Sinto-me completamente esgotado, e esgotadas as reservas de oxigénio intelectual e físico que pude armazenar com os dois anos que consegui estar fora. O meu passaporte já vai fazer três anos de novo, sem um carimbo salvador para onde quer que seja! A exaustão da exaustão leva este gato vadio a pôr a pata no ar e, por uma vez na vida de um gato, a olhar insistentemente para si, como única chance de salvação. Sei que a Menez, também tomada de angústias, vendeu um guacho da Maria Helena, o que vai proporcionar-lhe uma saída daqui para fora. Seria tão grave para si como o é para mim pedir-lhe que me enviasse, me desse, um guacho libertador, talvez por mais dois anos, talvez para sempre, desta morte no vácuo. [...]
Carta de Mário Cesariny a Vieira da Silva de Julho de 1968, in Gatos Comunicantes: Correspondência entre Vieira da Silva e Mário Cesariny 1952-1985
Há uns anos fui falar a um festival literário sobre música e poesia, artes com muitos pontos em comum (trabalham fundamentalmente o som e o sentido, por exemplo); e hoje reparei que vem aí um festival que se realizará em duas ilhas dos Açores, São Miguel e Terceira, chamado Arquipélago de Escritores, que misturará música e literatura e tomará de certa forma a cantiga como «arma narrativa». Em São Miguel, as actividades decorrem de 7 a 9 de Outubro; na Terceira, de 13 a 16. Será convidado o biógrafo de Fernando Pessoa, Richard Zenith, residente em Portugal há muitos anos, para uma entrevista sobre o mais emblemático poeta português, que passou por Angra do Heroísmo (mas que bela cidade!) quando era adolescente. Entrevistados vão ser também a escritora Isabela Figueiredo e o fundador das Produções Fictícias e ex-director da RTP Nuno Artur Silva. Entre outros autores, José Carlos Barros, vencedor do Prémio LeYa com As Pessoas Invisíveis, estará nos Açores para falar desse romance. Na música, haverá concertos dos The Wants e de Os Perdedores. São os Açores a mexer e ainda bem.
Não é o meu género preferido, mas há cada vez mais gente a gostar dele, talvez pela influência das séries televisivas de sucesso como A Guerra dos Tronos e os seus sucedâneos. E, portanto, vale a pena difundir aqui o Fórum Fantástico, que regressa este ano à Biblioteca Orlando Ribeiro, em Telheiras, de 30 de Setembro a 2 de Outubro. Os temas são sempre variados, e em 2022 há muitos convidados estrangeiros, incluindo a escritora e cientista Julie Novakova (da República Checa), a escritora e historiadora Ana Cristina Rodrigues (do Brasil) e a escritora e criadora de jogos Kseniya Tomasheva (da Ucrânia). Os registos, segundo o organizador, estendem-se do lúdico ao académico, e não faltarão conversas, bancas de livros, exposições, oficinas e actividades para todos os gostos, entre as quais um quizz que dará direito a prémio. A quem quiser espreitar o programa, o link vai já aqui abaixo:
Fundamentalmente, nos meus tempos livres... leio, como se não lesse já o resto do tempo. Tenho leituras obrigatórias e leituras livres; e também a noção de que não vou conseguir ler tudo o que quero até ir deste para outro mundo. Mas, por pensar isso, descuro talvez outras artes, nomeadamente a música, de que percebo tão pouco... Claro que o desconhecimento tem remédio, e digo-o porque o incansável El Corte Inglés me mandou mais um Magazine donde constam os seus cursos e conferências até final do ano, e houve logo um que achei que podia fazer muito pela minha ignorância. Trata-se de As Grandes Formas da Histórica da Música, ministrado por Teresa Castanheira, que aborda a história da música através dos grandes géneros: a sinfonia, o concerto, a música vocal e religiosa, a ópera e a música contemporânea. Não sei se vou conseguir ir (saio sempre da editora demasiado tarde e o curso começa dia 3 às 19h00), mas sugiro que consultem o Magazine Cultural para, se tiverem tempo, frequentarem este ou outro dos cursos propostos e escutarem as conferências, algumas das quais por vultos bem conhecidos e temas actuais. Não podemos morrer estúpidos, mesmo que literatos.
Entre os finalistas do Prémio LeYa do ano passado, encontrava-se um romance bem escrito e especialmente bem-humorado de uma estreante, Graça Videira Lopes, que foi professora universitária de Literatura Medieval e agora, que tem tempo livre, resolveu dedicar-se (e muito bem!) à ficção. A Casa Ocupada, assim se chama o seu livro de estreia, fala das famílias que vão ocupando ao longo de um século um palacete de Lisboa, mandado construir por um brasileiro torna-viagem em 1889 para nele instalar a numerosa prole (que não cessou também de aumentar fora de casa). O edifício – abandonado pelos anos 1950 e ocupado na sequência do 25 de Abril de 1974 – está hoje transformado num condomínio de luxo onde moram Júlia e Pedro, um jovem casal endinheirado. É pela voz de Júlia – curiosa sobre o passado da casa –, mas também pela de outros narradores, que vamos conhecendo não só as histórias das próprias personagens, mas também as que elas vão gradualmente descobrindo: a do republicano José Anastácio, o primeiro proprietário do palacete; e a do pai de Pedro e de Sofia, maoista em tempos da Revolução de 1974 e empresário de sucesso muitos anos depois. Inteligente, divertido e cheio de surpresas, este romance toma as décadas anteriores à implantação da República, os anos da Revolução e os tempos atuais para nos oferecer um retrato breve e irónico de algumas elites portuguesas, raramente tratadas em romances. A não perder!
Entrei na Faculdade no ano dos primeiros cursos de Línguas e Literaturas Modernas, que permitiam, pela primeira vez, a combinação de duas línguas de origens diferentes. Estudei por isso Francês e Inglês e, apesar de ter feito quase todas as cadeiras no Departamento de Estudos Anglo-Americanos, onde estavam muitos dos professores de quem gostava, tenho de dizer que me licenciei sem ter lido uma única peça de Shakespeare (li-as, mas fora das aulas), o que só pode ter sido fruto da confusão efervescente daqueles anos. Tive a sorte, porém, de poder num só ano estudar três peças de teatro em Literatura Francesa, ensinadas por três belíssimas professoras: Cristina Ribeiro, Maria João Brilhante e Helena Buescu. Tratava-se de Cid, de Corneille, Fedra, de Racine e D. João, de Molière, que é um texto absolutamente brilhante e divertido, embora não acabe lá muito bem... Sai agora outra peça de Molière para o mercado, O Misantropo, pela mão da Quetzal, no contexto da publicação das obras traduzidas por Vasco Graça Moura. Fala, como o título indica, de um homem metido consigo e pessimista que odeia positivamente a sociedade mas que ama uma jovem que, ao contrário dele, gosta imensamente da vida mundana e se recusa a viver isolada. A capa é também muito bela, pelo que significará para mim um regresso a este dramaturgo e ao teatro, que é talvez o género que menos leio. Leiam também.
P.S. Amanhã às 16h00 vou estar no Porto, na cooperativa Árvore, a convite da Poetria, a falar com a poetisa Rosa Alice Branco do meu novo livro de poesia. Apareçam!
Não é novidade para ninguém que o romance que ganhou o Prémio LeYa em 2018 (e depois também os prémios Jabuti e Oceanos no Brasil) – Torto Arado, de Itamar Vieira Junior – tem tido uma extraordinária repercussão pelo mundo fora. São já dezassete países aqueles onde está ou vai ser traduzido e teve mais de 300 000 exemplares vendidos no Brasil. Está a ser adaptado a uma série (haverá notícias em breve), será um romance gráfico e os seus direitos de adaptação teatral foram vendidos a uma companhia do Brasil e a outra, «multinacional», que circula pela Europa. É desta última que falo hoje, pois estou ainda verdadeiramente impressionada (no bom sentido, claro) com o espectáculo que vi no Teatro S. Luiz na semana passada, O Agora Que Demora, da encenadora brasileira Christiane Jatahy, vencedora do Leão de Ouro da Bienal de Veneza. É um espectáculo moderno, belíssimo e muito original sobre refugiados, feito com uma inteligência rara no sentido de poder ser exibido em qualquer país sem grandes alterações (inclui um filme, música e representação ao vivo). Ora, isso prenuncia o que pode ser Depois do Silêncio, o espectáculo sobre Torto Arado que já começou a correr as salas da Europa e não tarda poderá ser visto também em Lisboa. Chamo já a atenção para que não o percam qando chegar. É bom voltar para casa de papinho cheio quando se assiste a um espectáculo assim e o Itamar Vieira Junior merece!
Há uns tempos, publiquei um livro infantil que foi um sucesso para pais e educadores ensinarem as letras do abecedário às crianças. Chamava-se O Alfabeto Nojento e tinha (tem) texto de David Machado e ilustrações de David Pintor (um artista da Corunha que tem trabalhado muito com editores portugueses, sendo ele próprio autor de alguns livros, como o genial A Minha Árvore Secreta ou a maravilha sem palavras que é A Grande Aventura de Nara). O Alfabeto Nojento contava as patifarias de um menino impossível de aturar chamado Henrique, capaz de fazer partidas bem nojentas (com ranhos, cocós e larvas, por exemplo) mas, claro, de fazer os miúdos morrerem a rir. Dado o êxito do livro junto da pequenada, os autores resolveram reincidir agora com Os Números Nojentos, para ver se as crianças aprendem com gosto e bom humor não apenas números inteiros, mas também decimais, e se preparam para o fantasma da matemática que, mais cedo ou mais tarde, se materializará para algumas delas. Vamos lá ver se estes números igualam o sucesso que tiveram as letras.
Não é novidade para ninguém que o mundo hoje é essencialmente inglês. Nos países onde se aprendem línguas estrangeiras, o inglês é seguramente disciplina obrigatória e, se não o for, é certamente a primeira opção de quase toda a gente. O francês, que era a língua com que comecei ainda na escola primária, formou muitas gerações de intelectuais portugueses: as pessoas da idade do meu pai arranhavam o inglês, mas falavam (e liam) bem francês, mesmo quando não tocavam piano; e faz pena que o francês tenha perdido protagonismo, até porque é uma língua musical e bonita. Porém, para quem tiver nostalgia, hoje começa o Bla Bla Café às 17h45 na Medicateca do Instituto Franco-Português. Não é, atenção, um curso, mas um espaço de conversa em francês para os que querem praticar ou aperfeiçoar a língua. Todas as semanas é proposto um tema para a conversa, que é moderada por uma pessoa nativa da língua. Ouvir com respeito e dar opinião (em francês, claro) é o objectivo destes encontros, temperados com um cafezinho. Inscrevam-se os interessados no link abaixo.
Não é a primeira vez que publico esta autora; na verdade, até já falei dela aqui no blogue a propósito do pequeno romance A Cadela. Mas fiquei muito contente que a obra seguinte de Pilar Quintana fosse a vencedora do Prémio Alfaguara em Espanha e que essa circunstância a torne em Outubro convidada do FOLIO, em Óbidos. Os Abismos, assim se chama o novo romance, é um livro realmente fascinante sobre Claudia, de nove anos e filha única, cuja vida gira à volta da mãe homónima, já que o pai – com idade para ser seu avô – passa os dias no supermercado que gere com a irmã, que é casada com um tipo muito mais novo. Quando, porém, uma centelha de aventura parece disparar entre este rapaz e a Claudia-mãe, a crise familiar instala-se abruptamente e mergulha a jovem mulher numa depressão profunda, durante a qual se mete na cama a ler revistas, comentando com a filha como as mortes de Grace Kelly e Natalie Wood não podem ter sido senão suicídios. E, quanto mais a pequena Claudia precisa de esperança, mais a mãe lhe cria temores que a empurram para o abismo, donde nem as bonecas regressam. Tomando como cenário um mundo em que as mulheres não conseguem escapar a casamentos impostos e prisões domésticas, esta é a história inquietante de como uma criança assume as revelações da mãe e os silêncios do pai para construir o seu próprio mundo, sem saber que, apesar de continuarem todos juntos, a família já ruiu há uma eternidade.