Há tempos, recebi uma crítica ferocíssima de uma senhora (por sinal, académica) do Brasil que não entendeu uma crónica que escrevi sobre a importância da língua materna para o entendimento de todas as outras disciplinas. Nela, eu contava que um número significativo de alunos não era capaz de resolver um problema de Matemática por não conseguir perceber o enunciado (ou seja, o português). Porém, a senhora achou que eu estava a puxar a brasa à minha sardinha e a obrigar os brasileiros a falar como nós, portugueses, aqui no cantinho da Europa, quando na verdade não era nada disso. Cascou em cima de mim, reclamando uma língua autónoma para o seu país. Ora, depois de ler uma notícia no Diário de Notícias na semana passada, acho que a académica referida vai ficar felicíssima: os professores, os educadores de infância e muitos pais de crianças pequenas estão preocupados porque, depois de um longo período de confinamento, os meninos e meninas regressaram às aulas a usar o léxico do país-irmão. Dizem «bala» em vez de «rebuçado», «geladeira» em vez de «frigorífico», «grama» em vez de «relva» e «ônibus» em vez de «autocarro», além de usarem o sotaque do Brasil. A razão? Pois bem: passaram meses ao computador a ver youtubers brasileiros, como Luccas Neto (que, seja lá quem for, enche o Altice Arena, a que os pais levam filhos com... três anos!) ou o seu irmão (que opera mais na faixa adolescente) e tem 36 milhões de seguidores. Lembro-me de que, no final da minha adolescência, as telenovelas (nesse tempo, exclusivamente brasileiras) conseguiram que os portugueses passassem, num fósforo, do «Como está?» ao «Tudo bem?», que nunca mais se perdeu. Mas com crianças que ainda mal sabem falar, a coisa parece bem mais grave.
Muitas vezes subestimamos o amor adolescente. Quando há um desgosto, alguém diz logo que passará em três tempos e logo aparecerá uma nova paixão. O livro que acabo de ler, uma maravilha tão boa e tão triste que comove a cada palavra lida, mostra bem que há amores tão profundos na juventude que, quando tudo vai contra eles, o desespero pode levar os seus actores a situações-limite. Falo de Trilogia, de Jon Fosse, um romance em três partes (daí o título), inicialmente publicadas autonomamente e em datas diferentes, mas que vivem de certeza melhor agarradinhas umas às outras. São três momentos de uma relação entre Asle e Alida, dois jovens de dezasseis anos muito apaixonados, ele completamente só no mundo (a mãe morreu-lhe há pouco), ela com problemas familiares: um pai que desapareceu quando era pequena (e se ela o amava!) e uma mãe bastante brusca e amarga que não a trata bem. Alida descobre que está grávida e, por isso, ela e Asle terão de fugir da aldeia, mas para isso precisarão de um barco que não têm; e depois de uma casa que não têm; e depois de alguém que ajude Alida a ter a criança; e de matar a fome, enfim... de muitas coisas que não são exactamente fáceis de arranjar num lugar onde não conhecem ninguém e uma rapariga grávida com aquela idade é vista como uma indigente. Tudo isto provocará episódios tremendamente tensos, e lemos este livro sempre com o coração nas mãos, e tristes por eles: pelo rapaz que ama e fará tudo (tudo mesmo) pela sua namorada; e pela rapariga perdida, uma mãe imberbe e sempre tão cansada que conta absolutamente com o namorado para continuar. É lindo, como já era Manhã e Noite, do mesmo autor. O Nobel bem que podia ir para o senhor Fosse um dia destes. Na Noruega, os reis deram-lhe uma casa no recinto do próprio palácio.
Às quatro da tarde de uma quarta-feira, a revisora Kim Eun-sook levou sete bofetadas na face direita. Foi atingida repetidamente, e com tanta força, no mesmo sítio que a rede de vasos capilares sob a maçã do rosto se rompeu e o sangue começou a correr pela pele rasgada. Quantas bofetadas apanhara até isso acontecer? Não tinha a certeza. Limpou o sangue com a palma da mão ao sair para a rua. Naquele final de Novembro, o ar estava frio e límpido. Quando ia a atravessar na passadeira, estacou, pensando se deveria voltar para o escritório. A pele estava a ficar cada vez mais retesada sobre a face, que inchara de um momento para o outro. Ficara surda do ouvido direito. Mais uma bofetada e o seu tímpano teria rebentado. Engoliu o sangue com um sabor metálico que se lhe acumulara nas gengivas e dirigiu-se para a paragem do autocarro que a levaria a casa.
Han Kang, Atos Humanos, tradução do inglês de Maria do Carmo Figueira
Uma das coisas mais tramadas de se viver em Lisboa é não poder ir ali ao Porto num saltinho sempre que acontecem por lá coisas às quais gostaríamos de assistir. Por mim, estaria sempre caidinha em todas as Quintas de Leitura, por exemplo; e agora neste espectáculo cujo anúncio me fez logo água na boca e que acontece hoje mesmo ao fim da tarde, no Foyer do Teatro do Campo Alegre, pela mão e pela voz do grande Isaque Ferreira, que irá ler... Não, não vale contar já a surpresa. O título do espectáculo é, aliás, um tanto ou quanto misterioso: Por assim dizer: correspondências. Já adivinhou? Talvez. Isaque Ferreira reuniu cartas de escritores portugueses e propõe-se lê-las com a sua maravilhosa interpretação. Sabendo de que são capazes os nossos escritores, umas destas cartas trarão queixinhas, outras má-língua, outras falarão do grande escultor que é o tempo e decerto não faltarão também correspondências sobre amores próprios e alheios. O que eu não dava para ir lá escutar e ver esta sessão, até porque a correspondência é coisa que morreu depois da invenção do correio electrónico e é por isso uma preciosidade ainda maior. Se está pela Invicta, não falte. Faça isso por mim.
P. S. Não perca também hoje à noite Tocata e Fuga - Os Dias de Mário Cláudio, um documentário de Jorge Campos, na RTP.
Já aqui temos falado várias vezes do escritor Paulo Moreiras, de quem publiquei vários livros ao longo da minha vida editorial e que é, como já aqui o disse, um dos primeiros leitores do dia das Horas Extraordinárias, comunicando-me as gralhas encontradas quase sempre a tempo de eu as corrigir antes que cheguem mais leitores. O seu romance de estreia, A Demanda de D. Fuas Bragatela, é um romance pícaro excepcional e marcante; e, além dos romances que se lhe seguiram, Paulo Moreiras foi sempre escrevendo também sobre comida (de que é apreciador, claro), tendo realizado, entre outras publicações, uma espécie de bilhetes de identidade de vários produtos portugueses (fava, morcela, tremoço, etc.) em conjunto com o Instituto de Literatura Tradicional. Mas o seu último romance publicado, O Ouro dos Corcundas, já era de 2011; e as pessoas andavam a perguntar-se que seria feito deste autor divertidíssimo, se ele deixara a escrita para se dedicar a algo mais. Pois bem, ele acaba de lançar os contos que andavam dispersos por revistas e outras publicações num único volume intitulado O Caminho do Burro. Os contos, para o este autor, são, de resto, uma espécie de laboratório onde experimenta diferentes abordagens, formais e não só, que o conduzem então aos seus romances. O meu exemplar já cá canta e tenciono lê-lo assim que acabe o que tenho em mãos. Tendo o Paulo Moreiras voltado a editar, oxalá esteja também na calha um novo romance.
Diz-se que Portugal é um país de poetas. Não sei se isso é exactamente verdade, mas que há sempre bons poetas para lermos em todas as gerações, lá isso há. Recentemente, por exemplo, saíram dois livros de poesia dignos de referência aqui no blogue. O primeiro é de uma nova colecção, a Claro Enigma, e o poeta, que já tinha publicado um livro de poesia, chama-se Rui Teixeira Motta e não deixou que o Direito que pratica profissionalmente o tornasse prosaico. O seu novíssimo poemário chama-se Refracção e, se se pode resumir um livro de poesia (eu acho que não, mas pronto), este fala da própria poesia, mas também do amor, da morte, do quotidiano, da beleza, e é, de acordo com o prefaciador (o poeta António Carlos Cortez), uma «poesia de imagens» (mas não só). O segundo livro é de Marta Chaves (que já havia sido falada aqui o blogue a propósito da saída do seu muito belo Varanda de Inverno) e intitula-se Avalanche, mas se nos cair em cima será boa coisa; olha para dentro mas também para o outro, para a memória, sem esquecer o futuro, e inventa o que há de certos meses noutros meses (uma ideia original que atravessa o livro). Deixo-vos dois poemas, um de cada um dos livros, pela ordem em que os mencionei, para se deleitarem.
Ana Patrícia Severino esteve como Conselheira Cultural na Embaixada de Portugal em Berlim e criou por lá uma residência literária que deu frutos e acolheu na cidade alemã um grupo de escritores portugueses, entre os quais se contam Isabela Figueiredo, Patrícia Portela ou Rui Cardoso Martins, por exemplo. E, como não é pessoa de ficar quieta, agora, que saiu da capital alemã e está na nossa Embaixada em Madrid, repetiu a proeza com o apoio do Instituto Camões, integrando esta residência literária na capital espanhola um programa mais extenso de divulgação da literatura portuguesa no país vizinho. A residência começará ainda neste mês de Novembro e durará até Janeiro de 2022. Eu bem sei que estou a avisar em cima da hora, mas quem sabe se alguém que lê este blogue não tenha um projecto literário à medida com que possa candidatar-se até 11 de Novembro? O regulamento pode ser encontrado aqui:
Embora o aniversário seja só amanhã, dia 6, não podia deixar de, daqui deste blogue, felicitar o escritor Mário Cláudio pelas suas 80 primaveras (mais de 50 delas de actividade literária, é obra!). É um autor que leio há muito (talvez desde que comprei Amadeo numa edição da Imprensa Nacional com uma bela capa do pintor de Amarante e do mundo) e de quem sou editora desde que vim para a LeYa; um autor em quem admiro a subtileza, a cultura ampla e o bom gosto, mas também a coragem e a desfaçatez quando são necessárias; em quem invejo o domínio da língua portuguesa (quantas palavras novas já aprendi com ele? «Bazulaque» foi a mais divertida, confesso) e aquele sentido de humor que às vezes carrega uma certa verrina bem-vinda; em quem aprecio o facto de se importar com o que os mais jovens escrevem e acompanhar o que se publica, mas conhecer bem o que veio antes dele; em quem adoro uma personagem que passeia pelo seu mural de Facebook chamada Adozinda, que diz uns palavrões que fazem corar as pedras da calçada e só podia ser do Norte, como o próprio Mário Cláudio. Aqui estou então a congratular-me por dez anos em tão boa companhia, desejando que venham mais, e cheios de livros com L maiúsculo como todos aqueles a que nos tem habituado. Parabéns, Mário Cláudio.
Os livros sobre a Segunda Guerra Mundial nunca passaram de moda, por mais que tenham decorrido setenta e tal anos sobre o seu fim. Sobretudo nos países ocupados, a literatura sobre o assunto foi prolífica e de todos os tipos, de tal modo que até se permitiram livros muito fantasiosos e de teor romântico e meloso à custa da tragédia. Mas, ainda que a literatura sobre o assunto seja realmente variada e numerosa, há sempre coisas que não chegam aos leitores, e confesso a minha ignorância sobre o facto de na Dinamarca só uma pequena parcela de judeus ter sido afectada pela perseguição nazi e levada para um campo de concentração. Falo de 500 pessoas, mais coisa menos coisa, das quais, ao que sei, só 125 não regressaram de Theresienstadt no final da guerra. A razão? Pois bem: em primeiro lugar, o rei tinha ascendência germânica, o que lhe permitiu saber do tratamento desumano que estava a ser dado aos judeus noutros países com antecedência, levando então os judeus dinamarqueses para a Suécia, que era um país neutro. Mas houve mais: os judeus dinamarqueses nunca foram obrigados a usar a estrela amarela identificadora, porque o rei alegou que estavam protegidos pela constituição da Dinamarca e que, se a ordem fosse dada, ele próprio e a sua rainha, bem como todo o povo, também a usariam. Então, os nazis meteram o rabinho entre as pernas e a exigência nunca chegou a ser feita. Partilho a história porque penso que nunca precisámos de tantos exemplos de coragem deste tipo como hoje.
Lembram-se certamente de vos ter aqui falado de O Infinito num Junco, um livro incrivelmente belo da espanhola Irene Vallejo sobre a história do livro desde a Antiguidade, que se lê como um romance e foi elogiado, premiado e traduzido em praticamente todo o mundo. A sua autora é, evidentemente, uma apaixonada pela leitura e (como compreende logo quem lê o livro) tem formação em Estudos Clássicos, sendo autora também de um Manifesto pela Leitura, no qual considera dos livros a verdadeira máquina do tempo. Ora, no âmbito das comemorações dos 99 anos de Saramago no próximo dia 16 (o início das comemorações do Centenário do nascimento do nosso Nobel da Literatura), Irene Vallejo estará entre nós para ler este seu manifesto imediatamente antes de um concerto pela Orquestra Metropolitana de Lisboa (que quiçá a acompanhe). E no dia seguinte, ao final da tarde, proferirá uma conferência na Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito dos Seminários Internacionais de Estudos Globais promovida pela Cátedra de Estudos Globais da Universidade Aberta. Será, sem qualquer dúvida, sobre o livro. Aviso com tempo, porque, já se sabe, neste blog serão muitos os interessados em ouvi-la.