Tratem-me por Ismael. Há alguns anos – não interessa quando – achando-me com pouco ou nenhum dinheiro na carteira, e sem qualquer interesse particular que me prendesse à terra firme, apeteceu-me voltar a navegar e tornar a ver o mundo das águas. É uma maneira que eu tenho de afugentar o tédio e de normalizar a circulação. Sempre que sinto um sabor a fel na boca; sempre que a minha alma se transforma num novembro brumoso e húmido; sempre que dou por mim a parar diante de agências funerárias e a marchar na esteira dos funerais que cruzam o meu caminho; e, principalmente, quando a neurastenia se apodera de mim de tal modo que preciso de todo o meu bom senso paranão começar a arrancar os chapéus de todos os transeuntes que encontro na rua – percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio. Onde, com um gesto filosófico, Catão se lança sobre a espada, eu, tranquilamente, meto-me a bordo. E não há nisto nada de extraordinário. Embora inconscientemente, quase todos os homens sentem, numa altura ou noutra da vida, a mesma atracção pelo oceano.
Herman Melville, Moby Dick, tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves
Quem acompanha estas Horas Extraordinárias (que, não sei se já deram por isso, têm quase onze anos!) sabe que raramente venho aqui falar de mim, excepto quando relato as minhas experiências de leitura ou algum episódio da minha vida, chamemos-lhe assim, cultural. Mas hoje não resisto a abrir uma excepção e avisar-vos de que estará neste dia 15 de Abril à venda nas livrarias o meu livro de crónicas intitulado Adeus, Futuro e publicado pela Quetzal com uma capa lindíssima de Rui Cartaxo Rodrigues (obrigada!) sobre pintura de Jack Vettriano (curiosamente, já tinha usado um quadro deste pintor num livro de contos Nuno Camarneiro, Se Eu Fosse Chão). Muitos dos Extraordinários já conhecem, pelo menos parcialmente, o conteúdo do livro, mas eu incluí crónicas inéditas e, além disso, ele tem como bónus um prefácio do grande cronista Ferreira Fernandes que, com a jornalista Catarina Carvalho (obrigada aos dois), faziam parte da direcção do Diário de Notícias que me convidou a escrever uma crónica semanal e que me fez aprender muito sobre este género e sobre mim, porque foi muitas vezes preciso ir ao passado (o meu) para perceber e examinar o futuro que nos espera a todos. Espero agora que quem não leu possa ler e que quem leu possa reler, se assim o desejar. As minhas maiores preocupações (excepto as pessoais, que não cabem neste blogue) estão todinhas neste Adeus, Futuro.
Comemorou-se na semana passada, mais concretamente no dia 7 de Abril, o centenário do Diário de Lisboa. Muitos dos leitores deste blogue lembrar-se-ão ainda deste vespertino que foi publicado até 1990. Era um jornal republicano que começou por ter oito páginas, mas depressa cresceu e se tornou uma publicação de referência, para a qual escreveram figuras de relevo em todas as épocas. Passaram pelas suas páginas Almada Negreiros, Aquilino, Pessoa, António Sérgio, Alexandre O'Neill e muitos outros. Nos anos 1970, o meu pai lia-me deste jornal as «Redacções da Guidinha», que eram umas crónicas aparentemente ingénuas mas com um sentido político subjacente, assinadas por Luís Sttau Monteiro, que era o director de um suplemento chamado «A Mosca». São numerosos os jornalistas conhecidos que passaram pela redacção do Diário de Lisboa, como Artur Portela, José Carlos Vasconcelos, Assis Pacheco, Mário Zambujal, Joaquim Letria ou Diana Andringa. A Família Ruella Ramos, proprietária do jornal, ofereceu uma colecção inteira à Fundação Mário Soares e Maria Barroso, que a digitalizou na íntegra e a disponibiliza para consulta a todos os interessados. É nesta fundação, nomeadamente com um colóquio no dia 30 deste mês, que se organizarão várias sessões dedicadas ao centenário do Diário de Lisboa. Fique atento.
Não sou contra o crowd-funding para projectos culturais e, além de ter contribuído, aplaudi, na oportunidade, a operação que o Museu Nacional de Arte Antiga lançou há uns anos para «pôr no lugar certo» (ou seja, no próprio Museu) A Adoração dos Magos, de Domingos Sequeira. Acompanhei, de resto, a evolução dos donativos e gostei de saber que muitos fizeram como eu e contribuíram com o que podiam. Ainda que com pequenas quantias, apoio por vezes projectos que me parecem merecer a ajuda de todos ou estarem em risco (livros, jornais, outros) e não acho mal que grandes instituições peçam dinheiro quando é a única forma, por exemplo, de deixar uma obra-prima ficar em Portugal. Parece que o nosso Ministério da Cultura pretende ajuda para a salvaguarda do nosso Património nesta época difícil; e, para isso, lembrou-se de criar uma raspadinha que todos pudéssemos comprar. Até aqui, nada de estranho. Porém, como o cronista do Público João Miguel Tavares fez notar, e muito bem, na semana passada, um estudo recente demonstra que quem compra habitualmente raspadinhas é justamente o segmento mais desfavorecido da população portuguesa, aquele que menos ganha e que mais ajudas precisa; e (acrescento eu) provavelmente aquele que menos desfruta do nosso património... Um leitor do Público, na sequência da crónica, escreveu ao director do jornal dizendo que, ainda por cima, o jogo é uma actividade viciante, geradora de dependência e, como tal, lesiva da saúde pública. Ora, juntando estes argumentos todos, está visto que a Santa Casa da Cultura tem de prescindir da outra Santa Casa para pedir aos amigos do Património misericórdia... e donativos. Raspadinha não.
Há não muitos dias falei aqui de A Cadela, da escritora colombiana Pilar Quintana, mas este não é o único livro recente com cães. Li um outro, do espanhol Arturo Pérez-Reverte, chamado Cães Maus não Dançam, que deve ter sido dos primeiros títulos a entrar nas livrarias na era pós-clausura, ou seja, em Março passado. Como bem sabem os que acompanham as crónicas do autor, magníficas, para Pérez-Reverte há valores que são incontestáveis, e um dos que lhe são mais caros é justamente a lealdade. Ora, como falar no exemplo máximo de lealdade? Usando cães, que disso são a metáfora mais-que-perfeita. Mas este livro é tudo menos um livro de cãezinhos… Como o título indica, aqui os cães são maus, são cães que os humanos converteram em animais de luta, com feridas e cicatrizes várias, orelhas cortadas e atitudes violentas; cães ferozes que atacam outros cães e seres humanos, mas nem por isso deixam de ser amigos do seu amigo, indo até ao fim na sua missão de o salvar quando ele está em risco. Não esperem uma parábola como a de Luis Sepúlveda com gatos e gaivotas, porque aqui as páginas são mais brutas do que divertidas, mas vale a pena ler este livro nem que seja porque nos permite aprender com os cães sobre… nós mesmos.
Neste confinamento forçado senti muito a falta de ir a museus, embora não tivesse a noção de ir assim tantas vezes a exposições permanentes ou temporárias quando o vírus ainda não tinha dado as caras neste mundo. De qualquer modo, se calhar, a visita a museus está também associada a viagens a outras cidades e países, outra coisa de que, fechados em casa, não conseguimos evitar ter saudades (há mesmo muito tempo que não ficava um ano inteiro sem sair de Portugal, mesmo que fosse só para dar um pulo à Galiza ou à Andaluzia). Falo, porém, dos museus porque ignoro como se conseguiram aguentar sem visitas (a conservação e o restauro de obras de arte, bem como os salários dos que ali trabalham têm de vir também das entradas pagas todos os dias pelos que os visitam) e li no The Guardian um artigo sobre o tempo que, em todo o mundo, vão levar a recuperar os museus cujas visitas foram menos 77% em 2020 do que num ano normal (12 visitantes para os 30.000 habituais em três meses aconteceu nas gravuras de Foz Coa!). Em todo o mundo, houve apenas 54 milhões de visitantes no ano passado em vez dos 230 milhões de 2019; e o investimento que estas intituições tiveram de fazer no digital para se tornarem presentes e lembradas não será amortizado tão cedo, se alguma vez o for. Um editor holandês disse-me que as vendas de livros no mercado normal baixaram na Holanda 70% nos primeiros meses de 2021 e eu suponho que cá, com as livrarias fechadas, as coisas não andem longe desses números. Maldita pandemia que nos afasta permanentemente da beleza...
Sabem os que moram em Lisboa que a zona da Almirante Reis, sobretudo entre o Intendente e o Martim Moniz, é talvez a área mais multicultural de toda a capital (leio que tem mais de 90 etnias, caramba!). Se tiver tempo e paciência para se meter pelas ruelas da Mouraria ou por outras dos bairros adjacentes, não conseguirá deixar de reparar nas mercearias de produtos alimentares russos, por exemplo, bem como nos pequenos restaurantes indianos, chineses, nepaleses ou de kebab, entre muitas outras especialidades estrangeiras. Já me aconteceu um dia estar num destes restaurantes, perto do Mercado de Arroios, e dois empregados estenderem de repente um tapete no chão e começarem a rezar. Admirado? Não fique. Esta é a belíssima Lisboa de todas as cores e feitios que agora tem uma estrondosa novidade: a primeira biblioteca do Médio Oriente em Portugal! Sim, os livros que, segundo ouvi na TSF, começaram já a chegar às prateleiras desta biblioteca foram doados sobretudo por embaixadas (dos Emirados, de Marrocos ou da Tunísia) e ocuparão uma sala da Biblioteca de S. Lázaro, à Rua do Saco, fundada ainda no século XIX e uma das primeiras bibliotecas públicas portuguesas. Haverá parcerias com instituições portugueses (o Instituto Camões e as universidades, claro) e o objectivo é aproximar culturas e dar a conhecer o Médio Oriente em todo o seu esplendor não apenas aos lisboetas, mas também a todos os migrantes que são oriundos de países dessa zona (sírios, libaneses, egípcios...) e estão agora afastados de casa e sem acesso à sua cultura. Muitos parabéns à Junta de Freguesia de Arroios, que tanta coisa boa tem engendrado. Tomara que passe já o recolhimento obrigatório e se abram as portas à vontade para lá poder ir cheirar.
Um dia destes andava à procura do título original de um filme sobre o escritor C. S. Lewis (aquele em que mais terei chorado na vida a seguir a O Meu Pé de Laranja Lima). Chamava-se, afinal, Shadowlands (cá penso que era Dois Estranhos e Um Destino) e descobri-o numa lista de filmes sobre escritores incrivelmente extensa quando, na verdade, não tinha noção de que os escritores fossem matéria-prima de filmes tão frequentemente (excepto, claro, enquanto autores de livros em que se baseiam os argumentos). Mas é mesmo surpreendente a quantidade de filmes em que os escritores são protagonistas. Alguns tornaram-se, de resto, inesquecíveis, como O Carteiro de Pablo Neruda ou A Sangue Frio (sobre Truman Capote), Henry and June ou Shakespeare in Love. Mas também há o escritor fictício em filmes como Misery (o desgraçado a quem a admiradora não perdoa ter acabado com a série que ela adorava) ou O Escritor Fantasma, bem como o escritor verdadeiro metido numa obra ficcional (Virginia Woolf em As Horas, por exemplo, ou Hemingway e Fitzgerald em Meia-Noite em Paris). A lista nunca mais acaba, garanto, e, ao lê-la, apeteceu-me rever alguns filmes que adorei na altura (Heart Beat, sobre a Beat Generation) ou que estão já enevoados na minha memória (Barton Fink, por exemplo); e ver muitos dos que perdi, como Sylvia (sobre Sylvia Plath) ou Iris (sobre Iris Murdoch). Há tanto por onde escolher que nem sei por onde (re)começar.
Já tive más experiências com médicos, que eram talvez bons patologistas mas ficavam a dever bastante como gente; e conheço quem tenha tido ainda piores experiências, pois nesses casos as doenças eram bastante mais graves e a comunicação do médico fez-se abruptamente, sem compaixão nem delicadeza. Um amigo médico queixava-se há tempos de falta de humanismo nos seus colegas de profissão e de uma crescente desumanidade em muitos serviços públicos de saúde, não só por falta de condições, mas também por falta de formação humana dos próprios médicos. Porém, pouco depois de a reitora da Universidade Católica escrever um artigo bem interessante sobre a decadência das Humanidades no jornal Público, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto, anuncia que vai ser leccionada uma cadeira de poesia num mestrado de Medicina para despertar nos médicos o lado humanista que devem ter. Parabéns à escola e parabéns ao professor, o cirurgião e poeta João Luís Barreto Guimarães que, numa entrevista, diz que não tem receitas (essas são para os doentes), mas vai falar aos mestrandos essencialmente da vida, a mesma que tantas vezes se espelha nos seus poemas, premiados e traduzidos em muitos países. Vão ser 30 os alunos sortudos que vão poder ler poesia entre bisturis, batas brancas e, claro, sangue. Faz parte da vida e da poesia. Vamos ver se daqui sairão melhores pessoas e, logo, melhores médicos.
Qual é a nossa história? Tudo está no contar. As histórias são bússolas e arquitectura; navegamos por elas, construímos os nossos santuários e as nossas prisões com elas, e não termos uma história equivale a estarmos perdidos na vastidão do mundo que se espalha em todas as direcções como a tundra árctica e o mar de gelo. Amar alguém é pormo-nos no seu lugar, é pormo-nos na sua história, ou descobrirmos como contar a nós próprios a sua história.
O que significa que um lugar é uma história, e as histórias são geografia, e empatia é antes de mais um acto de imaginação, uma arte de contar histórias, e ainda um modo de viajar de um lugar para outro [...]
Rebecca Solnit, Esta Distante Proximidade (trad. de José Lima)