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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

30
Jun23

Centenários no jardim

Maria do Rosário Pedreira

Estive uns dias no Algarve, mas não pude aproveitar a programação de conversas literárias em Portimão, celebrando vários centenários de escritores portugueses que neste 2023 se comemoram; os encontros no jardim começam apenas amanhã,  mas para quem esteja a sul, e a oeste (porque a costa é extensa e a A22 está cheia de portagens), vale muito a pena ir assistir às quatro belíssimas sessões, como decerto serão as dedicadas aos pintores e escritores Cesariny e Mário Henrique-Leiria (este bastante mal conhecido, com textos e pintura de monta), ou a que se ocupará do poeta maior que é Eugénio de Andrade (também mais esquecido do que merecia, mesmo assim muito mais lembrado do que Mário Henrique-Leiria) ou a que versará sobre a politicamente incorrecta Natália numa conversa entre João de Melo e a autora da biografia da grande senhora (já em terceira edição), Filipa Martins. As informações vão aqui em baixo no cartaz e o elenco é de luxo. Não perca!

(Entretanto, a quem interessar, presencial ou não: https://academia.observador.pt/products/o-que-faz-um-bom-livro-um-curso-por-maria-do-rosario-pedreira?fbclid=IwAR1s2PxbRzmhhKCvwdrQSrlK3q-L8Gr_3rF4yRIXiiTNUHuli2LVsOh4zd0)

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29
Jun23

A casa das memórias

Maria do Rosário Pedreira

Quando sabe que os pais puseram à venda a moradia onde passou férias durante a infância e a adolescência, a protagonista de Nessa altura já cá não estamos, de Lola Mascarell, sente que lhe arrancam metade da vida. E as coisas pioram quando aparece um comprador. Recusando-se a perder a casa, ela consegue adiar a venda e pede um empréstimo ao banco. E, enquanto aguarda o veredicto, instala-se na moradia, tentando aproveitar ao máximo aqueles que podem ser os seus últimos dias dentro dela. São recordações felizes as que lhe chegam sempre que abre uma gaveta ou desarruma um caixote: o seu grupinho de amigas, as tardes na piscina, as anedotas que o pai contava à mesa, as quedas de bicicleta, o primeiro namorado, as primeiras mentiras… Mas há também um inesperado segredo de família que se encontra estranhamente ligado ao destino que a casa terá em breve. Este é um romance maravilhoso sobre as alegrias e as dores da juventude, narrado alternadamente por uma voz luminosa e fresca e outra, adulta e desesperada. Como disse o grande escritor espanhol Luis Landero, poucas vezes foi tão bem evocado num livro o mundo da infância, com as suas incertezas, os seus terrores e as suas manias. Só por isso, já valeria a pena ler este romance. Mas, claro, há muito mais. Acaba de sair.

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28
Jun23

Traduções artificiais

Maria do Rosário Pedreira

Aqui há tempos, li um livro de uma conceituada autora espanhola cuja tradução vinha assinada por alguém que já deu provas de ser competente e ter experiência no ramo. Porém, havia constantes deslizes indesculpáveis, não só porque os tradutores daquele tipo não escorregam habitualmente em falsos amigos e frases idiomáticas, mas também porque algumas passagens tinham uma sintaxe bastante estranha e retorcida. Na altura, pensei em duas coisas: na pressa, e daí a propensão para a tradução mais próxima do original (quiçá com recurso ao Google Translator, que dizem estar cada vez mais sofisticado); e a possibilidade de a tradução ter sido feita por outra pessoa mais nova e mais inexperiente e apenas revista pela pessoa a quem fora encomendada (isto acontece mais vezes do que pensamos e alguns editores preferem correr riscos e ter um nome sonante para chamar público a contratar um tradutor desconhecido e com tempo livre). No entanto, enquanto estava a gozar as minhas férias, veio a lume a polémica de muitos livros, sobretudo clássicos, já estarem a ser traduzidos por inteligência artificial e apenas revistos por humanos, tendo-se descoberto que uma senhora desconhecida (ao que parece, é um nome inventado) teria traduzido mais de cem ou duzentos livros num só ano, o que, dada a dimensão desses livros, seria completamente impossível. Isto levou-me então ao tal livro da espanhola e à hipótese de a sua tradutora ter recorrido também à IA para lhe fazer o trabalho duro. Será que já chegámos a este estado de coisas? Eu, que faço tudo para que as traduções que publico sejam entregues a bons profissionais e, em alguns casos, até beneficio de apoios dos países de origem dos autores para isso (Coreia, Países Baixos, Itália...), fico parva com esta má notícia. Que mais nos irá acontecer?

27
Jun23

Quanto mais prima...

Maria do Rosário Pedreira

A escritora argentina Aurora Venturini já tinha oitenta e tal anos quando recebeu um importante prémio literário para obras escritas em castelhano com a ficção As Primas. Quem o conta é a escritora Mariana Enriquez, que fazia parte do júri, num curto prefácio ao romance que já se encontra traduzido em português e em muitas outras línguas. Venturini já tinha outros livros publicados (um dos quais de poesia, e elogiado por Borges!), mas, embora tivesse vivido em Paris muitos anos, em Espanha era uma perfeita desconhecida. E a sua prosa é tão desassombrada que foi uma autêntica surpresa para os jurados saber que a autora daquele romance incrível era, afinal, uma senhora já de muita idade. Depois disso, ainda houve outro livro (As Amigas), mas a escritora morreu em 2015. Em todo o caso, falemos deste As Primas e da sua narradora Yuna Riglos, uma rapariga com uma ligeira deficiência mental, mas extremamente dotada para as artes plásticas, que com o apoio de um professor faz exposições individuais de grande sucesso mas não pode abrir a boca, sob o risco de não conseguir «pontuar» as frases e afastar o seu numeroso público. É esta rapariga recém-chegada à maioridade que narra a história da sua família, que inclui uma mãe professora horrível, uma irmã deficiente profunda horrível e sobretudo muitas primas e tias, algumas das quais, temos de dizer, horríveis (e a mais simpática e cúmplice, Petra, até é criminosa). É tão desconcertante esta família que só podia ser ficção, mas parece que no mundo real a família de Aurora Venturini também não batia lá muito bem da bola. Divertido, desbocado, desarmante. Embora prometa mais do que dá, vale a pena.

26
Jun23

Escrever em Madrid

Maria do Rosário Pedreira

Olá a todos depois de umas curtas férias. E, enquanto me vou ambientando à dura realidade do trabalho e não partilho as leituras dos tempos livres, venho dar conta de uma bolsa de residência literária em Madrid. A nossa conselheira cultural na capital espanhola, Ana Patrícia Severino, já criou uma bolsa para escritores quando esteve em Berlim e, pelos vistos, manteve os bons costumes desde que mudou de posto. Se não erro, o jornalista e escritor José Riço Direitinho beneficiou recentemente desta nova bolsa na capital espanhola, e deve ser bom poder parar tudo por um mês e desfrutar da oportunidade de ir para outro lugar e trabalhar exclusivamente num livro. Se tem algum projecto em mãos e pode abandonar a casa ou a família, porque não concorre? Tem até dia 15 de Julho, já não falta muito. Pode consultar o regulamento aqui:

https://madrid.embaixadaportugal.mne.gov.pt/pt/a-embaixada/noticias/3-edicao-da-bolsa-de-residencia-literaria-em-madrid

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16
Jun23

Kafka

Maria do Rosário Pedreira

Quem visitou a casinha de Kafka em Praga, uma construção absolutamente minúscula apesar de ter um mundo nas suas traseiras, mal pode acreditar que o escritor checo tenha nela produzido A Metamorfose, um livro fascinante sobre um homem que acorda transformado em insecto e a rejeição a que é votado pela irmã e os pais, que ninguém poderia imaginar continuasse a ser lido ainda hoje por leitores de todo o mundo e fosse até adoptado como leitura paralela nas escolas. Mas Kafka não é apenas A Metamorfose, e a ensaísta Ana Rocha vai dar o curso A propósito de Kafka sobre o livro-emblema, mas também sobre mais duas obras do mestre, talvez menos conhecidas do público: O Veredicto, que foi escrito quando o autor tinha 29 anos e dedicado àquela que era então sua noiva; e América, que curiosamente conheci através do escritor Nuno Camarneiro, que a ele alude no seu romance de estreia No Meu Peito não Cabem Pássaros. As lições serão três e acontecem nos dias 21 e 28 de Junho e depois no dia 5 de Julho, sempre às 18h30, na sala do Âmbito Cultural do El Corte Inglés. Umas horas kafkianas...

Aproveito para vos dizer que o blogue estará de férias (como eu) na próxima semana, regressando no dia 26. Até lá e boas leituras a todos.

15
Jun23

Relacionamentos improváveis

Maria do Rosário Pedreira

Para me desforrar do livro do pianista de que não tinha gostado, abri o novo romance de Coetzee, que tem um piano na capa, e fui lendo com prazer este O Polaco que, apesar de não ser dos melhores do autor (Desgraça é imbatível), tem esse toque de genialidade de um mestre que, não por acaso, ganhou o Nobel. Trata do relacionamento entre Witold, um pianista polaco de apelido impronunciável que toca Chopin de uma forma praticamente isenta de romantismo, e a senhora catalã que gere uma espécie de clube musical fechado e selecto para o qual o instrumentista é convidado  para fazer um concerto numa dada noite. Witold, passados meses desse encontro, confessa à sua ex-anfitriã que vive para ela, que ela lhe dá paz, o que a desconcerta, porque na verdade só estiveram em presença um do outro nessa noite; mas o pequeno romance é realmente fascinante porque descreve muito bem o facto de nunca conseguirmos ser completamente indiferentes a quem diz que nos ama, mesmo que nos pareça que a pessoa em causa não faz minimamente o nosso tipo. Questões como culpa, pena, consciência pesada, intimidade, diferença de idades, arrependimento, fidelidade, são aqui abordadas de maneira muitíssimo interessante, não isenta de humor, sobretudo quando um conjunto de poemas em polaco (e portanto incompreensíveis, mas muito provavelmente íntimos) aparece para ser entregue à espanhola.

14
Jun23

Ora toma

Maria do Rosário Pedreira

Como aqui então anunciei, este ano uma das minhas autoras (a espanhola Elena Medel) foi a convidada de Espanha para a Noite da Literatura Europeia. Depois da entrega do Prémio LeYa, fui a correr para a escola em cujo recreio aconteciam as leituras entre as 19h e as 22h. Para quem não conheça a prática, estas leituras são feitas, a cada meia hora, pelos autores nas suas próprias línguas e por uma actriz ou um actor em português. Ora, tendo eu entrado em cima do início de uma leitura, só tive tempo de cumprimentar os responsáveis do Instituto Cervantes quando o público já se levantava para ir ouvir a escritora italiana ao virar da esquina; e, como geralmente falo com eles em castelhano, ficámos uns minutos à conversa (também com a autora) ao lado de uma senhora que parecia aguardar que nos calássemos para intervir. Foi então que ela aproveitou uma aberta e disse em castelhano com sotaque alemão (ou parecido): «Que maravilha voltar a ouvir falar este idioma! Eu vivi muitos anos em Espanha, imaginem só o horror que foi ter mudado de Madrid para Lisboa... E, claro, parabéns à escritora.» Eu engoli em seco, perante as caras atrapalhadas dos senhores do Cervantes, e respondi apenas, desta vez na minha língua: «Ah, sim, então ainda bem que gostou.» Não vi se a senhora corou de vergonha porque a sessão era à noite, mas espero que sim, porque a minha vontade foi mandá-la para um certo sítio.

12
Jun23

Árvores

Maria do Rosário Pedreira

Nunca fui boa aluna às disciplinas ditas científicas (Física, Matemática...), mas apaixonei-me aos catorze anos pela Botânica e adorei fazer um herbário que, infelizmente, a minha irmã acabou por deitar fora. Mais tarde tinha, claro, de enamorar-me pelo Herbarium de Emily Dickinson (belo livro com tradução portuguesa da querida Ana Luísa Amaral), que ofereci à minha sobrinha poeta e recebi de presente da minha amiga fadista Aldina Duarte. Mas, entre todos os elementos do reino vegetal, são as árvores que me fascinam (quando estou muito triste, penso que gostaria de me deitar num bosque e respirar fundo). E, como ser eminentemente urbano e «capitalista» (ou seja, que viveu sempre na capital), tinha muitos ciúmes de quem dizia ou escrevia naturalmente palavras como «liquidâmbar», «araucária», «ligustro» ou «metrosiderio». Pus-me então a estudar... E, já  a meio do projecto do meu segundo herbário, dei com um livrinho para crianças que adultos que gostam de árvores adorarão: Procuras Uma Árvore?, de João Gomes de Abreu, Maria Manuel Pedrosa e as deliciosas ilustrações de Madalena Matoso. Ensina o essencial sobre copas, raízes e troncos e permite identifcar uma data de espécies. De grande ajuda para adultos citadinos, será um objecto maravilhosamente útil para as crianças!

09
Jun23

Excerto da Quinzena

Maria do Rosário Pedreira

"Felizmente havia pouco trânsito quando chegámos à entrada do Holland Tunnel. Aliviada, embrenho-me de novo na voz de Erma. E imagino-me a escrever uma história cujo fio condutor seria a atmosfera evocada pela sonoridade particular de uma voz. A sua voz. Sem me preocupar muito com o enredo, seguindo apenas tons e timbres e compondo frases como uma espécie de música, sobrepondo-as como folhas transparentes sobre essa mesma voz.

E o rosto do amor não é senão a brancura do inverno cobrindo as pontas das árvores caídas através das fendas descoloridas dos céus."

 

Patti Smith, Devoção, tradução de Helder Moura Pereira

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