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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

31
Mai23

Um certo verão

Maria do Rosário Pedreira

Uma das desvantagens de passar férias em lugares que praticamente não têm livrarias (aconteceu-me ao longo de muitos anos, acreditem) é que, se não acertarmos nos livros que levamos connosco, é uma tragédia termos de gramar as estopadas que acreditámos serem leituras gratificantes e pode inclusivamente estragar-nos as férias (é por isso que devemos sempre levar um ou dois clássicos). Já me aconteceu mais de uma vez a decepção total, mas também já me aconteceu o contrário: levar uma pasta cheia e serem todos livros maravilhosos. Por exemplo, o ano em que li Rabos de Lagartixa, de Juan Marsé, foi o mesmo ano em que li O Leopardo, de Lampedusa, e um romance absolutamente notável que é, na verdade, o que me leva hoje a escrever este post: La Coca, de Rentes de Carvalho. Já não me lembro se cheguei a escrever sobre a obra-prima aqui no blogue (estou com preguiça de ir ver), mas soube agora que a Quetzal assinala o décimo aniversário da publicação deste livro com uma edição novinha em folha e tenho mesmo de a aconselhar a quem ainda não conheça: a par de uma investigação sobre o contrabando e posteriormente o tráfico de droga no Minho e na Galiza, um relato proustiano (mesmo!) da infância e juventude do narrador que é delicioso. Avancem. Se não conhecem o autor, podem começar por aqui e depois papar os outros todos. (A capa do meu é diferente.)

P. S. Hoje Itamar Vieira Junior estará à conversa com Isabel Lucas na FNAC do Colombo às 18h30.

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30
Mai23

É hoje!

Maria do Rosário Pedreira

Em 2018, Itamar Vieira Junior, que então só havia publicado um pequeno livro de contos, impôs-se como vencedor do Prémio LeYa com Torto Arado, um romance deslumbrante sobre duas irmãs que viria no ano seguinte a ganhar os Prémios Jabuti e Oceanos com a edição brasileira. Quatro anos e um sucesso de estalo depois, oferece-nos o seu segundo romance, Salvar o Fogo (por favor, não percam); e no final de um périplo pelo Brasil (Rio, São Paulo, Salvador, Curitiba, Recife, Fortaleza, Porto Alegre, sei lá que mais), chega finalmente a Portugal para o apresentar também na nossa terra. Mas vem igualmente passar a candeia a Celso Costa, outro autor brasileiro que estará entre nós nos próximos dias e foi o vencedor do Prémio LeYa em 2022 com A Arte de Driblar Destinos, romance de que aqui já falei há dias e é, entre outras coisas, um elogio à leitura. Para uma conversa sobre o Brasil de hoje e estes dois livros, sugiro que nos venham fazer companhia hoje à tarde na Livraria da Travessa. Como o espaço vai ser curto para tanta gente e nem todos moram em Lisboa, haverá transmissão online. O convite segue abaixo.

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29
Mai23

Uma estante só sua

Maria do Rosário Pedreira

A brilhante Virginia Woolf sonhava com um quarto só seu, reivindicando com a sua obra ímpar um lugar para as mulheres que, no seu tempo (e muito depois disso), tinham mesmo de lutar por ele. Mas há escritores que, até por serem homens e já terem «o quarto» há muito tempo, são menos ambiciosos e sonham apenas com uma estantezinha. Estou a brincar, claro, e espero que me perdoem, mas não resisto a reproduzir uma história que encontrei espalhada por aí no dia da morte do elegante e ácido Martins Amis, um grande escritor britânico que foi tão longe como escrever um livro sobre um dandy nazi (A Zona de Interesse). Martin Amis pertencia à geração de ouro dos ficcionistas britânicos do século XX, com Julian Barnes, Salman Rushdie ou Ian McEwan, e foi justamente Rushdie quem contou no dia da sua morte que Amis uma vez lhe disse que o que realmente desejava era que, quando morresse, pudesse deixar atrás de si uma estante cheia de livros e dizer: «Daqui até ali são tudo livros meus.» O escritor recentemente atacado por um radical islâmico durante um festival literário completava a história dizendo que Amis se calara para sempre, que os amigos iriam ter imensas saudades dele, mas que, felizmente, ainda havia a estante que ele deixara.

26
Mai23

Excerto da Quinzena

Maria do Rosário Pedreira

[...] Ao puxar, com um pouco mais de força que o necessário, a lâmina pulou em sua perna provocando um corte acima do tornozelo. E naquele fundo de sertão, sem socorro médico ou antibiótico, em menos de uma semana o ferimento infeccionado evoluiu para uma gangrena implacável e a jovem vida foi embora aos dezanove anos.

Quarenta e um dias depois de entregar o segundo filho à sepultura, meu avô morreu de desgosto, o coração não aguentou o baque de tanto luto. Foi assim que me contaram, muitas e muitas vezes, principalmente minha mãe, em ato de exorcizar a dor que nunca a abandonou. Às vezes, ao me contar de novo a história, seus olhos se enchiam de lágrimas e no meio dos lamentos reclamava: «Seu avô poderia ter enganado a morte, meu filho, pelo menos por mais vinte e três dias, o tempo justo para te ver nascer e, quem sabe, ganhar motivo para viver mais.»

Após meu nascimento, minha avó Rosária sobreviveu mais três anos, dois meses e sete dias, até que o desgosto também a levou em uma noite fria de junho. Mas, enquanto teve vida, não passava um dia sequer sem pedir para ser chamada também. Sempre gostei de imaginar que era real o que minha mãe contava sobre meu nascimento, do raio de luz de alegria na alma de minha avó, motivo de adiar um pouco sua partida.

Consumados todos os atos da tragédia, a foice da morte apaziguada, meus pais receberam a incumbência de tomar conta da propriedade.

 

Celso Costa, A Arte de Driblar Destinos, Prémio LeYa 2022

25
Mai23

Feira do Livro de Lisboa

Maria do Rosário Pedreira

Hoje começa a 93.ª edição da Feira do Livro de Lisboa, que vai decorrer até ao dia 11 de Junho, ocupando-me três fins-de-semana e um feriado em que tantos estarão na praia e no campo a gozar o lazer. Mas esta Feira é um must, como sabem, e este ano regressa com a maior oferta editorial de sempre, embora, infelizmente, com o mesmíssimo número de pavilhões (tudo mais apertadinho, em suma), porque, com a tal Jornada Mundial da Juventude programada para o início de Agosto a requerer organização antecipada, não foi possível ir além do que foi feito em 2022. Mas serão cerca de 140 participantes, mais de 980 chancelas (nem eu sabia que havia tantas) e 340 pavilhões, em lugar dos desejados 379 que para o ano de certeza que lá estarão. O importante, porém, é que podemos deliciar-nos com esta montra a perder de vista e ao ar livre, ver muitos dos nossos autores favoritos e pedirmos-lhes o autógrafo ou um dedinho de conversa, apanhar ar entre a beleza dos jacarandás (atchim!) e conhecer os leitores, essa raça cada vez mais rara num País onde 61% das pessoas não leram um único livro durante um ano inteiro. Eu e os Extraordinários somos as aberrações.

24
Mai23

Maravilhas da aldeia global

Maria do Rosário Pedreira

Toda a gente que me conhece repara que estou permanentemente a bramar contra as novas tecnologias. Claro que sei perfeitamente a falta que me fazem quando as não tenho, e o jeito que me dão a toda a hora, embora não seja de modo algum uma dependente, sobretudo do telemóvel, que uso apenas quando preciso mesmo de ligar a alguém, usar a Via Verde para o estacionamento ou ver o e-mail de longe. Nunca teria provavelmente escrito um romance se não tivesse um computador (na altura, era bastante primário, com disquettes), nem o meu trabalho renderia o que rende e chegaria ao público sem a ajuda da Internet, dos blogues, do correio electrónico, das redes sociais. Mas também tenho consciência de que o digital tornou as pessoas muito mais agressivas, pouco empáticas, obcecadas com os aparelhos, excessivamente comunicativas (ou seja, sempre a dizer sem dizer) e menos profundas, incapazes de ler um texto longo (é por isso que nas redes mostram só as cinco primeiras linhas e depois escrevem «Ver mais»). No entanto, esta semana reconciliei-me com a aldeia global. Queria publicar um livro, que por acaso tinha uma tradução feita por cinco alunas de um mestrado sob a supervisão de um professor em 2006, mas os contactos que o professor me facultara para as consultar eram quase todos obsoletos. Com muita teima minha (porque a maioria delas tinha nomes bastante comuns), lá fui fazendo buscas, do Facebook para o Instagram, do Instagram para o Linkedin, do Google para a faculdade onde estudaram há quase vinte anos, e lá consegui a proeza de encontrar o paradeiro de cinco desconhecidas, que já quase não sabem umas das outras, mas ajudaram também elas no que puderam. E, finalmente, o problema resolveu-se e o livro, se tudo correr bem, pode sair rapidamente. Um caso para dizer: agora vê se não dizes tão mal das proezas da tecnologia...

23
Mai23

Morte assistida

Maria do Rosário Pedreira

O papa Francisco ficou zangado com Portugal por ter sido finalmente promulgado pelo Presidente da República o decreto que permite a morte assistida. Gosto do papa Francisco e adoro o seu sorriso e algumas das suas tiradas corajosas, mas sou claramente a favor da eutanásia e, por mim, estendê-la-ia até a outro tipo de casos menos drásticos. Admiro, de resto, a coragem de alguns para decidirem a hora da sua morte (seja por suicídio ou morte assistida), como aconteceu, por exemplo, com Stefan Zweig ou o escritor flamengo Hugo Claus. O primeiro fartou-se do mundo tremendo em que vivia e matou-se juntamente com a mulher no Brasil, o que, passe o paradoxo, é uma morte bonita. O segundo, que sofria de Alzheimer, deu uma entrevista à televisão e, quando se viu no pequeno écran uns dias depois, percebeu que já não estava em condições e resolveu que não queria fazer figuras tristes; sem dizer nada a ninguém, passou uns meses a organizar a sua partida, almoçou com todos os amigos para se despedir e, num belo dia, deu entrada pelo seu próprio pé numa clínica onde o ajudaram a morrer. Duas histórias que podem parecer realmente chocantes a alguns, sobre tudo aos católicos, mas que a mim me parecem actos de grande lucidez.

22
Mai23

Uma Lolita moderna

Maria do Rosário Pedreira

Publico este mês o segundo romance da autoria de Marieke Lucas Rijneveld (dos Países Baixos), que viu o seu livro de estreia, O Desassossego da  Noite, premiado com o Man Booker International Prize, o que é uma façanha, sobretudo se tivermos em conta que se trata de alguém extremamente jovem e que sempre morou longe dos grandes centros pensantes, numa quinta onde se criavam vacas. E à segunda arremetida não só não desilude como se mostra capaz de reinterpretar a Lolita de Nabokov. Minha Querida Favorita, assim se chama a nova obra, é a história de um verão asfixiante em que um veterinário rural se aproxima da filha adolescente do criador de gado para quem trabalha. Apesar de correrem boatos de uma doença que afecta seriamente os bovinos das redondezas, o veterinário só pensa em fugir aos traumas da infância e a um casamento que secou para se dedicar de corpo e alma à «sua querida favorita» que, sozinha na quinta nessas férias, prefere viver num mundo de fantasia a ter de aceitar o abandono da mãe. Nesse verão, os dois desenvolvem um fascínio tão obsessivo um pelo outro que chegam a cruzar todas as fronteiras concebíveis. E a confissão opressiva presente nestas páginas é uma história comovente e ao mesmo tempo chocante sobre o amor proibido, a solidão e a identidade. Como diz o crítico Jeroen Maris, «não é uma festa agradável, não senhor. Mas o leitor deseja estar na lista de convidados, pois de contrário perde uma grande, grande obra literária.» Cuidado com os estômagos sensíveis. A tradução é de Maria Leonor Raven e a capa de Rui Garrido.

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19
Mai23

ADN

Maria do Rosário Pedreira

Uma Questão de ADN, um programa da TSF conduzido pela excelente jornalista Teresa Dias Mendes. é um dos que insisto em não perder. O ponto de partida é escolher alguém que está a dar que falar por alguma razão e juntar-lhe outra pessoa da mesma família (daí o ADN) para que a conversa a três siga naturalmente por caminhos mais privados e desconhecidos. Recentemente, calhou a vez a Paulina Chiziane, a propósito da entrega do Prémio Camões, e à sua filha, psicóloga clínica, Maria Salomé Cabo. E achei piada quando esta contou que nunca valorizara excessivamente o que escrevia porque, desde miúda, via a mãe deitar fora textos que lhe mostrara e que ela achara maravilhosos. O grau de exigência de Paulina, porém, acabou por condicionar a filha (que, ao que parece, escreve poesia que outros elogiam, mas não a publica). A questão tem a sua graça. Na arte de representar, há imensos filhos que seguem as pisadas dos pais (basta olhar para Hollywood); na música, são também muitos os casos de hereditariedade (basta ver os concertos de Caetano Veloso com os seus três filhos); porém, na escrita, embora haja alguns casos (Martin Amis é filho de Kingsley Amis),  julgo que há menos exemplos de escritores filhos de escritores. Será que os filhos têm receio do juízo dos pais, ou serão os pais que os tornaram demasiado exigentes?

18
Mai23

Jornalista-escritora

Maria do Rosário Pedreira

É muito comum, em Portugal e no estrangeiro, jornalistas (não só culturais) escreverem livros de ficção: ora sobre histórias de que inicialmente foram os repórteres, ora sobre assuntos com que deram de caras numa qualquer investigação para outra coisa, ora porque descobriram o gozo da escrita e não resistiram a tentar a literatura. É agora o caso de uma jornalista bastante conhecida, Anabela Mota Ribeiro, responsável há anos por muitíssimos programas culturais (um dos mais recentes com entrevistas a jovens nascidos depois do 25 de Abril, que acompanhei com imenso agrado). Hoje mesmo irá para a livraria o seu primeiro romance, O Quarto do Bebé, que ainda não li, mas tem uma bela capa e suscita curiosidade. Diz a folha de divulgação enviada pela editora: «Escrito em grande parte durante o confinamento e a doença, e concluído após uma longa gestação, O Quarto do Bebé é um romance autoficcional em forma de diário íntimo [...] Com ecos do universo literário da recentemente nobelizada Annie Ernaux, uma das grandes referências da autora, O Quarto do Bebé é um relato cru e corajoso que revela uma nova e envolvente faceta de Anabela Mota Ribeiro.» Pois, lá vamos ter de ler. O lançamento público vai ser na terça-feira, no Palácio Galveias.

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