A cantora Patti Smith é, para quem não saiba, uma excelente escritora; o que eu não sabia é que tinha escrito também sobre viagens, e essa é uma excelente novidade. Daqui por uns dias, sai, de resto, para o mercado o seu livro M Train, na colecção de literatura de viagens «Terra Incognita», da editora Quetzal, que inclui já verdadeiros clássicos do género, entre os quais figuram, por exemplo, O Grande Bazar Ferroviário, de Paul Theroux. Mas, desta feita, o «comboio» são as Memórias de Patti Smith, e o livro fala-nos de muitos lugares, relacionando-os constantemente com a literatura (e, claro, o rock). Como escreve o editor: «Sentada no seu café nova-iorquino preferido, Patti Smith lembra as sucessivas viagens que alimentam as suas obsessões artísticas e literárias, bem como o seu desejo de uma beleza que transgrida a ordem do tempo.» E acrescenta (copio um pouco do texto de apresentação porque ainda não tenho o livrinho nas mãos, mas está quase) que iremos poder viajar com ela da Guiana ao México e da casa de Frida Kahlo até Berlim, e também visitar os túmulos de Jean Genet, Sylvia Plath, Rimbaud e Mishima, sentarmo-nos na cadeira de Bolaño ou homenagearmos Burroughs e Sebald. Já tenho água na boca, claro: está na lista de compras da próxima quinta.
Neste mês de Janeiro publiquei o livro de uma jovem autora sevilhana, Elisa Victoria, que aqueles que frequentam habitualmente as Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim, poderão conhecer ao vivo já no próximo mês de Fevereiro. O romance chama-se Vozdevelha (assim, tudo seguido), o nome por que é conhecida na escola a protagonista, em virtude de se sentir melhor ao lado de adultos do que de crianças e ter conversas que nem sempre são compreendidas pelas colegas. É verdade que Marina passa grande parte do seu tempo com a avó, apaixonada de Felipe González (a história passa-se no ano da EXPO de Sevilha, 1992), o que pode justificar os seus assuntos às vezes desajustados; mas a mãe está doente e é frequentemente internada para tratamentos, o que leva a que a criança de facto cresça antes do tempo, com os temores naturais de perder a progenitora e o comportamento desacabelado da avó. Mas é fascinante (e às vezes também chocante) esta voz de velha de Marina, menina dos subúrbios de uma cidade do Sul da Europa no final do século XX que tem, afinal, tantas coisas em comum com os arredores de Lisboa. Terno e autêntico, Vozdevelha é um romance fulgurante sobre uma criança muito inteligente num mundo que às vezes é bastante estúpido e, se quisermos, também um retrato nada condescendente dos habitantes das periferias. Como diz a escritora Elvira Lindo: inesquecível.
Por causa de uma excelente entrevista concedida pelo mais recente vencedor do Prémio LeYa, Celso Costa, ao jornal brasileiro Rascunho, deparei-me com uma história bem engraçada contada pelo entrevistador que hoje partilho aqui no blogue. Em 1913, entre os alunos de Bertrand Russell em Cambridge, havia um aluno um tanto estranho que, no fim do semestre, se aproximou do mestre para lhe fazer uma pergunta insólita. No fundo, queria saber se o professor lhe podia dizer se ele era ou não um completo idiota. Russell, surpreendido com aquela atitude, respondeu que não tinha como saber, mas pediu ao aluno que lhe dissesse qual era o motivo da pergunta. O estudante logo esclareceu: «Se eu for um completo idiota, vou dedicar-me à aeronáutica; senão, tornar-me-ei filósofo.» Russell propôs-lhe então que escrevesse um texto de cariz filosófico durante as férias e, quando o recebeu, bastou-lhe ler os primeiros parágrafos para concluir que o aluno que tinha à sua frente não era nenhum idiota chapado nem deveria inscrever-se em Aeronáutica. O nome dele era… Ludwig Wittgenstein.
Apesar de o meu curso na universidade ter sido de Francês-Inglês, fiz quase todas as disciplinas que eram comuns às licenciaturas em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Literários, Linguística, Teoria da Literatura...) no departamento de Estudos Anglo-Americanos, porque era aí que ensinavam alguns dos melhores professores que tive até hoje. Foi um deles quem me deu a conhecer a maioria dos poetas de língua inglesa de quem me tornei leitora, primeiro, e fã, depois; e, entre esses, está sem dúvida o meu poeta favorito: o irlandês William Buttler Yeats, homem despenteado e com qualquer coisa de louco quando olhado nas fotografias, mas também um irmão próximo nas coisas do amor quando lido com deleite e atenção. É sobre esta figura ímpar e atraente que se debruça o mais recente romance biográfico de Cristina Carvalho, escritora que tem cultivado bastante este género, mas se tem dedicado sobretudo a personalidades da Europa do Norte, como o cineasta Ingmar Bergman ou a escritora Selma Lagerlöf. Agora sei que também ela não resistiu (desde os 14 anos, confessa!) aos poemas belíssimos do irlandês que ganhou o Nobel da Literatura em 1923. Tomando a história de vida do poeta, a autora deste W. B. Yeats: Onde Vão Morrer os Poetas fala ora pela sua voz, ora pela de Yeats (sim, na primeira pessoa), dando-nos uma perspectiva desafiante e, a espaços, até desconhecida do autor. O livro é apresentado hoje às 18h00 na Cinemateca por Frederico Pedreira (não é da minha família, para que fique claro que isto não é um jeito que faço a alguém conhecido) e haverá leituras de poemas pelo actor André Gago.
Lídia Jorge escolheu como tema do seu último romance, Misericórdia, a vida num lar de terceira-idade. É um assunto tremendo, mas que deve ser abordado de todas as formas e feitios, até porque o ser humano está a durar cada vez mais tempo e os lares são um dos mais previsíveis destinos para quem envelhece e se torna um fardo, ou simplesmente para quem não tem quem possa acompanhá-lo nos últimos anos de vida. Como dizia Steiner, os novos não têm de levar connosco, e dou-lhe razão, mas enquanto puder prefiro ter a minha mãe quase centenária na sua casa a interná-la numa instituição. Sei que em tempos falei aqui no blogue de um livro de banda desenhada de um autor espanhol, Paco Roca, que depois teve uma versão em filme de animação, chamado Rugas, sobre este tema difícil dos lares; era uma história que tomava como protagonista um homem com Alzheimer que o filho e a nora «despacham» (no livro é assim, apesar do que diz Steiner) para um lar e ali acaba por encontrar o mais inesperado cuidador. E agora encontrei um outro livro de BD cuja protagonista é uma senhora nos seus setentas que, depois de enviuvar, tem de sair da sua casa na província por causa de uma expropriação e, como todos os filhos vivem em cidades distantes, dá entrada numa casa de repouso, mas repousa pouco, pensa muito, desvia os outros utentes para aventuras proibidas e até arranja um namorado – embora, claro, continue a odiar estar num sítio daqueles (a colcha, o papel de parede, os horários..., bah!). Chama-se Mergulho, assina-o Séverine Vidal e Vitor Pinel e vale bem a pena. Para, enfim, nos irmos habituando ao futuro.
Já sei que a maioria dos leitores deste blogue vai já desligar e voltar ao que estava a fazer... Não são, segundo me têm confessado, grandes apreciadores do género. Mesmo assim, insisto, ou não fosse eu poetisa e leitora de poesia, além, bem entendido, de teimosa e com esperança de conseguir trazer para a poesia alguns dos que estão desse lado. A poesia não é toda igual, e o facto de não terem gostado de um poeta não faz com que (garanto) detestem todos os poetas. Uma proposta feliz para quem o quiser testar é a belíssima editora Húmus, de Rui Magalhães, cuja colecção 12catorze, dirigida por Francisco Guedes, tem publicado ultimamente uma série de autores que serve de montra ao que se está a escrever em Portugal. Já aqui falei de António Tavares em Dezembro, mas depois do seu livro admirável saíram vários outros que merecem a nossa atenção, como Arsenal de Vertigens, de Ronaldo Cagiano (um autor brasileiro residente em Portugal que também é ficcionista), Quarto de Século, de Assunção Varela, o que nunca foi sempre, de Rui Teixeira Motta, Fóssil, de Gaelle Instambul, e as mãos vazias, de Maurício Vieira, que acaba de chegar às minhas mãos. Provem e verão.
Esqueçamos por uns momentos que os russos invadiram a Ucrânia e não estão a fazer guerra limpa, atacando alvos civis e matando inocentes, entre os quais crianças. O assunto aqui é a literatura russa, e os escritores não têm culpa nenhuma dos desvarios do senhor Putin nem merecem que os deixemos de ler. Será provavelmente o caso de Ludmila Ulitskaya, já com dois títulos publicados entre nós pela Cavalo de Ferro, um dos quais creio ter tido em tempos uma edição na velhinha Campo das Letras. Mas, como ainda só li Sonetchka, falarei apenas deste para tirar, desde logo, uma conclusão: é que, apesar de Ludmila ter nascido nos anos 1940, ser uma escritora contemporânea, o seu romance tem o mesmo tom dos autores clássicos; ou seja: lêem-se duas páginas e vê-se logo que é um livro russo, ou não fossem as mulheres sempre designadas por diminutivos (Sonetchka é mais ou menos Soniazinha) e os homens com os seus apelidos (Robert Viktorovitch, o marido de Sonechka). É um livro sobre uma rapariga que gostava muito de ler, mas que deixa de ter tempo de o fazer quando se casa com um pintor mais velho (que passara um tempo num campo de trabalho depois da Segunda Guerra) e é mãe de Tania, acumulando dois empregos para garantir uma casa e alimento à família e permitir que o marido dê asas à sua veia artística. E que acha ter encontrado a felicidade até ao dia em que... Não, não posso contar, a única coisa que avançarei é que no dia mais triste da sua vida Sonetchka vai à estante ler Pushkin, palavras que amenizam o horror. Apesar de nem sempre ter gostado muito da tradução, depois de ler outras tantas coisas que me aguardam, tenho de procurar Medeia e os Seus Filhos, da mesma autora.
A primeira visita de Angelica na situação de noiva à família Salina foi regulada por uma encenação impecável. O comportamento da rapariga fora tão perfeito que parecia sugerido gesto por gesto, palavra por palavra, por Tancredi; mas as lentas comunicações do tempo tornavam insustentável esta eventualidade, tendo de se recorrer a uma hipótese, a de sugestões anteriores ao noivado oficial; hipótese arriscada até para quem conhecesse melhor a previdência do Principezinho, mas não totalmente absurda. Angélica chegou às seis da tarde, vestida de branco e rosa; as sedosas tranças pretas cobertas por um grande chapéu de palha ainda estival onde cachos de uva artificial e espigas douradas evocavam discretamente as vinhas de Gibidolce e os celeiros de Settesoli. Na sala de entrada, largou o pai; fazendo esvoaçar a ampla saia, subiu ligeira os nada poucos degraus da escada interior e lançou-se nos braços de Dom Fabrizzio; deu-lhe, nas patilhas, dois belos beijos que foram retribuídos com sincero afecto; o Príncipe demorou talvez um instante mais que o necessário a aspirar o aroma de gardénia daquelas faces adolescentes. Depois, Angelica corou, retrocedeu meio passo: «Estou muito, muito feliz... [...]
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, tradução de José Colaço Barreiros
Portugal tem cada vez mais festivais literários. Dos grandes como as Correntes d'Escritas (que estão vivos e de óptima saúde há mais de vinte anos!) aos pequenos e discretos em lugares mais distantes e escondidos, não faltam oportunidades de os leitores ouvirem em directo os seus autores preferidos. Mas, fora do âmbito dos festivais, não é comum pagarmos bilhete para ouvirmos um autor conversar, o que hoje acontecerá com Leïla Slimani, a escritora que, ao que parece, escolheu Lisboa como morada, e estará às 18h30 no Centro Cultural de Belém a falar dos seus livros com a jornalista e também escritora Helena Vasconcelos. Se tudo correr bem, lá estarei, com bilhete comprado há muito tempo, porque li quase tudo o que havia para ler de Slimani e prometo continuar a acompanhar a sua obra. Mais: gosto de a ouvir. É aberta, inteligente, moderna, comunicativa e, sobretudo, defende as suas ideias sem recorrer a feminismos de pacotilha e radicalismos desnecessários, antes partindo da sua própria história e da dos seus antepassados. Se não a puderem ir ouvir, pelo menos leiam-na. Quanto a mim, é dos nomes mais interessantes da literatura em língua francesa actual.
Contaram-me há muitos anos (o pior é que já não me lembro quem) que Miguel Torga não fazia dedicatórias nem autografava livros para ninguém e que um dia abriu uma excepção para Mário Soares, mas depois de não conseguir fugir de o fazer...Também me contaram (e desta vez sei quem foi mas não posso dizer) que Saramago, que recebia dezenas de ofertas de livros em todo o lado aonde ia, incluindo festivais no estrangeiro, deixava muitos deles no quarto de hotel quando se vinha embora, tendo, porém, o cuidado de arrancar a página em que o autor tinha escrito a sua dedicatória ao nosso Nobel. Gente sábia... É que, segundo sei, autografar pode ser um perigo: às vezes, encontram-se livros autografados inesperadamente nos sítios menos próprios, e conheço três histórias sobre esta realidade. A primeira é a de uma autora que, convidada a representar Portugal numa feira internacional, verificou que alguns dos seus livros expostos no pavilhão oficial estavam autografados para jornalistas e outras pessoas, chegando à conclusão de que a editora não os chegara a enviar e usara esses exemplares para oferecer à Direcção-Geral do Livro, que era quem tinha o expositor na feira. Por outro lado, sei de um autor que, à procura de um livro seu esgotado há muito, correu os alfarrabistas todos e encontrou um exemplar autografado e dedicado a um amigo muito próximo (que o vendera juntamente com outros livros numa altura de grande necessidade), o que valeu uma zanga entre ambos para a vida. E, por último, Nelson Ferreira Silva, que é sempre uma fonte de boas histórias, comprou recentemente num alfarrabista um exemplar da Crónica dos Bons Malandros, de Mário Zambujal, cujo frontispício dizia que fora oferecido por Paulo Moura e pertencia a Pedro Abrunhosa. Parece que se tratava mesmo do jornalista e do músico. E esta?