Quando ouvimos alguém falar crioulo, há de vez em quando uma palavra em português que salta da conversa mas não destoa. O português entretece-se naturalmente com o crioulo (que não tem algumas palavras para certas coisas) e, com tantos caboverdianos em Portugal é até estranho que ninguém antes se tenha lembrado de fazer revistas ou jornais em crioulo por cá... Mas nunca é tarde, e a Mensagem de Lisboa já deu o passo, aproveitando ter recebido uma bolsa de jornalismo europeu da Newspectrum para línguas minoritárias. O padrinho desta bela iniciativa será o artista Dino d'Santiago, e vai coordenar o projecto a jornalista e cantora Karyna Gomes, que estudou jornalismo em São Paulo e já trabalhou para a Associated Press e a nossa RTP. A notícia foi dada pelo próprio jornal Mensagem de Lisboa, dirigido por Catarina Carvalho, com o que poderia ser um primeiro título em crioulo, cheio de palavras começadas por K, e é menos fácil de compreender do que eu pensava. Mas vai dar para aprendermos crioulo, porque as notícias serão bilingues e assim chegamos lá por comparação. Numa Lisboa que é mulata há séculos, calculo que se trate do primeiro jornal português-crioulo. Se Dino d'Santiago diz que se trata de um enorme passo para a humanidade que espera ver replicado noutros territórios europeus, eu só posso concordar e aplaudir aqui do meu cantinho. Parabéns a quem foi da ideia! Leiam o primeiro artigo de todos aqui:
Já sabem que não sou muito «televisiva» e, embora acredite que há séries francamente boas, é muito raro dispor-me a ver uma até ao fim, principalmente porque estou sempre a perguntar-me se não deveria aproveitar esse tempo para ler, pois a idade avança e cada vez há mais livros à minha espera. No entanto, um dia destes resolvi alinhar em ver um documentário intitulado Insubmissa em dois dias seguidos (são mesmo duas partes, antes e depois do 25 de Abril) sobre a escritora Natália Correia, essa mulher telúrica que chegava e logo vencia pela aparência, a coragem, as ideias, a voz, a frontalidade. A realização é assinada por Joaquim Vieira e a investigação e o roteiro são da romancista e guionista Filipa Martins, que já tinha colaborado em vários filmes e séries (Três Mulheres, Bem Bom, etc.) e que aqui intervém também como «a ouvidora» de todos os testemunhos; e são muitos, pois não só assistiremos a conversas com pessoas que sempre soubemos das relações de Natália, como Helena Roseta ou Fernando Dacosta (este último escreveu até sobre o Botequim, bar que foi uma espécie de casa de Natália aberta ao público), mas também vários desconhecidos que com ela privaram, como o empregado do bar, o jovem pianista que lá tocava ou uma professora de Matemática muito sua amiga. Gostei! Um ritmo muito inesperado, boa música de fundo (embora às vezes um pouco alta), muitas novidades, um retrato extraordinariamente bem feito de uma escritora e mulher muito especial. Até, vejam lá, em matéria de intimidade... A certa altura alguém conta que, por ocasião de uma sua participação num determinado evento fora de Lisboa, no hotel só lhe reservaram um quarto e Natália não ia sozinha. Ela fez uma fita: mas como era possível dormir na mesma cama com um homem? Só para saberem, o senhor que a acompanhava era... o marido. Vejam o documentário na RTP PLAY, que vale muitíssimo a pena.
Um dia destes, o linguista Marco Neves, autor de vários livros e de um blogue já aqui referidos, perguntava-se qual seria o palavrão mais comum usado em Portugal para poder responder à curiosidade de um amigo estrangeiro. E, hesitando na entrega de uma solução que não correspondesse à verdade, acabou por usar o Facebook para fazer uma espécie de inquérito a pouco mais de uma centena de pessoas. Não ficou muito convencido com o resultado (the f word), avançando que, se os contributos tivessem sido mais numerosos, o mais provável era ter chegado ao mais suave "merda" (a proposta era cada um dizer o que lhe sairia pela boca se desse uma topada na perna da mesa). Comigo, acertaria no "merda" (não vou muito além disso, confesso); mas vejo tanta miudagem a dizer "fogo" pela boca fora que, na verdade, talvez o veredicto fosse mesmo a palavra vencedora, que enfeita capas de livros (fazendo-os vender como pãezinhos quentes) com o subterfúgio do asterisco em vez do O. Mas onde terão ficado as saborosas imprecações que a minha avó usava em maus momentos, como "Raios", "Irra", "Poça", "Arre" ou "Livra"? Será que já desapareceram ou desaparecerão em breve com a morte dos mais velhos? Vamos deixar que os nossos ouvidos se acostumem ao "fogo" e ao "fosga-se", ou mesmo àquele palavrão bem nortenho que ainda faz corar, ou rir, os sisudos lisboetas? Já pensou qual é o seu palavrão?
O site Entre | Vistas, que já aqui referi mais de uma vez, já leva sete anos de vida. Parabéns a esta plataforma digital, como hoje se diz, que publicou ao longo do tempo centenas de conteúdos extremamente interessantes (entre outros domínios, na área do livro e das viagens) e foi parceira de eventos culturais emblemáticos, como o Bode Inspiratório, projecto que juntou dezenas de escritores e artistas plásticos num «folhetim à antiga» e valeu a Paula Perfeito um convite para marcar presença no último FOLIO. São mais de sessenta entrevistas a figuras de todas as disciplinas, que têm coisas para dizer, histórias para contar e ideias para partilhar e debater. José Luís Peixoto, Carlos Mendes de Sousa, Chakall, Rosa Montero, Marina Costa Lobo, Pedro Norton de Matos, Afonso Cruz e muitos mais dão-se a conhecer nas respostas a perguntas que nunca são as banais e favorecem uma conversa que vale sempre a pena acompanhar. As recensões e os artigos sobre locais a visitar (dentro e fora de Portugal) também são muito úteis, bem como algumas notícias e informações sobre eventos e prémios, como o Prémio Camões atribuído recentemente a Paulina Chiziane. Os sete anos mereceram um novo logo bem bonito, de Sara Vaz Pinto, que aqui reproduzo. Vale a pena visitar.
Às vezes, os amigos editores oferecem-nos livros que publicaram, querendo partilhar connosco a alegria de uma escolha. Recentemente, aconteceu-me com uma colega da Quetzal e recebi de presente o magnífico O Esplendor dos Brunhoff, de Yseult Williams, que conta a história de uma família europeia que é praticamente desconhecida do grande público, apesar dos seus feitos notáveis e das figuras que constituíam a teia das suas relações pessoais. A história deste clã narra-se a partir do patriarca Maurice (antes Moritz) de Brunhoff (1861-1937) no tempo da guerra franco-prussiana e passa para a geração dos seus filhos magníficos, entre os quais se encontram o ilustrador do elefante Babar e a directora da revista Vogue em Paris (o marido desta última, Lucien Vogel, é uma personagem igualmente fascinante). Porém, se esta família passou quase incógnita, foi certamente porque pelos corredores das suas casas andaram muitas pessoas cujos nomes acabaram por ofuscar o dos Brunhoff, como Diaghilev, Jean Cocteau, Picasso, Dior ou Chanel. Apesar de discretos, os Brunhoff, para que se saiba, já davam cartas no início do século XX e estão ligados à edição das primeiras revistas de moda francesas (sendo uma delas a Gazette du bon ton), bem como à fotografia artística, à imprensa e à arte em geral. Não se livraram, mesmo assim, de duas guerras mundiais e dos campos de extermínio na Polónia. O seu destino consta desta biografia aliciante que ando a ler.