(Excepcionalmente hoje, porque amanhã é dia de dizer o que andamos a ler.)
Detesto as boas donas de casa. Se são pobres, esfalfam-se a trabalhar, se são remediadas ou ricas arranjam uma ou mais pessoas para se esfalfarem em seu lugar. De qualquer dos modos são escravas do trabalho ou então da vigilância com outras escravas às suas ordens. A vida a correr lá fora, os maridos e os filhos a correrem com a vida, metidos nela, e as donas de casa a esfregar, a limpar, a dar brilho aos metais. Ou a ver as outras a fazê-lo. Olhe que o pó não está bem limpo. Olhe que a torneira não está bem areada. Isto não pode continuar assim, isto tem de acabar, olá se tem! O que a vida já correu e elas sem a verem. Sem darem por nada. Ficaram sozinhas e não se dão conta. O marido morreu sem nunca ali ter estado, os filhos fugiram para se casar com outras donas de casa que estavam escondidas dentro de raparigas bonitas, alegres e apaixonadas.
A escritora Raquel Ochoa, de quem já publiquei livros de ficção e não-ficção, estreou-se com um romance que lhe valeu o Prémio Literário Agustina Bessa-Luís e já vai em dez edições... Chama-se A Casa-Comboio e conta a história de quatro gerações de uma família indo-portuguesa, cristãos que residem em Damão e acabam em Lisboa. Honorato, Rudolfo, Baltazar e Clara são os fios que ligam a saga fascinante dos Carcomo ao longo de mais de um século. Habitando uma espécie de «casa-comboio», a sua história é baseada na de uma família verdadeira e a autora visitou a maioria dos locais onde tudo aconteceu. Com uma notável capacidade de efabulação, elogiada na atribuição do prémio por Vasco Graça Moura, que então pertencia ao júri, a autora abre-nos a janela sobre o modus vivendi de tantos indo-portugueses – quer a experiência feliz, quer a traumática, em territórios como Goa, Damão e Diu, outrora sob o domínio da Coroa e do Estado portugueses e hoje bastante esquecidos. Se gosta de romance histórico e tem, como tantos, fascínio por esse país tão especial, não perca.
José Saramago foi, até hoje, o nosso único Prémio Nobel da Literatura e é, por isso, natural que nos orgulhemos dele, ainda que possamos preferir os livros de outros autores ou até achemos que outros escritores portugueses ou de língua portuguesa teriam merecido receber a mesma distinção. Mas isso não menoriza o trabalho de Saramago nem nos deve privar de o celebrar de muitas formas. E é isso, no fundo, que fará a Fundação José Saramago e os seus parceiros nesta iniciativa, incluindo o Plano Nacional de Leitura, começando as comemorações do centenário do escritor exactamente um ano antes de ele se completar, ou seja, no próximo dia 16 de Novembro de 2021. O programa foi recentemente apresentado e não vale a pena estar a descrevê-lo aqui, pois mais fácil será deixar a cada um tempo para a respectiva leitura, já que, num ano, muita coisa acontecerá. Assim, deixo-vos o link para festejarem o escritor nas datas e das formas que melhor entenderem. Mas juntem-se à festa lendo-o e relendo-o, que é o mais importante.
Estas minhas Horas Extraordinárias já fizeram mais de dez anos; e, embora quem comente no blogue sejam quase sempre as mesmas pessoas (que já se instalaram neste salão há muito e nele parecem sentir-se bem), a verdade é que aqueles que o consultam ou lêem e dos quais não sabemos o nome são muitos mais e têm aumentado de número com o tempo (quiçá porque acompanhavam outros blogues que entretanto fecharam). Mas isso tem levado a uma situação um pouco incómoda, que é a de eu ter passado a receber quase todos os dias newsletters de editoras brasileiras e portuguesas e pedidos de morada para envio de exemplares de livros, com vista a uma referência ou crítica aqui no blogue. Ora, para que fique claro, eu falo nas minhas Horas Extraordinárias sobretudo de duas coisas: dos livros que publico e que gostaria muito que os Extraordinários lessem; e dos livros que leio nas minhas «horas extraordinárias», publicados por outras editoras, quando os compro tendo em conta os seus autores, ou o que pessoas e meios de comunicação sobre eles dizem, ou ainda os prémios que eventualmente vencem. Mais nada. Mesmo assim, atenção, nada do que aqui escrevo passa de um comentário pessoal e sempre subjectivo, e que isso não se confunda por favor com crítica literária ou recensão ou algo mais académico. Não me considero, por fim, uma influencer... Saiba por isso quem me lê aqui que já não tenho estantes livres em casa e que, mesmo que me mandem livros, só vou falar deles se os acabar por ler e gostar. Poupem no correio, sobretudo nesse que vem de tão longe. Obrigada na mesma, mas não tenho mais tempo para poder fazer essas leituras.
Qual o peso da família nas nossas vidas, e qual o peso do dinheiro? Que acontece quando uma mãe decide não cuidar da sua filha, e quando uma filha decide não cuidar da sua mãe? Seríamos diferentes se tivéssemos nascido noutro sítio, noutro tempo, noutro corpo? Em As Maravilhas, romance de Elena Medel vencedor do Prémio para Melhor Livro do Ano em 2020 no país vizinho, há duas mulheres: María, que em finais dos anos sessenta deixa a sua vida numa cidade de província para trabalhar em Madrid; e Alicia, que faz o mesmo caminho trinta anos mais tarde, mas por razões diferentes. E há, claro, a mulher que as une e de quem praticamente não se fala: filha de uma e mãe da outra. Este é um romance sobre o dinheiro, ou melhor, sobre como a falta de dinheiro pode determinar uma vida inteira de precariedade e matar todos os sonhos. Mas é também uma história sobre o passado recente da Península Ibérica, desde finais da ditadura até à explosão do feminismo, contada por duas mulheres que tão-pouco podem ir às manifestações lutar pelos seus direitos porque têm, claro, de trabalhar. Saudado por José Luís Peixoto («Entre o que há de melhor na literatura contemporânea») e Valter Hugo Mãe («Aleluia que chegou a Portugal»), As Maravilhas acaba de ser publicado e agora precisa de ser lido.
Já aqui falei mais de uma vez de uma revista de poesia chamada Nervo; e, se lhe desejei sorte no arranque, pois a verdade é que agora chegou a hora de lhe dar os parabéns, pois, num país que se diz de poetas, mas no qual as pessoas aparentemente não compram livros de poesia (as tiragens são sempre tão pequenas...), a Nervo, com a energia e a força da sua mentora e poeta, Maria de Fátima Roldão, chegou há poucos dias a uma dúzia de números publicados, o que é obra e obra louvável. Se quisermos ser exaustivos, são quatro anos de poemas, um número publicado previsivelmente a cada quatro meses (mesmo com o raio da pandemia pelo meio!). Foram 152 poetas no total, entre portugueses (117) e estrangeiros (35), estes últimos com traduções incríveis de variadíssimas línguas (hebraico e neerlandês, entre outras). Foram também mais de uma dúzia de artistas plásticos que conceberam trabalhos de grande qualidade para a capa e o interior numa grande sintonia entre palavra e imagem. Venham mais doze, é o que me apetece dizer, e parabéns aos implicados e aos leitores que a compram, lêem e tornam possível. Toca a ler poesia!
No passado dia 14 comemoraram-se 700 anos sobre a morte do grande poeta Dante Alighieri, o autor de A Divina Comédia e, simultaneamente, o primeiro escritor a usar o «italiano» como língua literária. Vasco Graça Moura traduziu o «calhamaço» que está, de resto, publicado na Quetzal; e fê-lo em verso, respeitando a rima, o que ainda é mais difícil. É talvez por isso um pouco difícil de seguir, pois não é exactamente uma tradução, mas uma criação poética a partir do original (e, por vezes, as paráfrases resultam um pouco arrevezadas no intuito de se salvar a métrica e a harmonia musical). Mais clara é uma tradução recente feita em Espanha, embora não em verso, por José-María Micó (que, além de ser um excelente tradutor e poeta, toca muito bem guitarra e acompanha a sua mulher, Marta, que canta). Trata-se de uma tradução quiçá menos «criativa» do que a de Graça Moura, mas fundamental para os que conhecem mal a história daquele período (em Florença, sobretudo), porque inclui anotações preciosas. Ambas as traduções são bilingues e, de certa forma, complementares para quem queira conhecer a Divina Comédia. Já para quem queira conhecer o seu autor, o Dante que é também o narrador e a personagem da Comédia, aquele que visita o Inferno, o Purgatório e o Paraíso guiado por Virgílio, o autor da Eneida, saiu agorinha pela mesma Quetzal uma biografia exaustiva da autoria de Alessandro Barbero intitulada Dante: Uma Vida, que conta de fio a pavio a existência deste homem genial marcado pelo exílio, pela escrita e pelo amor. Não vamos poder perdê-la.
Num momento em que «receber o outro» está na ordem do dia, sobretudo pelo que aconteceu com a tomada do poder pelos Talibãs no Afeganistão, destaco um livro dedicado ao Outro, de um escritor italiano, Davide Enia, que resolveu levar a cabo uma tarefa invulgar (testemunhar dezenas de desembarques de migrantes na ilha de Lampedusa) e nos oferece um livro absolutamente imperdível, comovente e humano como poucos sobre a matéria. (Chorei em muitas páginas, e a tradutora, Tânia Ganho, também.) Misto de romance e reportagem, Notas sobre Um Naufrágio fala com todos e de todos: os que atravessaram vários países, e depois o mar, para chegarem à Europa em condições inimagináveis – rapazes feridos e nus, raparigas violadas e grávidas, crianças e adultos que viram morrer familiares durante a travessia; e dos que os ajudam a desembarcar – voluntários, mergulhadores, pessoal médico, a Guarda Costeira… No meio, fica o autor, para contar sem paninhos quentes o que realmente acontece em terra e no mar e como as palavras são manifestamente insuficientes para compreender os paradoxos do presente. Lampedusa é também o lugar onde se reinventa a relação de Davide Enia com o próprio pai, um médico recém-aposentado que o acompanha à ilha por mais de uma vez. Testemunharem juntos o sofrimento público e a tragédia dos migrantes ajuda-os a construir um diálogo privado completamente novo que substitui os silêncios do passado e mitiga a dor de ambos com a doença de um familiar muito próximo. Notas sobre Um Naufrágio é uma obra-prima que trata da tremenda fragilidade da vida humana. Profundamente actual e necessário. O autor estará no FOLIO em Outubro.
Praticamente ao mesmo tempo que comemoramos os vinte anos de um dos mais tremendos acontecimentos históricos de sempre (sim, refiro-me aos atentados em Nova Iorque do dia 11 de Setembro de 2001) reparo que a Quetzal faz sair uma edição belíssima, comemorativa dos mesmíssimos vinte anos da publicação da estreia literária de José Luís Peixoto, Morreste-me (cuja primeira edição comercial tive o orgulho de publicar na Temas e Debates e que teve até uma edição especial com os direitos a favor da Liga Portuguesa contra o Cancro). Aquilo que começou por ser um texto publicado por um rapaz ainda muitíssimo jovem no suplemento DN Jovem (no qual tantos autores deram os primeiros passos na carreira das letras, poetas e ficcionistas) acabaria por transformar-se num livro extremamente falado, lido, comentado e estudado em todo o mundo sobre a morte de um pai amado e próximo, sobre o luto, a ausência e as recordações, sobre a incapacidade de viver sem essa presença marcante e, ao mesmo tempo, sobre como esse diálogo, essa espécie de carta do filho ao pai, acaba por ser a salvação. Se nunca o leram, está na hora. Impossível não sentir empatia e compaixão. Maravilhoso, comovente e realmente incrível quando pensamos que este foi o embrião de tanta coisa.
Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto) que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado.
Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-Montes, espalhava, para reter as Fadas Benéficas, funcho e âmbar, Jacinto fora sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um lindo rio, murmuroso e transparente, com um leito muito liso de areia muito branca, reflectindo apenas pedaços lustrosos de um céu de Verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereceria, àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de champanhe gelado, mais doçura e facilidades do que a vida oferecia ao meu camarada Jacinto. Não teve sarampo e não teve lombrigas. Nunca padeceu, mesmo na idade em que se lê Balzac e Musset, os tormentos da sensibilidade. Nas suas amizades foi sempre tão feliz como o clássico Orestes. Do amor só experimentara o mel – esse mel que o amor invariavelmente concede a quem o pratica, como as abelhas, com ligeireza e mobilidade. Ambição, sentira somente a de compreender bem as ideias gerais, e a “ponta do seu intelecto” (como diz o velho cronista medieval) não estava ainda romba nem ferrugenta... E todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto já vinha repastando de Shopenhauer, do Eclesiastes, de outros pessimistas menores, e três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas só palpasse palidez e ruína. Porquê?
[Que prosa tão boa, caramba!]
Eça de Queiroz, “Civilização” [o conto que deu origem mais tarde ao romance A Cidade e as Serras], in Contos