Nina levantava-me, e era bom o seu levantar, mas eu nunca lhe hei-de contar como numa noite de Inverno uma chuva inesperada, de mistura com trovões, na casa que lá deixei, entrou pelo buraco da instalação do telefone, se infiltrou ao longo da parede, acumulou-se a um canto da sala e foi desaguar na cesta das revistas. Não vou contar a ninguém, nem sequer a Nina, os desaires que são só meus. Não lhe vou contar como nessa cesta eu havia abandonado, por acaso, O Grande Atlas do Mundo, quando o seu lugar era sobre o tampo da escrivaninha. Só que os objectos são como os seres humanos, procuram o lugar da perdição quando têm de se perder. Ora, nessa noite de tempestade, a água da chuva, seguindo o seu caminho imparável, ao infiltrar-se até chegar ao canto da sala, foi transformando tudo o que era papel acumulado na cesta de verga numa massa informe, sem eu dar por nada. Quando dei pelo material ensopado era demasiado tarde. À chuva e à trovoada seguiu-se o bom tempo, e ali estava o desastre. O Grande Atlas ainda era reconhecível mas estava perdido. Com esperança de recuperá-lo, cheguei a colocá-lo ao sol, ainda lhe apliquei o secador e o ferro de engomar. De nada serviu. Despeguei folha a folha, mas elas tinham-se colado, e à medida que as separava, grandes manchas brancas iam ocupando o espaço onde antes havia a representação de oceanos, mares, continentes, países, páginas bem assinaladas por onde eu estudava o mundo à minha maneira.
Hoje seria dia de «Excerto da Quinzena», mas tenho outra matéria para publicitar, pelo que terão o excerto na próxima segunda-feira sem falta. Amanhã, há dois acontecimentos no FOLIO, em Óbidos, que quero partilhar com os leitores do blogue, até porque gostaria muito de os ver por lá, assim tenham tempo livre e interesse. Às 15h00, a escritora colombiana Pilar Quintana, de quem publiquei os romances A Cadela e Os Abismos (este último vencedor do Prémio Alfaguara de Romance no ano passado), vai estar na Tenda Vila Literária a falar de Emancipação com a escritora britânica Bernardine Evaristo que, como devem saber, é uma das vencedoras do prestigiado Booker Prize. A conversa será moderada pela jornalista do Expresso, Luciana Leiderfarb. Às 17h00, na Livraria de Santiago, ocorrerá por sua vez o lançamento do romance A Casa Ocupada, de Graça Videira Lopes, que será apresentado por Fernando Cabral Martins, professor na Universidade Nova de Lisboa e especialista em Fernando Pessoa. O convite aqui fica para os interessados. Apareçam!
Num encontro de poesia em Oeiras, já não sei se no final do ano passado, convidaram-me para discutir o tema da inteligência artificial aplicada à poesia com uma professora do Instituto Superior Técnico. Como sabia pouco sobre a matéria, estive a investigar e, curiosamente, descobri poesia criada por máquinas bastante boa, alguma até melhor do que muitos versos tremendamente fracos que estamos sempre a encontrar por aí. Claro que a poesia criada por «cérebros artificiais» parte sempre de um conjunto grande de textos poéticos preexistentes escritos por pessoas de carne e osso; e, como na máquina da taluda, no fundo o computador mistura todas as bolas e depois deixa cair uma poesia nova; o que não sabemos é se faria um poema assim jeitoso sem lhe darmos a «ler» antes muitos poemas jeitosos. Mas, se quer saber mais sobre este assunto, vá hoje ao Goethe-Institut de Lisboa, pelas 19h00, onde dois especialistas vão falar de poesia digital e ciberliteratura: Rui Torres, professor catedrático no Porto, e João Gabriel Ribeiro, jornalista e designer. Ambos têm plataformas de poesia digital e, suponho, vão defender as suas damas.
Pelas estatísticas que de vez em quando consulto, sei que este blogue tem leitores nos quatro cantos do mundo, embora, claro, como seria de esperar, o grosso esteja aqui no Portugal pequenino. Porém, os dados não me permitem saber se tenho mais leitores no Norte ou no Sul, no Porto ou em Lisboa. Partindo do princípio de que terei uns quantos na capital, aviso-os então de que hoje ao fim da tarde vou «esplanar» e tomar «chá com livros» no Parque das Nações (e gostaria de estar acompanhada, bem entendido). Num diálogo com António de Oliveira, que moderará a sessão, estou convidada para passar umas horas num belo espaço chamado «Esplanando» onde se fala de literatura com um chazinho sobre a mesa. Por certo, terei oportunidade de contar como comecei a ler a a escrever, dos livros que publiquei (meus e dos outros), das mudanças que encontrei na edição ao longo do tempo, da minha preguiça como autora. Por isso, se lhe apetecer, venha «esplanar» connosco, o convite segue abaixo.
Quando Afonso Reis Cabral ganhou o Prémio LeYa com vinte e poucos anos, ouvi-o dizer numa entrevista que escrevia sobre o que conhecia. O seu romance O Meu Irmão, sendo obviamente ficção, tinha como protagonista um homem que tinha um irmão com síndrome de Down, e não por acaso Afonso Reis Cabral também o tinha, o que lhe permitiu seguramente descrições mais credíveis do comportamento da personagem. Devemos escrever sobre o que conhecemos bem? Será melhor a nossa ficção se ela espelhar uma realidade de que estejamos mais próximos? Perguntei-me isto por causa da entrevista de Arturo Pérez-Reverte ao Ípsilon na sexta-feira passada a propósito do seu Linha da Frente, que decorre durante a Guerra Civil espanhola. Ali pode ler-se que teve «três fontes fundamentais de informação: “Uma, os muitos livros de uma biblioteca sobre a guerra civil, li tudo o que fosse História, ensaio, romance, e também vários autores estrangeiros. Outra fonte foi a minha família: o meu pai, o meu tio e o meu avô, que fizeram a guerra civil. Foram fontes directas, contavam-me histórias, não eram discursos manipulados por terceiros, contaram-me algumas das suas experiências. A terceira fonte foi o facto de eu ter estado em guerras civis [como repórter para o canal de televisão TVE]. Das dezoito guerras em que estive, oito foram guerras civis: Angola, Moçambique, El Salvador, Nicarágua, Jugoslávia, Líbano... Eu sei o que é uma guerra civil. Não foi o cinema que me contou. Vi-as, ouvi-as, cheirei-as e falei com as pessoas. Tenho três boas bases de autoridade para falar sobre isso.”» Tiremos daqui as nossas conclusões.
Tenho andado muito ocupada com as provas de uma antologia que assino com a fadista Aldina Duarte e que para o mês que vem, se tudo correr como esperamos, verá a luz (e as prateleiras das livrarias). Tem que ver com o fado, e mais tarde voltarei a ela, mas a canção lisboeta hoje aparece aqui no blogue porque no passado sábado foi lançado no Museu do Fado um volume que vou querer ler assim que tenha tempo. Trata-se de Severa 1820 e fala, pois claro, da primeira «fadista» conhecida (e guitarrista, já agora), que se chamava Maria Severa Onofriana e nasceu há quase dois séculos na Madragoa, impressionando as gentes que a ouviam cantar, em especial, segundo reza a lenda, o Conde de Vimioso, que muito contribuiu para que a sua carreira vingasse e, com ela, o próprio género. É o duplo centenário da Severa, e ao mesmo tempo os dez anos da inscrição do fado como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, que se comemoram com a saída deste livro, cuja coordenação esteve a cargo de Paulo Lima e inclui textos de várias figuras conhecidas, como Jorge Sampaio, Rui Vieira Nery ou Salwa Castelo-Branco, bem como fotografias de Augusto Brázio. Inclui ainda dois CD, sendo um deles com a banda sonora do filme A Severa, que é o primeiro filme sonoro português. Vai ser um belo presente de Natal para quem gosta de fado.
Quando se fala de literatura latino-americana de língua espanhola, pensa-se quase sempre em escritores mexicanos, argentinos e colombianos, talvez por serem naturais dos países mais fortes em termos literários e com mais tradição de prémios internacionais e índices de leitura acima da média. Estive em Buenos Aires e fiquei louca com a quantidade de bancas de livros por todo o lado, com El Ateneo, uma das maiores e mais belas livrarias do mundo, e com a quantidade de gente que acorre a eventos literários em museus e bibliotecas. Na Colômbia, onde tenho a sorte de ter uma antologia de poemas traduzida e publicada, vi o interesse genuíno dos leitores, que compareciam às apresentações em Bogotá e Cartagena sem me conhecerem de lado nenhum, e dos jovens universitários numa sessão para que fui convidada; e no México, tive casa cheia em sessões de leitura de poesia e numa conferência que fiz com Rui Vieira Nery sobre fado. Sim, são países muito dados às letras e com muitíssimo bons escritores. Mas não podemos escamotear o facto de o Peru, o Chile e a Guatemala já terem tido prémios Nobel da Literatura, apesar de terem menos autores conhecidos. E é justamente deste último país um dos escritores mais interessantes da actualidade, Eduardo Halfon, de que já aqui falei a propósito de Canção e Luto, mas cujo projecto literário é verdadeiramente fascinante, combinando o registo ficcional com as memórias da família de ascendência libanesa. Não percam hoje, às 19h00, a sua conversa com Lídia Jorge no Instituto Cervantes. Só pode valer muito a pena. Eu vou!
Hoje começa mais uma edição do festival FOLIO, na vila literária de Óbidos, e se consegue um tempo livre até dia 16 há realmente muitas razões para lá ir. Puxando a brasa à minha sardinha, desde logo a presença de Pilar Quintana, a «minha» autora de A Cadela e Os Abismos, que irá no dia 15, pelas 15h00, contracenar com Bernardine Evaristo, a vencedora do Booker Prize com Rapariga, Mulher, Outra, sobre o qual já aqui escrevi. Mas estarão também Eduardo Halfon (já leram Luto?), Manuel Vilas, Olga Tocarczuk e Wole Soyinca (dois Prémios Nobel da Literatura), Mia Couto, Pacheco Pereira e muitos outros. O programa inclui ainda sessões em escolas, oficinas, seminários e cursos, incluindo um ministrado pelo escritor Gonçalo Tavares a partir de dez versos de poemas portugueses. Como sempre, haverá ainda concertos, exposições de ilustração e muitas mais actividades ao longo de dez dias de sonho, em que o tema central é... o PODER! Vamos?
P. S. Atenção, hoje às 12h00 é anunciado o Prémio Nobel da Literatura!
Lembro-me de que, nos meus tempos de estudante da Escola Secundária (na altura, chamava-se apenas liceu), estudávamos uma série de figuras de estilo e de retórica e tínhamos de ter a sua definição na ponta da língua, o que nem sempre era fácil, sendo muito mais fácil reconhecê-las num texto. Recordo, porém, que um dia, por causa de uma frase em que se falava com pompa excessiva de uma autêntica ninharia de forma a fazer-nos rir, um professor nos disse que a melhor forma de definir «ironia» era dar a entender o contrário do que se queria efectivamente dizer. Não nos pareceu, na altura, uma definição muito boa, mas na verdade era-o; e um dia destes, no jornal Público, apareceu um anúncio procurando candidatos para um emprego que prova como esse professor estava afinal completamente certo. Parabéns ao Sindicato dos Oficiais de Justiça por pôr a criatividade ao serviço da defesa dos trabalhadores e, antes de tudo, claro, pela ironia.
Estas duas últimas semanas foram pesadinhas, pois, a seguir ao calor, ao barulho e ao movimento da Feira do Livro de Lisboa (que este ano incluiu um enfarte em directo, mas o autor que o sofreu já está fora de perigo, graças a Deus), veio o planeamento dos livros de 2023 e os orçamentos, com contas para cada livro previsto, o que cansa qualquer cabeça nascida para as letras. Talvez por isso não fui capaz de entusiasmar-me por aí além com o livro que trago em mãos, do vencedor do Prémio Nobel da Literatura nascido em Zanzibar (mas a residir há muito em Inglaterra), Abdulrazak Gurnah. Trata-se de Paraíso e é, de certa forma, também um romance de formação, na medida em que relata a vida de um adolescente na companhia de um comerciante a quem foi entregue pelo pai em pagamento de uma dívida. Maltratado pelos capatazes, protegido pelo comerciante, muito belo e cobiçado por homens e mulheres, está sempre no fio da navalha e prestes a ser vítima de abuso. Primeiro a trabalhar numa loja e a mimar um jardim, depois numa grande viagem comercial pelo interior de África, o jovem Yusuf conhecerá tribos hostis, dissensões religiosas, atitudes violentas e primárias, costumes estranhos e mosquitos capazes de matar; e lembrar-se-á cada vez menos do rosto da mãe, que chorou ao vê-lo partir de casa aos doze anos. Escrito com delicadeza, mas talvez um nadinha arrastado, este romance foi finalista do Booker Prize em 1994 e tornou conhecido o seu autor no Reino Unido e não só.