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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

31
Out22

O senhor Pina

Maria do Rosário Pedreira

Conheci Manuel António Pina (ao vivo, quero eu dizer, porque obviamente já o conhecia dos livros e das crónicas jornalísticas maravilhosas) num festival de poesia em Genebra, no qual, como agora se usa dizer, coincidimos numa mesa-redonda. Desse grupo de poetas (que incluía também Gastão Cruz e Pedro Tamen), infelizmente só Fernando Pinto do Amaral e eu permanecemos vivos. Mas o Manuel António Pina seguirá vivo para quem o leia e para quem queira contar ou ouvir as suas histórias sempre tão engraçadas, como aquela de ter um número absolutamente louco de gatos, «parte deles em pensão completa e o resto em meia pensão». Fez recentemente dez anos que o poeta do Porto morreu e a Feira do Livro da Invicta decidiu que estava na hora de o escolher como homenageado: vai, pois, ter a sua tília com o nome gravado no jardim do Palácio de Cristal e um festival literário com programação de João Gesta coordenado pelo também poeta (e romancista) Rui Lage. Falta quase um ano, mas já está decidido. Uma boa ideia para 2023.

28
Out22

Excerto da Quinzena

Maria do Rosário Pedreira

– És feliz? – perguntou-lhe inopinadamente a senhora.

O filipino não era desses que se perturbam com uma pergunta íntima e inesperada.

– Sou – respondeu logo, sem hesitar. – Quando a senhora também o é.

O sol e a luz do lume brilhavam no quarto. Oscilava na parede um raio luminoso, que Alison observava, enquanto ouvia distraída o monólogo do rapaz.

– O que me custa compreender é que se saiba – dizia ele. Muitas vezes principiava a conversa por uma alusão vaga, misteriosa, como esta. Era preciso esperar um pouco para apreender o sentido das suas palavras. – Só depois de estar muito tempo aqui- é que percebi que a senhora sabia. Agora creio que toda a gente… excepto o senhor Sergei Rachmaninov.

– De que é que estás a falar?

– Minha senhora, acredita mesmo que o senhor Sergei Rachmaninov saiba que uma cadeira é uma coisa sobre a qual nos sentamos ou que esse relógio marca as horas? E se eu tirar um sapato e lho meter à cara, dizendo: «Que é isto, senhor Rachmaninov?», o senhor pianista será capaz de responder, como qualquer pessoa, «É um sapato»? Custa-me tanto a crer!

 

Carson McCullers, Reflexos nuns Olhos de Oiro

27
Out22

Uma vida dinamarquesa

Maria do Rosário Pedreira

Suspeito que, por haver tão poucos tradutores de línguas nórdicas, tenhamos um grande défice de livros publicados em Portugal vindos destas paragens. Mas a boa notícia é que, de vez em quando, aparecem uns bons autores que desconhecíamos completamente, como é o caso de Tove Ditlevsen, dinamarquesa, de quem a Dom Quixote publicou recentemente A Trilogia de Copenhaga. O livro, uma autoficção que se lê como um romance, foi originalmente publicado em três volumes curtos (Infância, Juventude e Casamentos) que na edição conjunta tem um subtítulo ligeiramente diferente, Infância, Juventude, Relações Tóxicas, o que faz muito sentido, uma vez que a dependência terrível de fármacos, ministrados à narradora pelo próprio marido, médico e psicótico, ao longo de muitos anos é a marca mais visível desta última parte da trilogia. Mas o livro é sobretudo interessante porque nos oferece um retrato da Dinamarca muito inesperado: as famílias muito pobres, o frio das casas, o desemprego crónico entre guerras, a marginalização, a frustração de não se poder comprar um vestido ou um casaco quando se é uma rapariga a querer namorar. A infância e a juventude de Tove, que quer ser poeta desde criança mas aprende depressa que as pessoas querem sempre qualquer coisa umas das outras (e por isso vem a casar-se com um editor que podia ser seu pai), é uma infância pessoal que se torna universal na sua narração limpa e fria, sobretudo nas descrições familiares, muito pouco abonatórias. A tradução é do também escritor João Reis.

26
Out22

Pecar com prazer

Maria do Rosário Pedreira

Não é que exista uma hora indicada para pecar, mas venho aqui falar-vos de um ciclo de conversas chamado Sete Pecados à Tardinha, ideia do escritor Nuno Camarneiro (que já se responsabilizara pelas conversas Havemos de Falar de... em Aveiro há uns anos), que se incia hoje na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, às 18h00, e se repetirá nas últimas quartas-feiras dos meses de Novembro, Dezembro, Janeiro, Fevereiro, Março, Abril e Maio. Não que não se peque no resto do ano, mas os chamados «pecados mortais» são «só» sete (ira, avareza, gula, luxúria, preguiça, soberba e inveja) e, por isso, temos de deixar muitas quartas-feiras livres para a penitência. O programa, segundo a organização, prevê diálogos sobre as perspectivas simbólicas, históricas, religiosas, culturais, científicas e sociais do pecado e reunirá no palco, além de Nuno Camarneiro, que modera, um par de convidados de diversas áreas. Hoje à tarde falar-se-á sobre a preguiça. Carlos Tê, de quem admiro as letras absolutamente notáveis que tem feito para Rui Veloso, estará a contracenar com esta vossa criada que pode ser acusada de quase tudo, mas por acaso não é especialmente preguiçosa. Se estiver pelo Porto, apareça!

P. S. Hoje ao final da manhã o júri anunciará o vencedor do Prémio LeYa 2022.

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25
Out22

Um país perigoso

Maria do Rosário Pedreira

Recentemente, no âmbito do festival FOLIO, esteve em Óbidos para uma boa conversa o escritor nigeriano Akinwande Oluwole Babatunde Soyinka, conhecido por Wole Soyinca, dramaturgo, poeta e romancista. Ganhou o Prémio Nobel da Literatura no ano imediatamente anterior a eu entrar no mundo da edição (1986) e tem a bonita idade de 88 anos, mas está óptimo de cabeça, afianço, pois pude cumprimentá-lo num barzinho onde provava uma ginja de Óbidos. Tem, aliás, um grande sentido de humor. E, por ser tão simpático e divertido, a sua editora na Livros do Brasil disse-lhe que ainda haveria de o ir visitar um dia à Nigéria, que é, como sabem, um dos países mais perigosos do mundo, onde o grupo jihadista Boko Haram faz sequestros todos os dias e, de uma só vez,raptou de uma escola mais de cem raparigas que, tanto quanto sei, continuam desaparecidas em parte incerta. Quanto à posibilidade de ser visitado pela sua editora, Wole Soyinca sorriu e concordou, mas logo a seguir disse que iria ele próprio buscá-la ao aeroporto, depois levá-la-ia directamente aos raptores, negociaria com eles a sua liberdade e então, sim, ela poderia andar à vontade nas ruas de Abuja...

24
Out22

O que nos torna escritores

Maria do Rosário Pedreira

Estive no segundo fim-de-semana do FOLIO em Óbidos em diversas actividades, entre elas a conversa entre Pilar Quintana e Bernardine Evaristo sobre emancipação. Mas, se esta última escritora foi bastante militante e previsível (o que não lhe retira o interesse, atenção), creio que Pilar supreendeu pela leveza com que falou do assunto, partindo da sua própria vida. Escrevia histórias, contou, desde criança, mas percebeu cedo que não poderia viver da escrita na Colômbia; decidiu então fazer o curso de jornalismo por achar que era, apesar de tudo, o mais parecido com escrever. Infelizmente, depressa chegou à conclusão de que não queria narrar factos, mas inventá-los. Resolveu, pois, escrever o seu primeiro romance e mandou-o a várias editoras. Porém, como ia estar fora, foi a morada da mãe que deu para o caso de vir uma resposta de alguma editora. Ora, como era natural na época, os editores que recusaram o livro devolveram com a carta de recusa os originais recebidos; e, intrigada com tanto envelope gordo para a filha, a mãe de Pilar não resistiu e foi bisbilhotar de que se tratava. Quando regressou da viagem, PIlar nem se importou muito com as tampas que levou, porque, quando a mãe lhe disse «Uma rapariga decente não escreve estas coisas!», compreendeu que, apesar de ainda não atingido o livro perfeito, já era uma escritora.

21
Out22

Borges poeta

Maria do Rosário Pedreira

A monumental obra de Jorge Luis Borges (não me refiro ao tamanho, bem entendido) não foi brindada, como merecia, com o Nobel da Literatura, o que pode considerar-se bastante injusto se tivermos em conta que se trata de alguém que inventou uma forma de escrever única e irrepetível (apesar dos epígonos). Mas mais importante é tê-la disponível para leitura. Ora, a poesia de Borges foi traduzida pelo também poeta Fernando Pinto do Amaral e editada em quatro volumes pela Teorema e o Círculo de Leitores há uns quinze ou vinte anos, mas estava desaparecida do mapa das livrarias, o que era um tremendo mau sinal. Não havendo agora carcacanhol para comprar quatro volumes (ainda por cima eram todos de capa dura e sobrecapa), a Quetzal dá  milagrosamente à estampa num único volume a Poesia Completa. São poemas escritos pelo mestre argentino de 1923 a 1985, de Fervor de Buenos Aires (o primeiro livro) até Os Conjurados (o último),  reunidos numa edição de luxo com uma capa que tem uma belíssima ilustração de Lia Pereira. À venda a partir de ontem. Ide ler!

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20
Out22

Alto Minho

Maria do Rosário Pedreira

Iniciado em Abril, regressou ontem o ciclo de encontros literários do Alto Minho, As Palavras Que Nos Unem, integrado no projecto «Inclusão ativa de grupos vulneráveis: Cultura para todos», que permite a invisuais e deficientes auditivos acompanharem todas as sessões através de suportes em braille e tradução em línguagem gestual. Numa programação de conversas orientada pelo jornalista João Morales, grande dinamizador cultural, desta vez os encontros acontecem nos municípios de Melgaço (foi ontem, lamento chegar tarde, e ainda por cima estavam presentes Nuno Camarneiro e Ana Ventura), Ponte da Barca (21 de Outubro), Viana do Castelo (27 de Outubro), Monção (28 de Outubro) e Paredes de Coura (29 de Outubro). Foram convidados, além dos já referidos, António Mota e José Pedro Leite em Ponte da Barca; José Mário Silva e Rita Taborda Duarte em Viana do Castelo; Olinda Beja e Carlos Quiroga (galego!) em Monção; e, por fim, Filipe Homem Fonseca e Adolfo Luxúria Caníbal em Paredes de Coura. Haverá música e teatro para animar e o programa está disponível para ser descarregado no link abaixo com a novidade de ter a «audiodescrição» ou consultado no cartaz aqui reproduzido. É assim mesmo!

http://redebibliotecas.altominho.pt/noticias/detalhes.php?id=1084

 

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19
Out22

O regresso de João Pinto Coelho

Maria do Rosário Pedreira

Alguns dirão que o seu tema era Aushwitz ou a Segunda Guerra Mundial, mas não só. Desta feita, João Pinto Coelho rumou à Nova Inglaterra e brinda-nos com uma história de família. Depois de passar a infância num orfanato, Noah conhece finalmente a mãe, Patience, aos doze anos. Mas, apesar de ela fazer tudo para o compensar, nunca se refere ao motivo do abandono; e, por isso, seja na casa de praia de Cape Cod, onde passam temporadas, seja no teatro do Connecticut onde acabam a trabalhar juntos, há uma fronteira que nenhum dos dois ousa atravessar. Quando Noah conhece Frank O’Leary – um jesuíta excêntrico que guia um Rolls-Royce –, descobre nele o amparo que procurava. Mesmo assim, há coisas que o padre prefere guardar para si: os seus anos de estudante; o bar irlandês de Boston onde ele e os amigos se embebedavam e recitavam poemas; e ainda a jovem ambiciosa que não temeu desviá-lo da sua vocação. É, curiosamente, a terrível experiência de solidão num colégio religioso – assombrado por histórias de Dickens e um assassínio macabro – o primeiro segredo que Patience partilhará com Noah; contudo, quando essa confissão se encaixar no relato do padre Frank, ficará no ar o cheiro da tragédia e a revelação que se lhe segue só pode ser mentira. O desfecho é mesmo genial. De que estão à espera? Esta semana o livro é posto à venda.

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18
Out22

À procura da língua materna

Maria do Rosário Pedreira

No último dia 7 fui, como oportunamente avisei, ao Instituto Cervantes ouvir a conversa entre Lídia Jorge e o escritor guatemalteco Eduardo Halfon, que foi, aliás, soberba. Entre as muitas coisas que foram ditas, há, porém, uma história que Halfon contou e que explica a forma original como se tornou escritor. De família de direita e abastada, o romancista viveu na Guatemala até aos dez anos; mas, quando a guerra civil atingiu um ponto insuportável, os pais resolveram mudar-se para os Estados Unidos. Foi, pois, em inglês que Eduardo e os irmãos fizeram a parte mais substancial da sua educação, tendo ele cursado engenharia numa universiade americana. Enquanto viveu nos EUA, segundo disse, os livros não lhe interessavam nada, pouco lia, gostava era de jogar à bola e estar com os amigos. Mas eis que as leis da imigração norte-americanas fizeram com que, acabado o curso, Halfon fosse obrigado a regressar ao seu país de origem. Ele, que falava inglês com os irmãos e os amigos, usando o castelhano apenas com a geração mais velha, teve uma dificuldade extrema em de repente mudar o chip e ter de falar a língua materna para conseguir trabalhar e viver na Guatemala. Decidiu então ir estudar para a universidade; e, embora tenha inicialmente pensado em Filosofia, acabou por ser «recambiado» por um professor para Letras. E eis que, à procura da sua própria língua, começa a ler e a escrever e percebe o gosto pela literatura e pela construção da ficção, um rapaz que antes não lia um livrinho... Diz que continua a pensar em inglês, mas que só consegue escrever em espanhol (traduzirá os pensamentos?). Afinal, se os americanos quisessem lá todos os estrangeiros que para lá vão estudar, já teríamos perdido um escritor...

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