Camacho, Andreia Azevedo Moreira, Pedro Loureiro, Isabel Olivença, Luís Carmelo, José Mário Silva, João Paulo Cotrim, Vasco Gato e Paulo José Miranda, este último o primeiríssimo vencedor do Prémio Literário José Saramago com a novela Natureza Morta. Muito que ler!
No final do ano passado, quando o escritor cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, ex-ministro da Cultura do seu país, esteve em Portugal para lançar o seu mais recente romance O Diabo Foi Meu Padeiro, sobre o campo de concentração do Tarrafal e as suas vítimas ao longo do tempo, infelizmente não teve agenda para fazer uma apresentação no Museu do Aljube Resistência e Liberdade, em Lisboa, como tínhamos planeado e fazia, aliás, todo o sentido, dado o tema. Porém, como o autor é também músico e tinha concertos agendados em Portugal esta semana, lá conseguimos um buraquinho para organizar esta tarde a sessão, na forma de uma conversa, seguida de um momento musical. Estão todos convidados, claro. (Mas para verem em streaming, porque com a pandemia os lugares já foram todos preenchidos.)
Quem gosta da língua portuguesa, raramente resiste a comprar tudo o que tem que ver com ela. E foi, aliás, por isso que corri pelo meu exemplar de Pontuação em Português: Guia Prático para Escrever Melhor, de Marco Neves, professor universitário e grande divulgador, com várias obras publicadas e um blogue muito curioso e pedagógico chamado Certas Palavras. Não que eu não saiba pontuar (alguma coisa aprendi nestes trinta anos de leituras e edição); mas este instrumento simples e claro ajuda a explicar a potenciais autores aquilo que estão a fazer mal em termos de pontuação, embora fique com pena de que o autor não tenha guardado umas páginas para explicar como se usa a pontuação dentro e fora de aspas, pois esta é talvez a coisa em que os autores, mesmo experimentados, mais dificuldades têm. Ainda assim, o guia é muito útil para quem tem dúvidas se deve ou não pôr vírgula em determinado lugar da frase, bem como uma boa lição para as raparigas que enchem os seus textos de reticências e pontos de exclamação desnecessariamente. E, ainda por cima, é baratíssimo!
Há mais de vinte anos que me preocupo em encontrar novos escritores de qualidade na massa tremenda de originais que vem parar-me às mãos. Mas em todas as áreas deve ter havido nestes mesmos vinte anos quem o mesmo fizesse (escarafunchar); e agora há um livro intitulado Lugar dos Novos que fala disso mesmo, dos novos autores (alguns já nem são assim tão novos), apoiado pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e publicado pela Guerra e Paz. Da música à escrita, da televisão ao teatro e ao cinema, os autores falam dos seus percursos artísticos e pessoais em entrevistas dadas à jornalista Ana Aranha para a rubrica «Lugar dos Novos», que é transmitida no programa televisivo Autores. «Lê-lo é saber o que pensam os mais novos membros da comunidade autoral portuguesa», diz o comunicado da SPA; e, entre eles, estão as escritoras de livros infanto-juvenis Maria Inês Almeida e Isabel Zambujal, o músico e cantor João Pedro Portugal ou o pianista Ruben Alves, só para dar alguns exemplos. Segundo a SPA, o livro é também «um retrato humano, ágil e diversificado desta realidade, que nos dá uma garantia importante para o futuro: a de que de irão nascer muitas outras obras nas próximas décadas». Oxalá!
Houve quem achasse um autêntico atrevimento um escritor negro resolver escrever nos anos 1950 uma história escaldante sobre a relação entre dois homens brancos homossexuais. Houve até quem achasse que o livro não seria publicado nos Estados Unidos, terra natal do autor. Mas O Quarto de Giovanni quebrou fronteiras e barreiras e espantou meio mundo, confirmando James Baldwin, auto-exilado em Paris, como um dos mais arrojados escritores norte-americanos de sempre. Este é um livro sobre a descoberta da homossexualidade de um jovem norte-americano em viagem pela Europa quando se separa por uns dias da namorada e conhece Giovanni, o imigrante italiano que é barman num clube nocturno, e se apaixona por ele, embora sinta sempre que a relação é a prazo, uma vez que tem na mira casar-se em breve e o pai não vai continuar a mandar-lhe dinheiro dos Estados Unidos enquanto não regressar para lhe apresentar a noiva. As descrições deste idílio/inferno no quarto de Giovanni (quarto sujo, desarrumado, pobre) são extremamente avançadas para a época em que o livro foi escrito e sentimos a todo o momento que este triângulo amoroso está sempre à beira do rasgão, mesmo não conseguindo antever qual será o final. A tradução é do escritor Valério Romão. Sobre James Baldwin, não convém perder também o documentário I’m not your negro, absolutamente brilhante, e Se Esta Rua Falasse, sobre o qual já aqui escrevi.
Estou cada vez mais convencida de que o consumidor final é a única coisa em que hoje se pensa quando se produz um artigo; e, se até há alguns anos a cultura era excepção, pois tudo mudou. Muita gente já não sabe quem escreveu o livro que anda a ler, o que é verdadeiramente triste (embora fosse pior se o livro não chegasse a ser lido), e os autores (seja em que área for) estão relegados claramente para segundo plano. Num anúncio de página inteira do Público do dia 29 de Setembro último, publicitava-se um filme em DVD que vai ser vendido com o jornal a partir do próximo dia 9. Encabeçava a página a frase melosa «A mais bela história de amor...» (com reticências e tudo); e, sobre a fotografia de duas lindíssimas jovens de olhos fechados no momento pré-beijo ardente (as actrizes, bem entendido: uma loura, a outra morena), um texto em duas colunas resumia o enredo desta «história de amor avassaladora» (o adjectivo é sempre o mesmo) e, ao lado, elencava os prémios que o filme ganhou ou para os quais foi nomeado (e são uns quantos). Na base da página, o título Retrato da Rapariga em Chamas, a data a que o DVD estará à venda e o preço (9,99 € com o jornal). Mas... De quem é o filme, alguém me diz? Não. Numa foto minúscula da capa do DVD a um cantinho, o realizador não é sequer legível. Se os autores, que são os responsáveis pela criação artística, já não têm uma linha para eles num anúncio de pagina inteira... Adeus, futuro