Tenho ideia de em pequena ver lá por casa umas edições abreviadas por João de Barros da Ilíada e da Odisseia («contadas às crianças e explicadas ao povo», cito de memória, perdoem-me se não era assim) que em tempos a Sá da Costa publicou; quando Frederico Lourenço começou a ocupar-se das traduções de Homero (que li, claro, na versão «para adultos»), pensei que seria bom uma nova adaptação para os leitores adolescentes e, de facto, mais tarde, tanto a Ilíada como a Odisseia tiveram, na Quetzal, essas versões, organizadas pelo próprio Frederico Lourenço. Aqui há tempos falei da Eneida de Virgílio traduzida pelo professor Carlos Ascenso André (um dos últimos lançamentos da editora Cotovia) e avisam-me agora os editores da Quetzal que deram à estampa, organizada por este mesmo autor, uma adaptação da Eneida para os jovens. São, claro, boas notícias, ao mesmo tempo que descubro que outros clássicos estão a sair com o formato de romances gráficos ou BD, estimulando os mais novos para a leitura de livros que, mais tarde, lhes irão aparecer já só em texto entre as leituras aconselhadas na escola. Vamos lá ver se, com estas edições boas e bonitas, eles começam a interessar-se pelos livros que nunca passam de moda.
Em tempos que já lá vão traduzi um livro científico da autoria de Carl Sagan que desmistificava algumas ideias feitas, entre as quais a dos sonhos premonitórios e a das pessoas que estão clinicamente mortas durante um período e, ao voltarem à vida, alegam ter visto Deus ou uma luz (o que o cientista explicava poder tratar-se apenas de uma recordação da saída do útero no momento do nascimento: vir do escuro para a luz ou ver enevoadamente a figura de um médico, o tal Deus). Mas houve quem estivesse numa espécie de morte e desse o seu testemunho disso, como, por exemplo, José Cardoso Pires, em De Profundis, Valsa Lenta, que relata a sua experiência depois de um acidente vascular cerebral. A COVID-19 foi responsável por imensas mortes no ano passado e chegou a muitas pessoas conhecidas. Daniel Sampaio, o conhecido escritor e psiquiatra, foi uma das pessoas que esteve a um passinho da morte, internado longamente no hospital. Salvou-se e escreveu alguns artigos pungentes sobre a experiência; e agora, nesta «sobrevida» em que, graças a Deus, até já pôde ir à Feira do Livro dar autógrafos, oferece-nos o livro COVID 19: Relato de Um Sobrevivente que impressionará certamente pela narrativa em si, mas também pelo seu apego à vida. Obrigada por mais um testemunho importantíssimo sobre o maldito vírus, ideal para oferecer aos negacionistas.
Não é toda a gente que tem jeito para as rimas, sobretudo quando se trata de poesia para crianças, quantas vezes sem pilhéria nenhuma e moralista em excesso. Mas há excepções, evidentemente, e lembro-me de uma vez ter lido uma versão infantil de uma peça de Gil Vicente escrita em verso por Rosa Lobato de Faria que era muito boa. Quem também tem um talento danado para as rimas giras, cómicas, inesperadas, «desgovernadas», desconcertantes e nada melosas é David Machado (que, já agora, foi nomeado semifinalista do Prémio Oceanos há cerca de duas semanas com o romance A Educação dos Gafanhotos). Depois de uma colaboração com a Visão Júnior online (em que ouvíamos o poema e víamos uma mão ilustrá-lo em directo) e de algumas leituras num programa de rádio, saiu agorinha mesmo este mimo de livro, O Meu Cavalo Indomável: Rimas Desgovernadas para Crianças Animadas, uma maravilha das maravilhas com desenhos de Ricardo Ladeira. Arrisco-me a dizer que os adultos também vão gostar bastante! Deixo um exemplo só para abrir o apetite:
O tema da relação entre mães e filhas tem sido abundantemente tratado na literatura A nobelizada austríaca Elfriede Jelinek escreveu um romance, A Pianista, que deu origem a um filme extremamente dramático com Isabelle Hupert, mas há um monte de livros sobre o assunto, como Um Amor Incómodo, de Elena Ferrante, Swing Time, de Zadie Smith, Até ao Fim do Mundo, de Maria Semple, Beloved, de Toni Morrison, Assim Era a Solidão, Juan José Millás, Noites Azuis, de Joan Didion, Paula, de Isabel Allende ou Uma Barragem contra o Pacífico, de Marguerite Duras, só para dar alguns exemplos. E a prova de que se trata de uma questão realmente inesgotável é o belíssimo O Meu Nome É Lucy Barton, de Elizabeth Strout, autora que já venceu o Pulitzer e é das mais aplaudidas e conceituadas romancistas norte-americanas contemporâneas. Filha da pobreza extrema, gozada na escola, mal vestida, mal lavada e maltratada, Lucy tem a sorte de, ao contrário dos irmãos, adorar ler e de os livros a levarem um dia para muito longe de casa, geográfica e socialmente falando. Mas a família lida mal com o facto de ela ser e estar melhor do que eles, e o afastamento acaba por durar anos, até ao dia em que Lucy entra no hospital para uma cirurgia que se adivinhava fácil, mas apanha uma bactéria que a deixa à morte. Então, acorda numa bela manhã e vê a mãe sentada na cadeira do quarto a velá-la... Mas como terá chegado a um hospital de Nova Iorque alguém praticamente analfabeto que nunca saíra do seu buraco sujo no Illinois? Eis o que vamos descobrir em O Meu Nome É Lucy Barton. Um romance a não perder, uma escritora a acompanhar. A tradução é de Rita Canas Mendes para a Alfaguara.
Muitas bibliotecas portuguesas deram o nome de «Café Literário» a actividades que visam o encontro do público leitor com um ou mais escritores, independentemente de na ocasião servirem café ou coisa que o valha. Esse título é sobretudo uma alusão ao facto de, ao longo dos tempos, os escritores terem passado muitíssimo tempo a escrever em cafés (ou a beber, ou a conversar) e estes se terem tornado, por causa disso, lugares míticos e até turísticos. Não há ninguém que adore livros que falhe em Paris o Les Deux Magots ou o Café de Flore em Saint-Germain, cafés frequentadíssimos por escritores (Sartre e Simone De Beauvoir, entre outros). E, em Madrid, os autores contemporâneos continuam a marcar encontros com os seus editores no Café Gijón, onde os empregados têm o costume de fingir que não vêem os clientes... Hemingway, por seu turno, gostava muito do Floridita ou da Bodeguita del Medio em La Havana; e em Sampetersburgo, reza a lenda que foi num café da conhecida Avenida Nevsky que Pushkin travou o seu último duelo. Na cidade de Praga, o Grand Café Praha era, supostamente, local da preferência de Kafka e, em Lisboa, o desaparecido Monumental foi local de tertúlia e frequentaram-no muitos escritores (de Carlos de Oliveira a Luiz Pacheco). Já no meu tempo de faculdade, Abelaira, o autor de Cidade das Flores escrevia no Caleidoscópio. Não sei se hoje os mais jovens escritores ainda gostam de cafés, mas alguns dos que mencionei fazem parte dos roteiros turísticos de algumas cidades do mundo.
P. S. Hoje vou estar na Feira do Livro de Lisboa às 18h30 no pavilhão da Quetzal a autografar o meu livro de crónicas, Adeus, Futuro. Apareçam.
Toda a gente concorda que os horrores de Auschwitz e o Holocausto se tornaram um moda literária, fazendo com que se tenham vendido milhares de livros, sobretudo nos últimos anos, dedicados ao tema; e que essa circunstância levou a que se escrevesse todo o tipo de produtos melosos, xaroposos, perigosos e pouco rigorosos sobre um assunto que mereceria ser tratado com total respeito (graças a Deus, há muitas excepções). Mas este romance de que hoje vos falo, editado pela Cavalo de Ferro, deve ser lido por todas as razões, incluindo porque a prosa do seu autor, Ulrich Alexander Boschwitz, tem ressonâncias de Robert Walser e Knut Hamsun, e também porque ele sabe do que fala, pois foi um judeu contemporâneo do nazismo (morreu num navio no qual tentava fugir mas que foi torpedeado por um submarino alemão perto dos Açores). O romance, cujo manuscrito tinha sido enviado à mãe, acabou por ser discretamente publicado em inglês nos anos 1940 com pseudónimo, mas só recentemente foi redescoberto na Biblioteca Nacional Alemã e dado à estampa na sua versão definitiva. O Passageiro de que o título fala é um judeu que consegue por milagre escapar à Noite de Cristal (chegam a ir buscá-lo a sua casa, mas confundem um homem que o visitava com ele, permitindo-lhe fugir) e que, sem saber para onde se virar, deixa tudo para trás (a família e os negócios) e resolve apanhar comboios sucessivos e viajar sem destino preciso, numa aventura que tem muito de Kafka e, segundo o Figaro, mas não achei assim tanto, de Chaplin. A tradução é de Paulo Rêgo e este não é só mais um livro sobre Auschwtiz.
Como sabem, não sou exactamente uma editora de literatura infantil, embora, na minha vida paralela, tenha escrito e co-escrito mais de quarenta livros entre infantis e juvenis e aprecie bastante o género. Recebi, porém, a proposta de um ilustrador da Corunha muito talentoso (David Pintor) para fazer em Portugal um dos seus muitos títulos, desta feita A Grande Aventura de Nara, um livro que dedica à sua filha e no qual ela é a protagonista, representando todas as crianças e ao mesmo tempo a criança específica que estiver a folhear o livro. E, pronto, apaixonei-me como uma garota por este objecto incrível onde também a mim me apeteceu ser Nara, porque aqui podemos mesmo ser nós a construir a história que quisermos e nos vier à cabeça. É que, apesar de haver uma sequência mais ou menos lógica de ilustrações, desde que se agarra um balão e se voa, a verdade é que não há uma única palavra ao longo de todo o livro, e é estranho dizê-lo, mas não faz lá falta nenhuma. Se agarrarem o livro e o forem folheando, perceberão; e talvez também se apaixonem por esta aventura, fazendo-a vossa ou de uma criança conhecida. O autor estará a autografar na Feira do Livro de Lisboa no próximo dia 11 de Setembro, às 16h00, na companhia de David Machado e Madalena Moniz, que também são autores do excelente Viagem ao Centro do Escuro. Vamos ver se as crianças lêem qualquer coisinha?
Este ano comemora-se o centenário do nascimento da escritora Maria Judite de Carvalho, que foi uma grande romancista e cronista, além de se ter dedicado também à poesia e às artes plásticas. Chamou-lhe Agustina «a flor discreta da nossa literatura». Autora de um dos mais extraordinários longos contos (ou novelas), o célebre Tanta Gente, Mariana e de uma obra vasta, não teve em vida o reconhecimento que merecia, quiçá por ser casada com Urbano Tavares Rodrigues e não haver espaço para dois escritores na mesma casa; quiçá apenas por ter vivido numa época que dava geralmente pouca atenção às mulheres intelectuais. Porém, para comemorar o centenário está finalmente a fazer-se justiça, seja republicando a Almedina a sua obra completa em volumes belíssimos, cujas capas são quadros da própria autora, seja através de um livro de homenagem poética à escritora, prefaciado por Alice Vieira (que foi sua amiga pessoal), posfaciado por Rosa Azevedo, organizado por Lília Tavares e Carlos Campos e com a participação de nada menos do que 123 autores; alguns talvez sejam desconhecidos do grande público, mas outros são decididamente conceituados, como Ana Luísa Amaral, Margarida Vale de Gato, Inês Lourenço, Fernando Pinto do Amaral, Maria Teresa Horta, Nuno Júdice ou Rita Taborda Duarte, e constam ainda do rol a filha de Maria Judite de Carvalho (Isabel Fraga) e uma das netas (Inês Fraga). O número de autores que participam evidencia o reconhecimento desta autora. O lançamento da antologia, com o título Água Silêncio Sede, terá lugar na Feira do Livro de Lisboa, no Auditório Nascente, no próximo dia 9 às 17h00, seguindo-se, no Pavilhão da Poética (B96), uma sessão de autógrafos com os autores presentes. No dia seguinte, Inês Fraga conversará com a professora Paula Morão no Auditório Poente sobre Maria Judite Carvalho, numa iniciativa da editora Almedina, às 19h00.
Não costumo ser maria-vai-com-as-outras, mas respeito a opinião literária de uma dúzia de pessoas e vi que algumas delas se entusiasmaram muito com a leitura de um romance francês, o que, nos tempos que correm, é coisa rara. Está certo que o livro tinha ganho (não me apanham a escrever «ganhado», lamento) o Prémio Goncourt, o mais importante galardão gaulês, em 2020, mas assim mesmo havia ali uma unanimidade no elogio que me suscitou curiosidade. Fui, pois, comprar Anomalia, de Hervé Le Tellier, para degustar nas férias. E é talvez o menos francês e o mais americano de todos os romances de autores franceses que li na vida, pois tem efectivamente um ritmo trepidante e a meio se transforma num thriller que é simultaneamente científico, paranormal, psciológico, social, mas muito literário também. Gostei mais da parte até à surpresa desconcertante (sem querer abrir muito o jogo, esta está ligada a uma hipótese de sermos meras «simulações»), em que nos são apresentados em capítulos autónomos muitos dos passageiros que iam em determinado voo intercontinental e apanharam o susto da vida deles com uma tempestade de granizo que rachou até o pára-brisas do avião. Mas na segunda concordo que o autor tem raro talento para nos agarrar e arrastar pelas suas páginas, é muito informado (matemático, jornalista, linguista, editor...) e escreve um romance a pensar em todo o mundo. Actualíssimo, distrai bastante. Traduziu-o Tânia Ganho e saiu na Presença.
«Alguns minutos depois, Gudmund desceu à sala envergando o seu trajo de núpcias. Estava pálido, ardiam-lhe os olhos num brilho ansioso, mas nunca ninguém o vira tão belo. Os traços do rosto estavam como iluminados por uma luz interior, parecendo a quem o via um ser feito de alma e de vontade, e não de carne e de sangue.
Na sala tudo tomara um ar solene. A mãe vestira-se de preto e trazia nos ombros- o seu belo xaile de seda, embora não fosse assistir ao casamento. Todos os criados tinham também envergado os seus mais vistosos trajos. Folhas frescas de bétula guarneciam a chaminé e pratos variados e suculentos cobriam a mesa, revestida de uma alva toalha.
Terminado o almoço, a mãe Ingeborg leu um salmo e alguns versículos da Bíblia. Depois, dirgindo-se a Gudmund, agradeceu-lhe o ter sido sempre bom filho, desejou-lhe felicidades para o futuro e deu-lhe a bênção. Sabia falar bem e Gudmund comoveu-se. Os olhos velaram-se-lhe mais de uma vez, mas conseguiu vencer a vontade de chorar. O pai pronunciou também algumas palavras.
– Bastante duro vai ser para nós perder-te – disse ele.»
Selma Lagerlöf, «A rapariga do Brejo Grande», in O Livro das Lendas,