Não é novidade para ninguém que, desde os anos setenta, as literaturas portuguesa e brasileira são mutuamente desconhecidas. Há, claro, uma elite que lê tudo, mas em Portugal essa elite é ainda mais pequena do que a elite que costuma comprar e ler livros traduzidos, por isso, já se vê porque quase não se publicam autores do Brasil em Portugal. O que eu não sabia é que em Espanha acontece algo semelhante e já há quem se queixe de uma espécie de segregação em relação aos autores latino-americanos. Jorge Carrió, o autor do fantástico Livrarias, escreve que, nas listas dos Livros do Ano na maioria dos jornais espanhóis, como o ABC ou o La Vanguardia, o El Pais ou o El Mundo, os livros referidos são quase todos espanhóis, ignorando-se a literatura da América Latina. Ora, quando existem tantos escritores latino-americanos que ganharam o Nobel da Literatura, que aconteceu de repente? Será que os muitos países que geraram autores universais como Borges, Cortázar, Neruda, Fuentes, Bolaño..., estão em queda em termos de criatividade ou, como defende Carrión, o problema é da concentração da indústria editorial em Espanha (só chegam à Europa os escritores latino-americanos que as editoras espanholas entendam publicar) e de algo que o autor do artigo denomina «centralismo neocolonial»? Confesso que me aparecem cada vez menos propostas de autores do outro continente e cada vez mais raparigas espanholas de todas as regiões que começaram a escrever ficção, mas não me tinha passado pela cabeça que havia uma razão por detrás disto. Aqui em Portugal, parece-me mais um desconhecimento puro e duro do que se passa no país grande que fala português.
Eva, chama-se Eva, tem menos quatro anos do que eu, e foi sempre o exato oposto de mim: muito expansiva, divertia-se se tinha de passar o fim de semana nalgum dos restaurantes do meu pai, a correr entre as mesas e a brincar às empregadas. Quando o meu pai se matou, a Eva fechou-se em si mesma, passou a falar pouco ou nada, desenhava o tempo todo; era a sua forma de dizer o que queria dizer, que eu não sei o que era nem me importa muito. A minha mãe foi criada por dois tios, e sempre me pareceu curioso que antes do suicídio a minha irmã fosse tão parecida com o tio, o Chico, e depois se transformasse num decalque da tia Soledad, mas que nome tão bem dado. A Eva sempre funcionou por imitação: reproduzindo a atitude que lhe proporcionasse uma maior segurança. Não sei se lhe falta personalidade: é minha irmã, mas não a conheço lá muito bem. A sua vida nunca me interessou, nem na altura nem agora. Posso dizer-te que mal nos damos. No caso da Eva, a mudança de atitude foi de facto uma consequência da história do meu pai, parece-me. No meu caso, não. Eu já era assim.
Elena Medel, As Maravilhas, tardução de Vasco Gato
Depois de termos perdido recentemente a enorme Joan Didion, talvez a pessoa que escreveu mais desassombradamente sobre o luto em livros como O Ano do Pensamento Mágico e Noites Azuis (respectivamente sobre as mortes do marido e da filha), volto a este tema por um pequenino livro de Chimamanda Ngozi Adichie, a escritora nigeriana que se tornou um fenómeno literário internacional, intitulado Notas sobre o Luto. Durante o que foi certamente um dos piores anos da sua vida, por conta da pandemia que a separou fisicamente da família (ela vive nos Estados Unidos, mas tinha os pais na Nigéria e alguns irmãos no Reino Unido, e não se viram durante muito tempo), o pai morreu sem se esperar. Parecia bem na última videochamada que os dois trocaram e, apesar da idade, nunca lhe falou de sofrer de quaisquer problemas de saúde. O choque foi enorme para a escritora, que era mesmo a menina do papá e que, para mitigar a sua dor, teve de escrever sobre o assunto alguns textos que são a sua forma de fazer o luto deste pai carinhoso e incrível, um académico sem peneiras e incorruptível num país onde ter status é, como veremos, bastante perigoso. São episódios partilhados por ambos, extremamente bonitos e sinceros, e também o relato do escândalo que é sempre qualquer morte imprevista, bem como a impossibilidade de sair para consolar e receber consolo, abraçando os que, tal como ela, sofreram o desgosto. Lê-se de um fôlego.
Aqui há uma semana, mais coisa menos coisa, recebi uma mensagem muito especial de um Extraordinário. Além do que dizia a própria mensagem, que era só para mim, havia um link para um texto de um blogue que, curiosamente, me fez lembrar A Metamorfose dos Pássaros, um filme de Catarina Vasconcelos que ganhou já vários prémios internacionais. Não sei se o viram, mas é um objecto artístico muitíssimo especial sobre o amor, a distância e a orfandade (e as coisas que definem algumas pessoas) a que eu chamaria, para resumir, um poema cinematográfico. Por isso me pareceu que ele aqui cabe, até porque o texto do filme talvez pudesse ser lido em vez de ouvido, de tal modo é, a todos os níveis, literário, mas sem que isso torne o filme chato (podia acontecer) ou difícil (costuma acontecer, mas não é o caso). Voltando ao início, há uma cena muito bonita no filme em que a mãe que tem o marido ausente e os seis filhos pequenos em casa recebe de longe um cavalo-marinho fossilizado e o põe, como um brinco, na orelha. Ora, o texto que recebi na mensagem do Extraordinário tinha também que ver com um cavalo-marinho e, por isso e por achar que deve ser lido, partilho-o convosco. Bons filmes, boas leituras.
Por detrás de um livro sério, está quase sempre um editor. Muitas vezes, a sua tarefa é apenas a de escolher e difundir uma obra traduzida, mas de outras existe um trabalho de fundo que permanece diluído no livro final, até porque o autor é quem deve brilhar. É talvez por isso que a maioria dos leitores não conhece os nomes dos editores que publicam os seus autores preferidos (quando muito, saberá os nomes das chancelas que dirigem), o que torna ainda mais justo que um prémio de cidadania que tem como patrono Vasco Graça Moura, atribuído pela Estoril-Sol desde 2015, tenha contemplado este ano o grande editor Zeferino Coelho, cujo impressionante currículo não só inclui a publicação da obra de José Saramago, de Levantado do Chão até à sua morte, como também de oito prémios Camões (entre os quais Sophia, Mia Couto ou, mais recentemente, Paulina Chiziane) e ainda o lançamento de muitos jovens escritores literários com vozes muito interessantes, como Patrícia Portela, Sandro William Junqueira ou Joana Bértholo. Grande leitor de memórias e biografias, Zeferino Coelho sucede, neste prémio, a nomes como Emílio Rui Vilar, Carlos do Carmo, Maria do Céu Guerra ou Eduardo, Lourenço. Parabéns!
Há histórias que parecem ficção. Uma delas contou-a Nelson Ferreira da Silva no Facebook e eu reproduzo-a aqui no blogue, porque merece ser partilhada. Como todos os que já perderam alguém importante certamente sabem, a memória da voz é uma das coisas que mais rapidamente desaparecem. Ora, também todos os que já foram a Londres devem saber que, no metro, estão sempre a avisar-nos «Mind the gap» para vermos bem onde pomos os pés ao entrar e sair da carruagem. Pois parece que uma certa viúva se deslocava diariamente a uma estação da Northern Line do metro londrino por ser do falecido marido a voz que prevenia nos altifalantes «Mind the gap». Acontece que, com as modernices, as mensagens humanas foram sendo substituídas em todas as estações por vozes robotizadas e, um dia, aconteceu o mesmo à mensagem que a viúva vinha expressamente ouvir. Ela procurou então a empresa para pedir a antiga gravação. Só que, ao contar a sua história, aconteceu o milagre: não só lhe conseguiram o que pediu, como até repuseram a gravação original na estação de metro. Parece ficção, disse eu quando comecei a escrever este post. E é numa ficção, lembrada (e muito bem) por Maria Manuel Viana (a tradutora) como comentário a esta história (para ser mais concreta, em Dia de amanhã, de Ignacio Martínez de Pisón), que uma viúva vai ao cinema todos os dias para ouvir a voz do marido que era quem dobrava o actor principal.
Quem compra o jornal Público à sexta-feira tem a sorte de poder ler um dos raríssimos suplementos culturais portugueses: o «Ípsilon». E na sexta-feira passada era matéria de capa a entrevista feita pelo crítico e escritor José Riço Direitinho, especialista em literatura nórdica, a Jon Fosse, de quem aqui falei a propósito de Manhã e Noite e, mais recentemente, Trilogia, que foi, de resto, considerado o melhor livro de 2021 por quase todos os críticos literários portugueses. Mas a entrevista permite-nos ir mais fundo na vida literária do escritor norueguês, que é considerado acima de tudo um dramaturgo, mas que conhecemos mais pela sua «prosa lenta» (é como o próprio chama à ficção). Há surpresas relativamente ao seu processo criativo (o partir para a página em branco sem ideia nenhuma do que vai escrever porque tudo tem de ser uma novidade também para ele) ou o seu pensamento religioso ou filosófico (diz que confia em algo que não consegue descrever, seja na vida, seja na escrita, e que não tem problemas nenhuns em chamar-lhe Deus). Prefere Hamsun a Ibsen e fala também de Knausgard, que foi seu aluno. Uma entrevista com várias pérolas para guardar.
É incrível a facilidade com que nos tempos que correm se usa a palavra "obra" a propósito de qualquer pessoa que escreveu um livro ou dois. É ainda pior quando alguém que só agora começou a alinhar umas frases numa página envia o seu original para uma editora com uma mensagem em que refere que a "obra" trata disto ou daquilo. Claro que, com a industrialização do mundo editorial, o autor parece agora importar menos do que o leitor; mas, ainda assim, gostaria de insistir em que só alguns dos autores que actualmente publicam têm ou terão "obra"... Quanto a isto, aliás, vale a pena perguntar a razão do estranho desaparecimento da referência à obra de um autor nos livros novos que vai lançando. Por exemplo, nas últimas páginas de cada livro publicado de Mário Cláudio ou Lobo Antunes (autores que têm "obra" e cerca de cinquenta anos de vida literária) aparece a lista dos livros que escreveram. Pode pôr-se também no princípio do livro, à inglesa, por ordem cronológica ou por género (muitos autores tocam vários instrumentos e podemos separar a sua obra por ficção, poesia, teatro, ensaio...); mas, quando realmente um escritor chega a um determinado patamar, é mais do que justo (e necessário para quem estuda esse autor) que se refira a obra já publicada. Aos que começam, aconselho a que usem palavras como "livro", "romance", "ficção" ou outras que se lhes assemelhem, e que desejem que essas suas primeiras experências literárias partilháveis um dia constituam parte da sua... obra.
Já aqui disse que não sou muito dada a séries e que tenho dificuldade em fidelizar-me às que têm mais de três episódios. Também prefiro ver cinema na sala às escuras, mas sem pipocas! No entanto, dadas as restrições, acabei por me sentar algumas das últimas noites do ano em frente da televisão para cheirar uma ou outra coisa, entre séries, documentários e filmes. E fiz algo inédito, que foi ver um filme baseado num livro que queria muito ler quando o que era desejável era que tivesse lido o romance e depois visto a adaptação. Agora não vale a pena chorar sobre o leite derramado, mas sim prevenir quem ainda não viu O Poder do Cão filmado pelas talentosas mãos de Jane Campion de que leia primeiro o livro de Thomas Savage. É um romance do final dos anos 1960 sobre dois irmãos completamente diferentes que vivem num rancho algures no Oeste: um deles elegante e discreto, o outro bruto e agreste. Mas o casamento do primeiro com uma viúva que tem um filho adolescente vai alterar a estabilidade do lar; e, durante umas férias, a chegada do filho da viúva para passar um mês no rancho transformará decisivamente o brutamontes numa pessoa muito distinta. Claro que o principal ficou por dizer, pois se contar serei desmancha-prazeres. Pior do que saber o fim antes de começar a ler, só mesmo não poder pôr uma cara no «mau da fita» e vê-lo sempre com a do Benedict Cumberbatch... Quem me mandou ver o filme primeiro?
A poucos dias do Natal, morreu-nos a escritora Leonor Xavier, que era uma chama acesa nas vidas de quem com ela se cruzava. Poucos dias depois, porém, 2021 não nos poupava a uma outra morte: a de João Paulo Cotrim. Os jornais renderam-lhe homenagem, como era suposto, mas foram muitíssimas as figuras de todas as gerações e áreas da cultura que lamentaram essa perda. O jornalista que sabia imenso de banda desenhada e dirigiu a Bedeteca de Lisboa ao longo de vários anos, o editor de livros, o grande leitor, o também escritor, vai decerto fazer falta a muita gente, amigos e autores. E eu, que apesar de o ter conhecido há uns vinte e cinco anos nunca fui exactamente próxima dele, tenho mesmo assim uma recordação que fez sempre do João Paulo alguém especialmente empático e caloroso. É que, nos anos 1990, quando escrevi o meu primeiro livro de poesia, intitulado A Casa e o Cheiro dos Livros, concorri com ele a um prémio literário na altura instituído pela revista Cosmopolitan e uma marca de cosmética que estava a lançar um perfume chamado Poème. Já não me lembro de todos os elementos do júri (recordo Maria Teresa Horta e Francisco José Viegas, e sei que a editora do livro seria a Maria da Piedade Ferreira, então na Quetzal), mas a pessoa que me telefonou nessa tarde a anunciar que eu vencera o dito Prémio Poème foi o João Paulo Cotrim e, por isso, a minha poesia estará sempre associada a essa boa memória. Perdemo-lo demasiado cedo: tinha apenas 56 anos e, ao que sei, ainda muita coisa para nos dar. Que descanse em paz.