Em programas sobre livros e literatura de outros países, aconteceu mais de uma vez haver insultos e polémicas entre escritores e escritoras. Há poucos dias, Nelson Ferreira da Silva (NFS) publicou no Facebook imagens de um programa da BBC do ano de 1987 em que a escritora britânica de romances cor-de-rosa Barbara Cartland (aliás, vestida dessa cor) bateu forte e feio na sua concorrente Jackie Collins, dizendo-lhe com todas as letras que «os seus escritos eram para pervertidos»... Considerava o mesmo NFS (um grande leitor, é preciso dizer) que, apesar de serem conhecidas as guerras entre alguns autores portugueses, como Saramago e Lobo Antunes (ou vice versa), não havia nada daquele género na televisão portuguesa e que estava na altura de os novos se chegarem à frente... Bem, em primeiro lugar, as televisões em Portugal tiveram pouquíssimos programas de livros, e na verdade os que houve nunca fomentaram o debate, eram mais no sentido de promover as novidades ou alguma obra relevante (não é um defeito, que fique claro, mas os britânicos gostam mais de discussões públicas do que nós). Por outro lado, já não se fazem polémicas como antigamente, e as que há são geralmente de um contra todos, pelo que perdem rapidamente o interesse e a atenção alheia. Finalmente, não estou a ver realmente na nova geração pares de escritores zangados ou inimigos, o que faz sempre falta a uma boa polémica. Tempos sem graça estes...
Um dia destes, no Facebook, apanhei uma conversa sobre O Papagaio de Flaubert, de Julian Barnes. A pessoa que escrevera o post anunciava apenas que o estava a ler, e ler os comentários foi bastante engraçado: metade das pessoas adorara o livro, a outra metade não, mesmo gostando muito de outros livros do autor. Barnes, de facto, nunca é igual, e algumas pessoas preferem os romances de construção mais clássica, como O Sentido do Fim ou A Única Mulher, e estão no pleno seu direito (também os adoro). Mas há uma série de livros verdadeiramente inovadores, como o Papagaio, O Ruído do Tempo (investigações paralelas sobre Flaubert e Chostakovitch) ou mesmo Nada a Temer (uma reflexão incrível sobre a morte), em que ficção e não-ficção coabitam harmoniosamente e que nos trazem sempre informações preciosas sobre personalidades e épocas. E falo disto porque acabo de receber uma newsletter da Quetzal sobre o que aí vem e desatei a salivar... Ora vejam: «Mais do que um romance, Elizabeth Finché um tributo emotivo à filosofia, uma cuidadosa avaliação da história e um convite a pensarmos livremente. O novo livro de Julian Barnesdesafia a definição canónica de romance, obriga o leitor a reflectir e deixa ideias que o vão acompanhar durante muito tempo.» Estou mortinha por começar a ler...
Quando Francisco d'Almeida Lobo decide passar a viver o ano inteiro no Monte do Azinhal para cuidar pessoalmente da propriedade, ignora que a presença da família Velho no Montinho lhe vai criar tensões impossíveis de ultrapassar. Primeiro, porque Jacinto Velho se recusa a dar-lhe uma mão; depois, porque descobre que a mulher dele não é senão Maria Barnabé, com quem teve uma história que está longe de estar resolvida. Os ânimos, porém, só ficarão ao rubro quando – contra a vontade do pai – o primogénito dos Velho lhe vai pedir trabalho… No mesmo espaço agreste, debaixo do mesmo sol escaldante, duas famílias distintas em tudo vivem um litígio insanável. Em comum, têm apenas o amor e o ódio e uma solidão que parece não ter cura. Será que algum dia conseguirão sobreviver a uma vizinhança tão declaradamente hostil? Este é o regresso de Carlos Campaniço, depois do virtuosismo de Mal Nascer e da comédia de enganos que é o romance As Viúvas de D. Rufia. O lançamento é já na sexta é e estão todos convidados.
Quando um actor vai na rua, tem dificuldade em caminhar incógnito; mas um escritor pode andar por todo o lado à vontade, que praticamente ninguém o reconhece. Paul Auster disse-me uma vez que circulava pelas ruas de Brooklyn, o seu bairro, sem nunca o abordarem, embora na Europa já muitos leitores o conhecessem. Um dia, em Serralves, uma rapariga parou-me diante de uma pintura para me dizer que um livro meu a tinha ajudado a superar a morte do companheiro, e eu fiquei tão parva que nem queria acreditar. Mas recentemente aconteceu-me uma coisa ainda mais engraçada: parei num semáforo no caminho para a LeYa e fiquei ao lado de um automóvel conduzido por uma mulher que tinha um ar mesmo desempoeirado. Ela fez sinal de que queria dizer-me qualquer coisa, e eu pensei que precisasse de alguma informação sobre a direcção a tomar. Mas não: disse-me que não nos conhecíamos, mas que gostava muito do que eu escrevia e que, na véspera, tinha pensado muito em mim por causa da «tristeza passada a ferro». O sinal ficou verde e só tive tempo de agradecer. A «tristeza passada a ferro» é um verso do meu livro mais recente, de um poema que fala de uma menina a quem fizeram mal. Caramba, nunca me tinha acontecido alguém citar um verso meu no meio do trânsito... Pensei que, como Auster em Brooklyn, aqui eu era uma ilustre desconhecida.
Uma das poucas vantagens dos voos de dez horas é a possibilidade de lermos um livro inteirinho. Fazendo-a de dia, é ainda mais fácil, pois não temos sono e, conscientemente, até preferimos não dormir para acertarmos o horário com o do outro país à chegada. Assim sendo, nesta ida para São Paulo, deliciei-me com Oh, William!, da magnífica Elizabeth Strout, de quem aqui já falei a propósito de outros romances. A escritora norte-americana, que começou a publicar tarde mas devia escrever há muito tempo (pela maturidade com que o faz), pega em personagens centrais (Olive Kitteridge, Lucy Barton...) e fá-las circular de livro para livro, em momentos diferentes das suas vidas, para nos oferecer histórias maravilhosas em que sentimos que falam connosco. Neste Oh, William! regressa Lucy Barton (a mesma de Tudo É Possível e O Meu Nome É Lucy Barton), agora na meia-idade, viúva do segundo marido, a pensar em ser avó e com o pai das filhas (o William do título) deprimidíssimo por ter sido deixado pela terceira mulher (que é bem mais nova do que ele e se fartou das suas idiossincrasias). Mas, não bastando a depressão desse abandono, William descobre que a mãe, pessoa que sempre mitificou, terá tido uma filha antes de começar a viver com o seu pai, que deixou com apenas um ano de idade. Será que essa irmã desconhecida está viva? William quer sabê-lo, claro, mas anda sem coragem para dar o primeiro passo sozinho. Lucy Barton, com quem nunca deixou de se dar bem, irá ajudá-lo numa aventura que se torna mais dela do que dele. Oh, Elizabeth Strout, escreveste mais um grande, grande livro. A tradução, excelente, é de Tânia Ganho.
Aconteceu muitas vezes a pintura vir solicitar a minha escrita. Se numa tarde longínqua de 1965 eu não tivesse entrado no Prado e não tivesse ficado cativo perante Las Meninas de Velázquez, incapaz de abandonar a sala até ao fecho do museu, nunca teria escrito O Jogo do Reverso. A mesma coisa vale para a forte sensação que experimentei em criança diante dos frescos do convento de S. Marcos em Florença, revisitados frequentemente em adulto, e que um belo dia regressou com prepotência, desembocando nas páginas de Os Voláteis de Fra Angelico. Mas também algumas páginas de Tristano Morre não existiriam sem O Cão Sepultado na Areia, de Goya. Da imagem para a voz o caminho pode ser breve, se os sentidos responderem. A retina comunica com o tímpano e «fala» ao ouvido de quem olha; e, para quem escreve, a palavra escrita é sonora: ouve‑a primeiro na cabeça. Vista, ouvido, voz, palavra. Mas neste percurso o fluxo não é em sentido único, a corrente é alternada, volta a partir de onde chegou, regressa ao ponto de partida. E a palavra, ao regressar, traz consigo outras imagens que antes não existiam: inventou‑as ela. Assim acontece em muitos destes contos. Se a imagem veio desencadear a escrita, a escrita por sua vez conduziu essa imagem para outro lugar, para aquele algures hipotético que o pintor não pintou. A estória desencadeada pelo visível agarrou o «Aquilo‑que‑se‑vê» para vaguear à sua vontade no território que o artista nos omitiu, o que teria podido pintar ou fotografar mas que suprimiu. «A alma imagina aquilo que não vê», diz Leopardi. O território da escrita é a imaginação que vai além da imagem; é a estória das figuras mas também o seu reverso e a sua multiplicação, a narração do desconhecido que as envolve.
Antonio Tabucchi, Estórias com Figuras, Nota do Autor
O facto foi mencionado ontem no jornal Público, a propósito da Bienal do Livro de São Paulo: um coletivo de 169 intelectuais portugueses, brasileiros, moçambicanos e angolanos escolheu os 200 livros mais importantes da literatura brasileira – aqueles que, em 200 anos de independência, melhor ajudam a compreender o país. E... Que maravilha um romance cujo sucesso começou em Portugal com a atribuição do Prémio LeYa (e viu esse sucesso reproduzido no Brasil com os prémios Jabuti e Oceanos) estar agora entre os primeiros 50 títulos mais importantes (!) da literatura brasileira! Mas não é de estranhar: Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, fez o milagre de trazer para a leitura muitas pessoas que provavelmente achavam (melhor, sentiam) que a maioria da ficção publicada no Brasil já há muito que nada tinha que ver com elas. Ele cativou um público novo que se identifica com as situações descritas no seu romance e com o autor, criado longe dos grandes centros; ele pôs o dedo na ferida e mostrou um Brasil que, apesar de mais de um século passado da abolição, continua a ter uma larga franja da população escravizada. Com o seu estilo poético e maravilhoso e a sua voz de conhecedor dos factos (um homem no terreno), ele homenageou os escritores clássicos e, seguindo-lhes as pisadas, acabou evidentemente a fazer-lhes companhia na lista. Uma alegria enorme saber que tudo começou neste cantinho do mundo e, porque não dizê-lo?, passou aqui pela minha secretária. Parabéns, querido Itamar Vieira Junior.
Uma coisa é ouvir falar, outra é ver. Embora já tenha visitado muitos Brasis, não ia a São Paulo desde 1976. Era então uma adolescente em visita a amigos, e a passagem foi curta, a caminho de Santos. Agora, tão-pouco tive tempo para calcorrear a cidade, porque ia em trabalho, e do Museu da Língua Portuguesa (que era mesmo o que queria ter visto) conheci apenas o director, que moderou a mesa da poesia, em que participei com Eucanãa Ferraz. Uma pena. O recinto onde se passava a Bienal e todas as actividades relacionadas com Portugal era longe do hotel e tínhamos de aproveitar os transfers de cá para lá a horas certas, pois não era boa ideia apanhar táxi ou tentar transporte alternativo, à conta dos perigos que isso representa. No meio das filas de trânsito infindáveis, às vezes em avenidas com seis faixas, há homens e mulheres vendendo de tudo - e, se forem atropelados por uma dessas loucas motos que andam a altas velocidades, provavelmente ficarão ali muito tempo a sangrar e alguns morrerão. Há também tendas em todos os jardins e ruas, onde vivem os que não têm casa, e são milhões; as diferenças entre classes são bem mais acentuadas do que eram em 1976, apesar de já então serem muito marcadas. Mas, apesar de um clima de permanente insegurança, apesar de andarmos sempre agarrados à carteira e ao telemóvel, de tremermos de medo quando o motorista de táxi, para fugir a um acidente e nos deixar a horas no aeroporto, passa por zonas onde sabemos que, num semáforo, é bem provável que alguém quebre o vidro para levar o que puder (e nos matar, se for preciso), a verdade é que a Bienal de São Paulo estava cheia de jovens a comprarem livros, o que é um sinal positivo que não vemos em Portugal. Não sei que livros seriam, é certo, mas a Secretaria da Educação deu-lhes dinheiro para isso e até pode ser que alguns tenham acertado em alguma coisa que contribua para a sua formação. Enfim, foi bom lá ir, foi muito duro ver a violência e a pobreza em directo, mas estou de volta ao quinto país mais seguro do mundo, onde não é preciso respirar fundo quando se chega, incólume, ao outro lado da rua, mas estamos velhos e os nossos jovens nãoo gostam lá muito de livros.