Lembram-se certamente de que fez furor, na tomada de posse de Joe Biden como Presidente dos Estados Unidos, uma jovem norte-americana negra chamada Amanda Gorman, que leu um poema da sua autoria muito comentado. Claro que no dia seguinte todos os editores do mundo andavam a tentar comprar a obra poética da jovem para a traduzirem a correr e a publicarem nos respectivos países. Acredito que em Portugal também já esteja nas mãos de um tradutor esse trabalho, para ser editado em breve, mas não é isso que me leva a falar de Gorman hoje, e sim uma notícia completamente estapafúrdia vinda da Holanda, onde a tradução da poesia de Gorman tinha sido confiada a Marieke Lucas Rijneveld, vencedora do Man Booker International Prize com o seu primeiro romance e de outros prémios com livros de poesia. Mas eis que vêm uns críticos e apologistas de uma coisa chamada «lugar da fala» (que nega por exemplo que uma norte-americana possa escrever um romance sobre mexicanos que tentam passar o muro que Trump construiu na fronteira com o México, porque isso só pode ser feito pelos mexicanos!) dizer que lamentam muito, mas que a linda escritora tem de recusar o trabalho de tradução, porque é branca e, como tal, «não tem experiência neste campo» e nunca poderá entender os poemas de Amanda Gorman. A escritora, pressionada pela crítica, decidiu recusar o trabalho. Acho mal, pois não me parece que cor de pele dê habilidade para traduzir. E sobretudo porque a literatura é universal, não tem cor, e se assim não fosse James Baldwin também não poderia ter escrito O Quarto de Giovanni por não ser branco. Se todos entendemos o poema de Gorman quando o ouvimos (incluindo os críticos holandeses, brancos de certeza), devo depreender que, por ser branca, apenas julgo que o compreendi? O mundo está a ficar um lugar insuportável.
Em Portugal, o espaço para a crítica de livros nos meios de comunicação é tão diminuto que, na verdade, os críticos optam geralmente por promover obras de que gostam e acham que devem ser lidas, sendo geralmente brandos quando se sentem mais desiludidos com algum livro. Quando o número de títulos publicados era muito menor do que hoje, havia bastantes mais polémicas entre críticos e autores e até entre académicos «pró» e «contra» um novo autor; mas actualmente os críticos que só querem ofender ou chatear são sempre os mesmos, pelo que já poucos se inquietam verdadeiramente com o que escrevem. Isso não acontece, porém, em outros países e, especialmente aqui ao lado, os críticos espanhóis não poupam os autores a uma brutalidade às vezes excessiva quando estes já mostraram que eram capazes de melhor. É lícito, evidentemente, que mostrem desagrado, mas também acontece serem irresponsáveis e apanhados em falso, tantas vezes se percebendo que tão-pouco se preocuparam em ler até ao fim o que tão veementemente criticam. E, apesar disso, como escreveu recentemente Javier Cercas no El País, porque será que existe a «superstição» de não criticar o crítico mesmo quando a crítica é gratuita e injusta (referia-se a um texto sobre um livro de Manuel Vilas)? Normalmente, quem responde ao crítico acaba por sublinhar o que fez menos bem? Não faço ideia, mas muitas vezes aconselhei autores a ignorar o pontapé e deixar andar. Porquê? Talvez para nos pouparmos todos a mais sangue. Mas não seria lícito ripostar, abrir a ferida do outro? Uma pergunta que deixo aos Extraordinários.
Como começa o mês, está na hora de dizermos o que andamos a ler. Leio, pela primeira vez, um autor norte-americano, a morar em Chicago, chamado Jesse Ball, e o seu romance Censo. É uma escrita em que encontro algumas reminiscências de outros autores dos Estados Unidos (Cormac McCarthy, talvez por narrar uma viagem de um pai e um filho como em A Estrada, ou de DeLillo, por falar de um recenseamento populacional que raia o inexplicável ou o absurdo e implica marcar os entrevistados no corpo, como se faz às vacas...). Mas é bastante interessante como leitura, pois fala, embora de forma elíptica, do que são os Americanos, de como se vive nesse país que é um continente, e das relações que um médico em fim de vida tem com o seu filho deficiente, com as memórias da mulher (que estudou para ser palhaça) e com os outros, essa massa anónima que tem de visitar em muitas localidades de A a Z para fazer o censo. Um pouco inesperado, desperta a curiosidade pelas outras obras do autor.