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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

28
Fev22

Ainda as Correntes

Maria do Rosário Pedreira

Como é tradição no mais concorrido encontro de escritores em Portugal, a derradeira mesa acontece já em Lisboa, no Instituto Cervantes e, geralmente, reúne escritores espanhóis e de língua portuguesa. Este ano, os temas dos debates eram ainda mais vagos do que sempre, para deixar falar os participantes do que lhes importa, e Manuela Ribeiro escolheu títulos de canções de todos os géneros. Mais logo, portanto, o assunto é, vejam lá, Os Argonautas, canção de Caetano Veloso... e eu nem imagino de que vão falar Elena Medel (a premiada autora de As Maravilhas), Manuel Vilas (o celebrado autor de Ordesa) e Ondjaki (o vencedor do Prémio Literário José Saramago com Os Transparentes), os três escritores convidados para falar numa sessão moderada pelo jornalista João Morales. Mas, como estou curiosa, lá estarei a assistir, decerto esperando boas surpresas. É às 18h30. Venham também. Além de que vão poder ver as belíssimas fotografias de escritores de Daniel Mordzinsky, que ali inaugura uma exposição.

25
Fev22

Excerto da Quinzena

Maria do Rosário Pedreira

Dez anos após a sua morte:

Manolo o Cigano abriu os olhos, observou a luz ténue que se infiltrava pelas frestas da barraca e levantouse procurando não fazer barulho. Não precisava de se vestir porque dormia vestido: o casaco cor de laranja que lhe oferecera no ano anterior Agostinho da Silva, de alcunha Franz o Alemão, domador de leões desdentados do Circo Maravilhas, servialhe ao mesmo tempo de casaco e de pijama. Na luz fraca do alvorecer procurou aos apalpões as sandálias transformadas em chinelos que usava como calcado. Encontrouas e calçouas. Conhecia a barraca de cor, e podia moverse na semiobscuridade respeitando a geografia exacta dos míseros trastes que a mobilavam. Avançou calmamente em direcção a porta e foi entao que o seu pé direito bateu no candeeiro de petróleo que se encontrava no chão. Merda de mulher, disse entredentes Manolo o Cigano. Fora a sua mulher que na noite anterior tinha querido deixar o candeeiro de petróleo junto a enxerga com o pretexto de que o escuro lhe provocava pesadelos e que sonhava com os seus mortos. Com o pavio no mínimo, dizia ela, os fantasmas dos mortos não se atreviam a visitá-la e deixavamna dormir em paz.

Antonio Tabucchi, A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro, tradução de Theresa de Lencastre

24
Fev22

A poesia assusta?

Maria do Rosário Pedreira

Um dia destes estive a jantar com um agente literário francês que já não via há uns quinze anos e que veio passar uma semana de férias a Portugal com a família. Entre os muitos assuntos de que falámos à mesa, contou-me que em França houve nos últimos tempos um verdadeiro boom dos livros de poesia e que muita gente jovem parece ter despertado repentinamente para o género, havendo até muitos pequenos editores, cujos proprietários são bastante novos, a lançarem todos os dias poetas desconhecidos. Dissemos-lhe, por brincadeira (ou talvez nem tanto), que talvez isso acontecesse porque o texto poético é quase sempre mais curto do que o texto em prosa e que, com o excesso de horas passadas nas redes sociais, há já muita gente que se habituou ao texto telegráfico e, por preguiça e falta de vontade de pensar, rejeita logo um texto mais longo, passando à frente. Ele rebateu o argumento, dizendo que isso até podia ser verdade, mas que a intensidade e a exigência da poesia também obrigam a um funcionamento mais trabalhoso das sinapses cerebrais, pelo que talvez não fosse essa a razão («os textos não se medem aos palmos»). Então, lembrei-me de um cartoon que encontrei há pouco tempo por aí, e que se referia à luta contra a imbecilidade com... poesia. Ele aqui vai. Tenham um bom dia.

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23
Fev22

Analfabetos para sempre?

Maria do Rosário Pedreira

Um estudo recente apresentado na semana passada na Fundação Calouste Gulbenkian sobre as Práticas Culturais dos Portugueses, baseado em inquéritos realizados pelo Instituto de Ciências Sociais e financiado pela Fundação, fez-me corar de vergonha e preocupar-me muito com o futuro da nação. Nada de que eu não suspeitasse, é verdade, mas mesmo assim os dados são assustadores: 61% dos Portugueses não leram um único livro em 2020 e 27% leram apenas, num ano inteiro, um a cinco livros. (Em Espanha, por exemplo, as pessoas que não leram um único livro são bastante menos: 38%.) Pois bem, José Machado Pais, o investigador que lidera o estudo com Pedro Magalhães e Miguel Lobo Antunes, confessa o desânimo, explicando que o consumo de livros leva ao consumo de outras formas de cultura, pelo que é fulcral o incentivo à leitura desde tenra idade, em casa, na escola e através dos meio de comunicação. Aliás, a maioria dos leitores confessa que a influência das respectivas famílias foi determinante para o acto de ler.Também lêem menos os que são mais velhos (sem escolaridade, provavelmente) e os mais pobres, que são os que consomem, regra geral, menos cultura em todas as suas formas. Os mais jovens estão demasiado ligados à Internet, há muito mais gente a ver TV do que a ouvir rádio (sobretudo em pandemia), só 28% dos Portugueses frequentam museus e os que ouvem música erudita, vão à ópera ou assistem a espectáculos de dança são 6%. Deus meu, aonde vamos parar? Não chegou o analfabetismo imposto da outra senhora? Vamos ser sempre um país analfabeto, com pessoas como aquela Georgina que vive com o Cristiano Ronaldo e não quer livros em casas porque criam pó? O estudo está publicado e vale a pena perceber os números em causa, mas enquanto não lhe chegarem as mãos, aqui está o link do artigo da CNN. Um susto.

https://cnnportugal.iol.pt/inquerito/fundacao-calouste-gulbenkian/61-dos-portugueses-nao-leram-qualquer-livro-em-2020/20220215/620c18e20cf2c7ea0f19618e

22
Fev22

Correntes d'Escritas

Maria do Rosário Pedreira

Amanhã começam mais umas Correntes d'Escritas, desta feita as vigésimas terceiras. Depois de no ano passado o festival ter sido não-presencial e reduzido a algumas actividades transmitidas no Facebook, voltaram as sessões ao vivo, se bem que, para evitar calamidades, com público contadinho e diferentes localizações. Em todo o caso, os convidados são de novo muitos: de Adolfo Luxúria Canibal (dos Mão Morta) a Yara Monteiro (autora angolana radicada em Lisboa), mais de sessenta serão os participantes nestas Correntes, de músicos a escritores, designers, ilustradores, editores e fotógrafos, mas todos ligados, no fundo, às letras. Uns mais jovens, como a crítica e escritora Ana Bárbara Pedrosa, outros veteranos, como Onésimo Teotónio de Almeida, todos têm o seu lugar na festa literária mais concorrida do País, que conta com leituras, mesas-redondas, exposições, filmes e partilha de testemunhos com alunos das escolas. Eu, como sempre, vou andar por lá, por isso não me esperem muito presente aqui no blog esta semana. Se lá puderem passar, óptimo.

21
Fev22

Espaços raros e necessários

Maria do Rosário Pedreira

Em Portugal, já há muita gente que vai à biblioteca pública ler jornais, visitar sites, investigar na Internet, compor um CV, comprar coisas em lojas digitais, preencher o IRS, enfim, fazer muita coisa que não é propriamente ler livros. Noutros países, é mais frequente ainda pessoas estarem nas bibliotecas a consultar anúncios de emprego ou a preencher formulários online. O problema é quando se trata de mães e pais que têm filhos pequenos de quem não se podem separar, sobretudo porque as crianças parece que nascem a adorar teclas e dificultam muito a vida aos progenitores quando estes precisam de ver o que está no ecrã ou digitar sem ajuda dos petizes. Mas eis que alguém teve a bela ideia de comprar um mobiliário francamente útil e inovador para facilitar a vida a estas pessoas e, ao mesmo tempo, apresentar a criança desde tenra idade aos livros. São casos raros, claro, mas necessários, e nem parece assim tão complicado reformular uns cantos nas bibliotecas que já existem para agradar a todos. Ora vejam lá se não tenho razão...

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18
Fev22

A preto e branco

Maria do Rosário Pedreira

A luz é clara e este livro iluminado ganhou o Man Booker International Prize no ano passado. Mas é também um livro negro por causa da temática (já lá vamos). Confesso que fiquei com pena de que o «meu» candidato, o livro de uma georgiana que vou publicar em Março (fiquem atentos!) não tenha arrecadado o prémio, mas, claro, as opiniões do júri são soberanas e desta feita o galardão foi para uma tradução do francês. O autor chama-se David Diop, nasceu em França e cresceu no Senegal, e é senegalês o protagonista do seu De noite Todo o Sangue É Negro (no original, Frère d'âme), que já ganhara em França o Gouncourt des Lycéens e outros prémios. Trata-se de um livro sobre um soldado que, durante a Primeira Guerra Mundial, não consegue salvar o melhor amigo (o seu «mais do que irmão») e tão-pouco o consegue matar quando ele, agozinante, lho pede várias vezes. A partir dessa morte e do seu arrependimento, adquire comportamentos violentos extremos (como o de cortar as mãos aos alemães que mata e trazê-las para a trincheira), acabando por desencadear medo e desconfiança quer nos seus companheiros brancos, quer nos «chocolate», um termo utlizado para nomear os senegaleses que combatem ao lado dos franceses, e ser posto na retaguarda durante uns tempos. A novela tem por vezes a tonalidade de uma oração, apesar do realismo de algumas descrições, e contém em si mesma uma espécie de «eco» permanente, com muitas repetições de expressões, o que me fez pensar que, em termos de tradução para inglês, não representou decerto uma dificuldade por aí além (isto porque o Booker Prize International premeia livros traduzidos). Mas é bonito, sério e vale a pena ler.

17
Fev22

Quintas de Leitura

Maria do Rosário Pedreira

Hoje estarei longe do blogue, no Porto, para participar em mais umas Quintas de Leitura, no Teatro do Campo Alegre. As famosas Quintas não param, e sempre que muda o executivo da Câmara trememos de medo de que alguma luminária se lembre de as extinguir, mas graças a Deus (e aos poetas, diseurs, e ao programador João Gesta- e sua equipa), elas estão aí de pedra e cal. Esta noite a sessão chama-se Não Me Perguntes se as Serpentes Choram e tem uma interessante particularidade, pois centra-se em poemas escolhidos por editores: editores de poesia, mas não só, uma vez que mesmo os editores que não publicam poesia lêem frequentemente poesia e têm os seus poemas preferidos. Foram então eles chamados a escolher «o seu poema», que vai ser lido por actores nesta sessão; e a leitura que será precedida por uma curta conversa entre o jovem editor Rui Couceiro, da Contraponto, e eu, a velhota, pondo no fundo em oposição (ou talvez não) duas gerações de editores. Como sempre, haverá «brindes»: um vídeo do recentemente desaparecido João Paulo Cotrim, um momento musical na abertura (Grutera) e outros a meio das leituras e no fim com Emmy Curl e Paulo Praça. A lista dos poemas escolhidos (mas não lidos, porque há muitos editores) será passada no ecrã. Amanhã regresso a Lisboa.

16
Fev22

Contos mágicos, poéticos e oportunos

Maria do Rosário Pedreira

Há poucos dias falei aqui de Itamar Vieira Junior e da bola de neve que foi o seu romance que ganhou o Prémio LeYa, Torto Arado, em termos de prémios, traduções e adaptações. Neste fim-de-semana, o autor foi mesmo entrevistado pelo New York Times. E hoje venho dizer-vos que ele regressa aos escaparates com uma coletânea de histórias fascinantes que o confirmam como um grande narrador. Com linguagem poética e estrutura variada e inovadora, as narrativas presentes em Doramar ou a Odisseia são herdeiras da tradição literária brasileira, mas ao mesmo tempo profundamente contemporâneas no tratamento de questões como a destruição da floresta, a exploração dos mais fracos, a construção de muros entre países, as lutas pelos direitos humanos.Tal como sucedia em Torto Arado, as heroínas destas histórias são maioritariamente mulheres obrigadas a lutar contra a adversidade, como, de resto, a Doramar que dá nome ao conjunto; mas também não são esquecidos aqueles que regra geral não têm voz, como os escravos levados de África ou os índios empurrados para fora das suas terras. Este é um livro memorável sobre como as raízes sempre ensombram o futuro. Absolutamente imperdível, reúne textos anteriores e posteriores ao romance que valeu ao autor o Prémio LeYa, o Prémio Jabuti e o Prémio Oceanos.

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15
Fev22

Poetas convidados

Maria do Rosário Pedreira

Para os leitores deste blogue, que tantas vezes deixam a poesia de lado e preferem os romances, aconselho uma actividade muito interessante que pertence à programação da Casa Fernando Pessoa (o Poeta dos poetas) há já algum tempo mas cuja realização oscila entre o auditório da Casa e o Salão Nobre do Teatro Nacional D. Maria II. Acontece mensalmente, começou por ser virtual por causa da pandemia, e chama-se Clube dos Poetas Vivos. A actriz Teresa Coutinho, que é uma excelente leitora de poesia, conversa com o poeta convidado e reúne actores que lerão textos do próprio. É uma boa maneira de os Extraordinários conhecerem poetas que nunca leram e de tomarem contacto com pormenores do seu processo criativo. Hoje, no teatro, pelas 19h00, será a vez de Manuel A. Domingos ser convidado, ele que é também editor numa pequena editora chamada Medula. No mês que vem, virá a poetisa Beatriz Hierro Lopes e em Abril Carlos Poças Falcão. Tudo nomes a que devemos prestar atenção. Ouvir para ler depois.

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