[...] Um clamor lamentoso, modulado em dissonâncias bárbaras, encheu-nos os ouvidos. O imprevisto absoluto do que estava a acontecer arrepiou-me os cabelos debaixo do boné. Não sei que sensação causou aos outros; a mim pareceu-me que a própria neblina tinha gritado, tão de súbito, e aparentemente vindo de todos os lados ao mesmo tempo o tumultuoso e desolado alarido se ergueu. Culminou com uma explosão apressada de quase insuportavelmente excessiva gritaria, que emudeceu de repente, deixando-nos imobilizados em diversas atitudes ridículas e obstinadamente atentos ao quase tão assustador e excessivo silêncio que se seguiu. "Santo Deus! O que significa...?", gaguejou, a meu lado, um dos peregrinos. [...] O resto do mundo desaparecera, a dar crédito aos nossos olhos e ouvidos. Desaparecera, pura e simplesmente. Sumira-se sem deixar um murmúrio ou uma sombra.
Joseph Conrad, O Coração das Trevas, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues
Em 2021, se não estou em erro, uma das chancelas da LeYa publicou um romance intitulado Casa do Prazer (no original, La Maison), da escritora francesa Emma Becker (o segundo nome, disse-o ela própria, é uma adaptação do apelido da avó alemã). O livro com o qual Emma se apresentou ao mundo, Mr. It, contava a relação de uma estudante com um homem mais velho e casado, e a autora confessou que se baseara na sua própria experiência. Neste momento, que estreia em Portugal um filme baseado em A Casa do Prazer, a escritora contou aos media que faz sempre trabalho de campo e que, tratando-se de uma história passada num bordel sobre as mulheres que lá trabalham, foi ao longo de dois anos prostituta num estabelecimento em Berlim para saber como era a vida das prostitutas e poder escrever o livro com conhecimento de causa. Interpelada por um jornalista, que lhe perguntou se não teria sido também pelo dinheiro, respondeu que não, embora outras estudantes universitárias trabalhem em casas de alterne para terem uma vida mais desafogada. Presumo então que é mesmo aquela coisa do «lugar da fala». Queres escrever sobre prostitutas?, pois então prostitui-te... Espero que esta senhora não se lembre de escrever sobre automutilação, anorexia ou mesmo um asilos de loucos, porque, se é para partir sempre das próprias experiências, ainda se pode tramar.
Publiquei com felicidade o romance vencedor do Prémio LeYa em 2018: Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. Desde que o prémio foi anunciado, esse livro só me deu alegrias, pois não só já vendeu no Brasil cerca de meio milhão de exemplares, mas também está vendido em 24 países e terá (ou já teve) adaptações cinematográficas e teatrais. O autor, que antes tinha apenas um livro de contos, poderia ter ficado bloqueado com o sucesso, mas, além de ser uma pessoa extraordinária e não ter ganho qualquer arrogância com a proeza, escreveu a seguir um romance que publicamos esta semana, Salvar o Fogo, que é outra obra-prima e resumo assim: depois de ter ficado órfão de mãe, Moisés vive com o pai e a sua irmã Luzia num povoado cujo domínio das terras pertence à Igreja que ali detém um mosteiro desde o século XVII. Os irmãos partiram todos em busca de uma vida melhor, mas Luzia foi obrigada a ficar para cuidar do pai e do menino; estigmatizada pelos seus supostos poderes sobrenaturais (como acender o fogo), leva no entanto uma vida de profundo sentido religioso, trabalhando como lavadeira do mosteiro e educando Moisés rigidamente com o objetivo de o inscrever na escola dos padres e conseguir para ele a educação que nenhum deles pôde ter. Porém, a experiência dessa formação marcará o rapaz de tal modo que ele acabará por deixar intempestivamente a casa. Será só vários anos mais tarde, depois de um grave acontecimento que é o pretexto para a família toda se reunir, que Moisés reencontrará uma Luzia arrependida dos silêncios e magoada pelas mentiras, mas simultaneamente combativa, lutando como nunca pela posse da terra dos seus antepassados. Épico e lírico, Salvar o Fogo é um romance que mostra que muitas vezes os fantasmas de uma família não se distinguem dos fantasmas de um país. A ferida aberta por Itamar Vieira Junior só o leitor poderá fechar.
Nos últimos anos tenho descoberto alguns autores que aprecio muito. Entre eles, está sem dúvida a irlandesa Maggie O'Farrell, que comecei a ler por causa de Hamnet, um romance belíssimo sobre a família Shakespeare de que já aqui falei, e de quem li recentemente Retrato de Casamento (um nadinha menos bom, segundo a minha modesta opinião, mas em todo o caso muito interessante). Passa-se em Itália, que é logo um bom cenário, e trata da vida de uma das filhas de Cosimo d' Medici, Lucrezia, oferecida ao duque de Ferrara em casamento aos quinze anos por morte da sua irmã mais velha, Maria, que era na verdade a noiva, mas sucumbiu desgraçamente a umas febres. A vida de Lucrezia, uma menina extremamente talentosa no que ao desenho e à pintura diz respeito, mas que se tem em pouca conta no seio da família, é-nos contada praticamente desde o berço. Cuidada pela ama Sofia, que já fora ama de sua mãe, vivendo entre vários irmãos e irmãs, ela é um ser agitado e imaginativo, que gosta de animais (especialmente selvagens) e não aprecia as roupas incómodas nem o tempo imóvel em que posa para o seu retrato de casamento. Já na corte de Ferrara, e incapaz de engravidar (veremos mais tarde porquê) e de dar um herdeiro ao ducado (coisa mesmo premente), Lucrezia desiludir-se-á com os actos do marido pouco depois da união e, segundo os livros, morrerá um ano mais tarde de uma apoplexia, de forma algo suspeita. Mas Maggie O'Farrell acha que não foi bem assim, e por isso ainda vale mais a pena ler este romance.
Há dias falei de Foz Côa, ontem de Óbidos e hoje falo de Paredes de Coura. Dizem as estatísticas que este blogue tem leitores em todo o País (e até fora dele) e, como tal, é bom publicitar o que se passa fora dos grandes centros. Ora, a autarquia de Paredes de Coura vai celebrar Abril em grande com um concerto amanhã, dia 22, às 21h30, que terá António Zambujo como estrela no Centro Cultural. Mas, apesar de adorar o António e até escrever letras para ele, o que quero mesmo é publicitar nesse mesmo dia, pelas 16h00, uma sessão organizada pelo Centro Mário Cláudio que tem tudo para ser interessante, emotiva e informativa. Integrada no Ciclo «A Guerra em África» (Mário Cláudio esteve na Guiné e já contou a sua experiência em Astronomia), e a par de uma exposição sobre a guerra colonial, na mesa vão estar presentes para falar do que foi este período negro da história portuguesa (e todos com conhecimento de causa) os escritores Lídia Jorge, Manuel Alegre, João de Melo, Carlos Vale Ferraz e o próprio Mário Cláudio. A conversa será moderada por José Alberto Pinheiro. Assim, se estiverdes por esse norte-norte, lá mesmo em cima, ainda podereis escutar Samuel Úria no dia 24 de Abril em Paredes de Coura e fechar a festa em beleza.
Passei há pouco tempo um fim-de-semana não muito longe de Óbidos, a vila literária por excelência em Portugal, onde cá para mim devia até haver um Hay Festival, como em tantas outras vilas com muitas livrarias pelo mundo fora (Hay foi a primeira, mas há mais). Claro que temos lá o FOLIO, um festival que decorre ao longo de três fins-de-semaba em Outubro para o qual são sempre convidados nomes de peso (alguns contemplados com o Nobel e tudo). Mas não é só: agora, em Abril, há o Latitudes. E é mesmo disso que venho falar, pois começa amanhã e vai até dia 23, proporcionando a quem visita a bela Óbidos mais um entretenimento. O Latitudes: Literatura e Viajantes é, como o nome indica, um festival que aproveita os livros com a tónica das viagens e serve de ponto de encontro a grandes nomes do género, sejam escritores, jornalistas ou ilustradores, estes com a cumplicidade dos Urban Sketchers Portugal e do Grupo de Risco. A gastronomia também não fica de fora, havendo sessões à volta da comida e apresentações de livros saborosas. E não podia também faltar programação para os mais pequenos, havendo passatempos e oficinas para eles!
Uma das vantagens de ter um blogue com os comentários abertos é conhecer, mesmo que não pessoalmente, alguns dos comentadores. Bem sei que também é uma desvantagem porque, quando os blogues dão licença para que os seus leitores abram a boca, às vezes acabam por ser assaltados por comentários terríveis. Porém, neste caso, não acontece; falo-vos de Luís Robalo, que lê o Horas Extraordinárias e só comenta quando tem alguma coisa de jeito para dizer, e que por acaso já conheço pessoalmente, de lançamentos, apresentações ou outras actividades. Mais importante do que isso, é um autor que aprecio no texto memorialista e relativamente curto (penso que é esse o registo que domina melhor) e agora teve uma ideia que me parece boa e portanto publicito: a de criar no Facebook (esse mundo de escritores «anónimos») uma página intitulada Queremos Ler, na qual, ao contrário do que se possa pensar, não se sugerem livros, antes se publicam textos que quem segue a página tem a ambição de partilhar publicamente. Citando o administrador: «Poesia, pequenos contos, crónicas, textos do quotidiano. Pedimos sensibilidade e bom senso. Pedimos interacção, criticas, opiniões, atitudes positivas. Encha de belas palavras esta página que lhe oferecemos em branco.» Como sei que por aqui circulam tantíssimos autores, já têm ali um espaço onde se mostrar e ler o que os outros mostram. Mas... aproveitem-no bem.
Quando fui professora de Português nos longínquos anos oitenta, detectava facilmente os alunos imaginativos pelas suas intervenções e composições e aqueles cujo cérebro era quadrado e não voava; aos mais preguiçosos, para puxarem pela imaginação (sim, pode ser treinada), receitava exercícios quotidianos, como o de, por exemplo, se sentarem numa estação de metro a imaginar os motivos da viagem de todos os que saíam de determinada carruagem ou num cinema a atribuir profissões a todos os que estavam sentados na sua fila. Rosa Montero tem um livro delicioso sobre a imaginação (A Louca da Casa) e a imaginação é fundamental para quem escreve, tal como a memória, pois se conseguirmos reter tudo o que vemos e lemos teremos sempre mais material para usar na ficção. Eu não estava era à espera de que imaginação e memória fossem tão necessárias para, de três em três meses, compor a nova password para entrar no computador... Mas a verdade é que a sua construção tem cada vez mais exigências: não pode ter elementos do meu nome nem da minha data de nascimento ou telefone, não pode ter nenhum elemento das anteriores três palavras-passe que eu tenha escolhido, tem de ter obrigatoriamente maiúsculas e minúsculas, elementos numéricos e sinais de pontuação, e um número de caracteres não inferior a sei lá quantos... Enfim, garanto-vos que é mesmo precisa muita imaginação para a inventar, e o pior, depois, é lembrar aquilo tudo todos os dias quando se chega. Diria que nem para um escritor, que está habituado a memorizar e ter ideias, é tarefa fácil...
O mais provável é associar-se Foz Côa às gravuras rupestres, mas a verdade é que não é só disso que vivem as gentes dessa terra. Esta semana, no dia 21, começa o Festival de Poesia e Música de Foz Côa, que durará até ao dia 25 e cujo programador é Jorge Maximino. Com a colaboração do município e do agrupamento de escolas (e é bom que as escolas estejam incluídas quando se fala de livros e poesia, claro), o programa inclui uma feira do livro e encontros de vários escritores, entre os quais Nuno Camarneiro e Fernando Pinto do Amaral, com alunos e professores. Haverá também uma sessão de homenagem ao poeta Nuno Júdice, com a presença de Guilherme d'Oliveira Martins, que fará um testemunho, e a participação do já referido Fernando Pinto do Amaral, de María Angéles Pérez López e da poetisa Tatiana Faia, entre outros. Além de leituras a duas vozes e mesas-redondas, assistir-se-á a uma conversa-concerto com Luís Represas, uma oficina sobre escrita de canções, uma panorâmica da poesia portuguesa do século XX na voz do diseur Rui Spranger e muitas outras actividades interessantes para todos os tipos de público. Se nunca viu as famosas gravuras, dê um salto a Foz Côa e aproveite a música da poesia que por lá se ouvirá. Um 2 em 1 que promete.