Estamos no final de um ano que foi para esquecer (mas que não será esquecido, suspeito, pela sua singularidade). O vírus mudou as nossas vidas e separou-nos frequentemente dos que amamos, às vezes da pior maneira. Proibiram-nos os abraços e os beijos, passámos a respirar atrás de máscaras, cancelámos mil jantares, viagens e encontros com amigos. Tivemos medo de pôr o nariz fora da porta, desinfectámos as solas dos sapatos, as patas dos cães e as compras do supermercado, fomos impedidos de passear em muitas tardes de fim-de-semana. Para mim, que até gosto de recolhimento e silêncio, foi um ano tremendo, com cujos efeitos (directos e indirectos) ainda estou a tentar lidar. Mas houve algumas boas surpresas: os dois prémios maiores da literatura brasileira atribuídos a Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, o Man Booker Prize International para O Dessassossego da Noite, o romance de estreia de uma holandesa, Marieke Lucas Rijneveld, que comprei já em plena pandemia; o Grande Prémio de Tradução Literária para Guerra e Terebintina, do flamengo Stefan Hertmans, que publiquei no início de 2019. Enfim, apesar da cacetada que levou o mercado do livro, sempre houve algumas boas notícias. Agora vem aí uma vacina e vamos lá ver quando poderemos respirar fundo e beijar e abraçar. Para já, vamos tentar que o Natal não estrague o início do ano. Por isso, tenham juízo e protejam-se. Quero ter-vos cá em 2021. Sim, só voltarei ao blogue em Janeiro. Entretanto, leiam livros. O QI humano, que regra geral aumentava de ano para ano desde há quase um século, está em queda de há dez anos a esta parte. Entre outras coisas, pela pobreza da linguagem utilizada originada pela falta de leitura. Vacinem-se também contra a ignorância. E boas festas para todos!
Quando Mia Couto publicou o livro Jesusalém, juro que levei mais de um dia até perceber que a capa não dizia «Jerusalém», como inicialmente pensara, e a perceber a genialidade de um autor que é um (des)construtor maravilhoso da língua portuguesa (a minha/sua palavra preferida é «esparramorto», que diz logo tudo e é bem colorida). Nos últimos romances que li de Mia Couto a língua pareceu-me menos inventiva, como se o autor estivesse a tornar-se mais sério com o passar do tempo; mas, enquanto isso, herda essa elasticidade linguística a obra de Ondjaki, escritor que acaba de publicar o Livro do Deslembramento (que também levei algum tempo a perceber que não era «Deslumbramento»). Ondjaki, numa recente entrevista sobre esse livro que tem que ver com o regresso à infância, disse que o escreveu em língua «desportuguesa» e que não opera «com língua de dicionário, mas com língua de barro». Leio-o citado por Nuno Pacheco num artigo do Público, em que aparece ainda a explicação do autor angolano de que esta língua é a que provém de moldar «o barro indomável da fala que vai aos poucos enriquecendo os dicionários». Nuno Pacheco diz que há outros escritores que trabalham esta língua de barro (Manoel de Barros, Guimarães Rosa, Luandino Vieira, ou mesmo O'Neill em alguns textos), mas que as crianças é que são peritas em moldar palavras pela deturpação de outras, «como quem vira brinquedos do avesso». Viva então o desportuguesamento voluntário e criativo. E leiam-se artigos assim interessantes.
Eu gosto muito de silêncio. Tenho dificuldade em pensar se houver pessoas por perto a conversar, seja ao vivo, seja na rádio e na televisão. Penso menos mal, é certo, se for num sítio em que muita gente fala ao mesmo tempo e indistintamente, como num aeroporto, por exemplo, em que as falas se tornam uma espécie de ruído de fundo que não me incomoda. No entanto, o silêncio das igrejas e das bibliotecas é de ouro, ambas são templos sagrados onde se pode pensar sem interferências. Borges dizia que o mais parecido que havia com o Paraíso eram as bibliotecas, e talvez não andasse longe da verdade. Nas bibliotecas há uma enorme paz, já repararam? E essa paz não advém apenas do silêncio imposto aos leitores durante a sua permanência naquele espaço, mas também do facto (inspiro-me agora num livro que ando a ler e de que falarei aqui no blogue oportunamente) de ser um dos poucos lugares onde coexistem em plena comunhão adversários políticos, países em guerra, línguas vivas e mortas, autores que se odeiam, criminosos e vítimas, enfim, os exemplos podiam nunca mais acabar... Para mim, que gosto tanto de ler, passar a eternidade numa biblioteca como terá sido, por exemplo, a antiga Biblioteca de Alexandria seria um presente dos deuses.
Já aqui disse que, para quem domine língua inglesa, o The Guardian tem sempre um programa cultural interessante a nível de palestras e oficinas; e qual não é o meu espanto quando descubro há umas semanas que o enorme George Saunders, que já ganhou o Man Booker Prize com o seu estranhíssimo e maravilhoso Lincoln no Bardo (que trata da morte de um dos filhos do presidente norte-americano numa noite em que havia uma festa na sua casa), vai participar no clube do livro do jornal em 28 de Janeiro próximo. O meu espanto tem também que ver com a terrível coincidência de, nesse dia, quase à mesma hora, eu estar a cumprir uma função semelhante (embora com menos brilhantismo, é óbvio, Saunders é genial) e de, por honrar sempre os meus compromissos, não estar disponível para ficar a ouvir o escritor norte-americano perorar sobre o seu romance premiado, que não é um romance qualquer, ou não é um romance sequer, ou até é capaz de ser, sei lá. Como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, prefiro fazer o bem (que também me faz sentir bem), deixando o link para os sortudos que se queiram inscrever (pagando e tornando-se membros, claro) e tenham disponibilidade nesse dia:
Tenho saudades de ir a todo o lado: a Espanha, que visitava com frequência antes disto tudo, ao Norte, onde tenho família e amigos, aos museus, aos espectáculos e, claro, às sessões lindas das Quintas de Leitura, no Teatro do Campo Alegre, no Porto. A última do ano de 2020 realiza-se hoje mesmo, com muitas das melhores vozes que ali dizem poesia (além dos queridíssimos Pedro Lamares e Filipa Leal): Susana Menezes, Teresa Coutinho, António Capelo, Paulo Campos dos Reis e a participação especial de Miguel Pereira Leite. Muito apropriadamente, a sessão chama-se «Juntos Inventaremos a Rosa-dos-Ventos», um verso roubado a Fernando Alves dos Santos, e abre com a intervenção de Afonso Cruz, que vai contar histórias de poemas com a cumplicidade de Ana Celeste Ferreira (voz) e Ricardo Caló (piano). Mas haverá, além da poesia, músicas de Luca Argel e, para fechar a sessão, um show de Tó Trips. Joana Rêgo vai dar imagem a esta quinta tão especial. Quem me dera lá estar, mesmo de máscara.
Não sei se já sabiam, se até já participaram nele, mas o SAPO 24 tem um clube de leitura mensal em que toda a gente se pode inscrever. O seu nome é É Desta Que Leio Isto e, habitualmente, dedica-se a um livro específico (o «isto» da frase) e tem por convidado um autor, editor ou alguém que tenha que ver, de certa forma, com o tema do livro em apreço. Eu já tinha sido convidada uma vez para a sessão dedicada a Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral, na qualidade de editora, mas infelizmente já tinha um compromisso nesse dia e não pude ouvir a conversa; e agora fui convidada para, no dia 21 às 21h30, numa versão do clube um pouco diferente e a pensar nos presentes de Natal, aconselhar uma meia dúzia de livros e falar um pouco de cada um deles os os participantes. A escolha vai ser variada, porque tenho de pensar que, do outro lado do ecrã, estão pessoas muito diferentes e nem todas com o mesmo gosto ou nível de leitura, mas garanto que vou dar boas sugestões a quem quiser oferecer livros neste Natal. Para a inscrição, basta preencher o formulário no link abaixo. Vamos lá ver se é desta!
Quando acabo um livro, demoro a escolher o seguinte entre tantas e tantas hipóteses e, pelo caminho, acabo por ler coisas pequenas que matam (fazem viver) uma ou duas noites de indecisão. Foi esse o caso com esta pérola de que hoje vos falo: Uma Paixão Simples, da escritora francesa Annie Ernaux. Quem já se apaixonou a sério alguma vez, entenderá este livro até ao osso, quando a pessoa que amamos ocupa realmente tudo dentro de nós e passa a comandar o nosso tempo, os nossos pensamentos, as nossas acções, neutralizando tudo o resto. Este é um livro brutalmente sincero sobre uma relação amorosa (presumo que autobiográfico) de uma mulher divorciada com um homem mais jovem, estrangeiro, belo, casado, a morar temporariamente em França. E sobre o que essa relação consome quando se concretiza, mas sobretudo enquanto não se concretiza, quando o homem não aparece, não telefona, não nada. Uma maravilha também por ser um livro sobre a paixão e sobre o contar da paixão, que são coisas muito diferentes e que surpreendem a própria narradora na leitura do que ela própria escreveu. Muito bom mesmo, não percam por nada deste mundo. Se houver alguém que não se reveja nele, é porque nunca amou perdidamente.
A Fundação Calouste Gulbenkian tem servido de exemplo em muitas áreas, desde a arquitectura paisagista, por causa dos seus belos jardins desenhados por Ribeiro Telles,até à ciência, por causa do Instituto Gulbenkian de Ciência, passando pela sua biblioteca magnífica, pelo Museu, pelo apoio à artes ou mesmo pelos seus concertos e a sua orquestra. Mas raramente se fala na Gulbenkian editora de livros, e não só a Fundação tem sido extremamente importante para a publicação de obras relacionadas com temas altamente específicos que de outro modo não veriam a luz (reactores nucleares, por exemplo) como tem dado à estampa obras fundamentais que as editoras dificilmente poderiam pagar pelos custos associados ou a quantidade incrível de colaboradores. É por exemplo o caso da Gramática do Português, organizada por Eduardo Buzaglo Paiva Raposo, Maria Fernanda Bacelar do Nascimento, Maria Antónia Coelho da Mota, Luísa Seguro e Amália Mendes, cujo terceiro volume foi lançado recentemente e está em promoção, como, aliás, muitos outros livros, com descontos de Natal de 40%. Visite, pois, a loja da Gulbenkian em tempo natalício e encontrará presentes fantásticos para os que amam os livros. (Juro que não me pagaram para fazer publicidade.)
Houve, em toda a história da literatura universal, grandes contistas, alguns dos quais também escreveram romances, mas foi em todo o caso no conto que se afirmaram. Basta pensar em Cortázar, Raymond Carver ou Borges para encontrarmos a excelência neste género literário, mas também vos podia falar de Katherine Mansefield, Alice Munro, Gogol, Hemingway, James Joyce, Juan Rulfo, Tchekov, D. H. Lawrence ou a grande Flannery O'Connor. Muitos escritores de ficção começam pelo conto, e acredito que, entre os Extraordinários, haja muitos que têm contos escritos. Ora, até final deste mês ainda podem submetê-los ao Prémio Luís Vilaça, para serem integrados numa antologia que irá ser publicada em 2021. Se querem saber quem foi o patrono do prémio e mandar um original, o link aqui fica:
Elena Ferrante, escondida atrás do mistério da sua identidade, teve um estrondoso sucesso com a tetralogia A Amiga Genial (li os três primeiros e depois apeteceu-me «mudar de ares», não tendo regressado à obra nem sabido o que aconteceu às protagonistas no final da vida, mas um dia terei oportunidade). Depois, um jornalista italiano revelou a sua identidade e muita gente pensou que tudo se desmonoraria; mas, afinal, parece que isso não afectou o interesse dos leitores pelos seus livros que estão, regra geral, entre os mais vendidos em toda a Europa. Ferrante foi, aliás, convidada para escrever uma crónica no fantástico The Guardian, jornal que também lhe pede de vez em quando que se pronuncie sobre assuntos específicos. E há pouco tempo, estando as mulheres na ordem do dia, foi-lhe solicitada a sua lista de livros preferidos de mulheres. Entre eles, encontram-se escolhas inescapáveis ou de certa forma esperadas, como O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion, ou Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie, mas também A Pianista, da nobelizada austríaca Jelinek, ou o livro de Clarice Lispector A Paixão segundo GH. Mas vale a pena espreitar e prestar atenção a esta selecção. Deixo-a convosco no link abaixo.