Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

31
Jul23

Adeus e até ao meu regresso

Maria do Rosário Pedreira

Os mais velhos lembrar-se-ão daquelas reportagens com os soldados que estavam na guerra colonial e eram filmados a desejar boas festas à família. Invariavelmente, despediam-se com um «adeus e até ao meu regresso» e passavam a bola ao rapaz seguinte na fila, que era muito longa. Pois hoje faço minhas as suas palavras, já que abro aqui no blogue um parêntese neste mês de Agosto, em que a maioria dos leitores destas Horas Extraordinárias também tem férias e, desejavelmente, todos estaremos a banhos e estendidos nas espreguiçadeiras ou toalhas a ler uns bons livros. Por isso, dada a morte recente do poeta, ficcionista e ensaísta Eduardo Pitta, proponho que se dediquem à leitura de um dos seus livros durante as férias, por exemplo, Persona, que inclui três histórias admiráveis, ou Cidade Proibida, que publiquei em 2007. Para os que preferem a não-ficção, há que ler as suas memórias coligidas em Um Rapaz a Arder, título que é tirado de um dos seus poemas, talvez o mais belo de todos. Boas férias e boas leituras. Eu volto no dia 3 de setembro.

28
Jul23

Mãe e filha

Maria do Rosário Pedreira

O livro, pelos vistos, tem já uns bons aninhos, mas foi recentemente redescoberto ou desenterrado, e ainda bem, porque as mulheres até parece que andam na moda e é, de facto, de mulheres que fala (embora, claro, muitas das casadas tenham  maridos que as adoram, ou as enganam, ou lhes batem, ou já não estão com elas mas determinam, assim mesmo, muito do que é a sua vida). Neste Vínculos Ferozes, de Vivian Gornick, com tradução de Maria de Fátima Carmo, mãe e filha passeiam pela Lexington Avenue em Nova Iorque e quase sempre estão em desacordo, porque são de gerações diferentes, e também porque passaram demasiado tempo à sombra uma da outra durante a vida, e talvez ainda porque uma é divorciada e a outra viúva e ambas rezingonas. Mas falam acima de tudo das suas memórias no bairro de judeus do Bronx onde viveram, memórias essas que estão cheias até ao topo de vizinhas, mulheres que morrem de medo dos maridos, ou mulheres jovens e bonitas como Nettie, que já era viúva quando o filho nasceu e não tinha qualquer talento para ser mãe, tendo de ser ajudada para que a criança não andasse de fraldas sujas e a sua cozinha não cheirasse tão mal. Mas, além de Nettie, há muitas mais, que ora são chumbadas pela mãe e apreciadas e copiadas pela filha, ora se abraçam à mãe no momento da morte sem nunca lhe terem prestado atenção em vida. Não é um romance, são as memórias da própria Vivian Gornick, mas lê-se, garanto, como excelente ficção.

27
Jul23

Ouvir ou ler?

Maria do Rosário Pedreira

A revista Sábado trouxe recentemente um artigo sobre audiolivros, cuja pergunta de partida é se o futuro dos livros é ouvi-los. Louvo a existência de audiolivros por várias razões, sendo a mais importante o facto de constituir a forma mais fácil de fazer chegar a literatura a pessoas que não vêem ou que vêem demasiado mal para que a leitura as não canse. No entanto, conheço pessoas com boa vista que, trancadas durante horas em percursos diários esgotantes do subúrbio para a cidade, ouviram livros inteiros nessas viagens de pára-arranca; e tenho um amigo belga que fez um curso de espanhol elementar dentro do carro (a parte escrita ficava para depois do jantar). Os audiolivros hoje são bastante sofisticados e muitas vezes lidos por actores conhecidos (nos EUA, é comum) ou pelos próprios autores do texto (Rodrigo Guedes de Carvalho é a voz dos seus próprios audiolivros, por exemplo). Mesmo assim, acho que o cérebro de um leitor trabalha melhor e mais do que o do mero ouvinte de livros. É que a entoação com que as frases são lidas já dá indicações sobre estados de alma que, no texto escrito, estão ausentes e devem ser «fabricados» pelo cérebro do próprio leitor. Mas vale a pena fazer a experiência e, para isso, o artigo da Sábado, de que avanço a ligação abaixo, pode ajudar.

O futuro dos livros é ouvi-los? - Livros - SÁBADO (sabado.pt)

 

26
Jul23

Uma história ucraniana

Maria do Rosário Pedreira

Como se pode ser «belo» — «o rosto, a alma, a roupa, os pensamentos», como diz Tchekov — num país onde reina a repressão e só quem se submete a um regime restritivo consegue sobreviver? E como poderá esta experiência ser superada quando quem a sofreu não fala dela, nem mesmo depois de emigrar para o Ocidente, nem mesmo com a própria filha? Em meados dos anos noventa, Lena e Tatiana abandonaram a Ucrânia – uma grávida, outra com a filha pequena – e foram viver para a Alemanha, onde tiveram de começar do zero. Mas Nina e Edi, as raparigas que há muito deixaram de se interessar pelas suas origens, não deixam de perguntar-se o que verão as mães, com o seu «olhar soviético», quando espreitam pelas cortinas das casas onde hoje vivem. Porém, quando as quatro se juntam para a festa do 50.º aniversário de Lena, serão forçadas a admitir que, afinal, partilham uma história comum. Seguindo o percurso de quatro vidas e os vínculos sempre frágeis entre mães e filhas, Sasha Marianna Salzmann, a autora deste No Ser Humano Tudo Tem de Ser Belo, que venceu o Prémio Hermann Hesse em 2022 e foi finalista do Prémio do Livro Alemão, relata-nos uma época de mudanças radicais na Ucrânia com grande empatia e realismo. A não perder nos tempos que correm.

EGM_9789722077538_no_ser_humano_tudo_tem_de_ser_be

25
Jul23

Escrever e cantar

Maria do Rosário Pedreira

Não é a primeira vez que publico um autor que, na sua vida, acumula a escrita com a música: João Tordo tocava guitarra numa banda e Valter Hugo Mãe cantava num grupo chamado Governo. Mas os romances de Miguel Jesus já trazem dentro deles as canções de Miguel Gizzas. E este Os Flamingos Também Sonham não é excepção, tendo impressos nas suas páginas uns códigos que, com uma aplicação do telemóvel, permitem ouvir a banda sonora desta história. Se está por Lisboa, venha fazer-nos companhia mais logo, no lançamento, em que o livro terá justamente apresentação do João Tordo após a qual haverá música, sim, porque o autor vai estrear alguns temas ao vivo. Uma maneira nova e diferente de «ler» uma história que não deixa de viver independentemente das canções mas fica mais composta e completa com elas. Até logo.

convite_os_flamingos_tambem_sonham.jpg

24
Jul23

A escrita e o engajamento

Maria do Rosário Pedreira

Há poucos dias, numa memória do Facebook que o Manel partilhou, descobri um assunto que há  anos me persegue. Ainda eu dava os primeiros passos na edição quando comecei a acompanhar a obra de António José Saraiva. E foi num dos seus livros que li a afirmação (com que concordei logo, de resto) de que os escritores, ao escreverem, já estavam a cumprir um acto de cidadania, pelo que não tinham de modo algum de ser engajados no que escrevessem. Porém, nem toda a gente pensa assim: Adam Zagajewski, poeta polaco, numa entrevista ao jornal Expresso aqui há uns anos, disse: «Aprendi que a poesia não deve ser um esforço puramente estético. Se o teu país, se o teu mundo está sob ameaça, tens de discutir essas coisas nos teus poemas, não te podes esconder num paraíso de beleza. Um poeta tem de se interessar por tudo. Tem de abrir os olhos. Para a política, para a filosofia, para as ideias do seu tempo.» Também lhe dou razão. Continuarei com a questão às costas e sem me decidir.

 

21
Jul23

Excerto da Quinzena

Maria do Rosário Pedreira

Julieta não viajara num foguetão até à Lua, não cartografara mares desconhecidos, não liderara exércitos em batalhas sangren­tas; mas quem trocava algumas palavras com a velha senhora, sen­tada numa poltrona rodeada de outras poltronas de velhas e velhos, percebia estar perante uma mulher extraordinária. Mesmo sem milagres que a levassem à beatificação, mesmo sem feitos épicos no seu passado, mesmo enrugada e sumida, Julieta surgia superior a qualquer personagem romanesca ou cinematográfica: uma heroína da vida real. Um ser maior do que a simples existência terrena.

Alguns desses visitantes tinham conhecido Julieta ainda de pé, atarefada a cuidar da grande casa, dos vários familiares, de um sem-fim de animais. Na verdade, talvez Julieta fosse conhecida por bastante gente. Resgatar-lhe o passado, relatar-lhe a vida, e com isso validar ou contrariar o seu estatuto de ser humano excecional, capaz de suportar agruras inimagináveis, jamais poderia resultar num exercício de incertezas.

Saiba-se que Julieta, como ela própria dizia, se tornou muito velhinha. Viverá mais de cem anos e mostrar ou ocultar o último sopro de vida será decisão do narrador. A morte de uma pessoa tanto pode assumir a imensidão do universo como a insignificância de um átomo. Tanto pode conter o lirismo de um corpo a desa­gregar-se em poeira estelar como a crueza de um cadáver a arder num forno crematório. A morte, qualquer morte, tanto será tudo como nada.

 

Paulo M. Morais, A Boneca Despida

20
Jul23

Almas sujas

Maria do Rosário Pedreira

Li recentemente um romance chileno que tão cedo não me sairá da cabeça. Já o tinha visto elogiosamente referido na «Babelia», o suplemento cultural do jornal El País, mas foi já na versão portuguesa da Elsinore, com tradução de Isabel Petterman, que o degustei. Chama-se Limpa, assina-o Alia Trabucco Zerán, e tem como protagonista uma empregada doméstica chamada Estela. Eu, que até não aprecio especialmente quando os narradores se dirigem aos leitores, tenho de confessar que aqui gostei de ser interpelada por Estela, uma mulher de trinta e tal anos que resolve sair da província e ir para a cidade trabalhar durante um tempo com o objectivo de ajudar a mãe, mas que vai ficando na casa que a admitiu em vésperas de a senhora dar à luz Julia e se vai afeiçoando àquela menina que veremos crescer ao longo de sete anos (e que, apesar de menina, sabe que tem poder sobre a criada). De facto, como a sua mãe vaticinara, Estela cairá na armadilha de permanecer com a família de Julia ao longo de demasiado tempo, porque eles, mesmo vivendo ao seu lado, não lhe serão nunca nada (menos até que a cadela vadia que Estela acolhe clandestinamente), e entretanto a mãe envelhecerá irremediavalemente na aldeia.  Este é um livro sobre a luta de classes (há, aliás, descrições de manifestações e protestos de rua e de assaltos a condomínios de luxo por gente muito revoltada com a sua vida), maravilhosamente personificada em Estela e nos patrões; mas tem a sabedoria de nunca ser caricatural nem óbvia, de tratar o assunto de forma muitíssimo original. Um livro bem escrito e sobretudo muito bem pensado com ideias e prosa limpas, que fica a ecoar dentro de nós, muito depois de o termos terminado.

19
Jul23

Ler no café

Maria do Rosário Pedreira

No tempo em que se estudava nos cafés de caderno aberto a tomar apontamentos, assim que chegava perto do meio-dia, os empregados vinham enxotar-nos, dizendo que não podíamos ficar ali mais tempo só com um café e um copo de água, pois estavam a chegar os clientes para o almoço. Depois, pelo menos na zona onde eu morava, esses cafés desapareceram, dando lugar a agências bancárias, e o hábito perdeu-se. Mas eis que em Braga alguém interessado em alargar a todos os hábitos de leitura se lembrou de fazer regressar os livros aos cafés... Trata-se de uma empresa de construção, a DST, que patrocina há já mais de vinte e cinco anos um importante prémio literário, cuja mais recente vencedora foi a escritora Teolinda Gersão. Na sua teimosia de promover a cultura e a literatura portuguesa, resolveu então oferecer aos cafés de Braga livros dos vencedores do Prémio DST ao longo dos anos, assim aproximando o público mais jovem (que agora vai para o café olhar para o telemóvel) dos livros. Cada café terá uma escolha alargada de títulos (Mário Cláudio, Manuel Alegre, Lídia Jorge, Nuno Júdice, Maria Ondina Braga e muitos mais) para que quem por lá passe não possa dar a desculpa de já ter lido aquele romance ou não apreciar o autor por aí além. Empresas ao serviço da cultura. Muito bem.

18
Jul23

Contos

Maria do Rosário Pedreira

Confesso que não sou muito de ler contos (mesmo recordando ainda muitíssimo bem alguns contos de autores de que gosto, como Borges ou D. H. Lawrence, por exemplo); mas estava curiosa com uma escritora argentina de quem alguns amigos seus conterrâneos já me falavam há anos e que ainda não tinha «experimentado». Samantha Shweblin é autora também de um romance que já foi finalista do Man Booker Prize Internacional, Distância de Segurança, mas foram sempre os seus contos, realmente magníficos, que a celebrizaram. Em Sete Casas Vazias, o primeiro que leio da argentina, a surpresa residiu sobretudo num estilo que é muito mais próximo da literatura norte-americana do que da latina-americana; mas neste caso é um bom sinal, lembrou-me até um pouco a querida Elizabeth Strout e a sua aparente simplicidade. De qualquer modo, as histórias são incríveis e desconcertantes, sobretudo a primeira, em que uma mãe demente invade uma casa alheia e, além de se deitar no chão, meter-se na casa de banho dos estranhos e mexer em tudo, traz para casa um açucareiro que tinha um valor estimativo incalculável para a sua dona. Sete Casas Vazias, cuja tradução é assinada por Isabel Petterman, são sete histórias de casas que podem ser algo claustrofóbicas e cujos finais são sempre ao contrário do que esperamos. O livro ganhou o National Award nos EUA e realmente Samantha é mestre no género.

Pág. 1/3

A autora

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2013
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2012
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2011
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2010
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D