Faz agora vinte anos que conheci Fernando Ribeiro, dos Moonspell. Eu era então editora de José Luís Peixoto, um grande fã da banda que fora interpelado pelo vocalista para elaborar um pequeno livro de contos baseado no álbum The Antidote. O escritor havia sido recentemente galardoado com o Prémio Literário José Saramago, estava mesmo nas bocas do mundo (o lançamento do seu livro Uma Casa na Escuridão tinha tido Eduardo Prado Coelho como apresentador e casa cheia num grande auditório); e a colectânea de contos era, segundo me recordo, escura e gótica mas incrivelmente bonita e com a característica cadência musical do autor. Lembro-me de que, no lançamento do álbum, tive de levar uns tampões para os ouvidos (o Coliseu estava ao rubro, mas não era o meu tipo de música, confesso...); porém, antes disso, foi mesmo muito bom trabalhar com o Fernando Ribeiro que, além de se ter mostrado um grande leitor, era também alguém surpreendentemente com os pés na terra e de uma organização irrepreensível. Agora, comemorando o vigésimo aniversário de Antídoto, o livro volta às livrarias numa edição de luxo, com fotografias de Maria Peixoto Martins, capa dura e sobrecapa. E, não há muito tempo, pude partilhar uma mesa com Fernando Ribeiro numa escola e confirmar que continua a ser uma pessoa muito especial e também um excelente comunicador.
Chamam-lhes «novelas gráficas», talvez influenciados por nuestros hermanos, pois em Espanha a palavra romance não está associada a um livro, mas ao relacionamento romântico, e a palavra escolhida para definir uma ficção romanesca lá é mesmo novela (como o inglês novel). Mas, seja romance ou novela, o género está claramente na moda, combinando um enredo profundo com um bom desenho, ou seja, não sendo o que a BD foi em tempos para os leitores preguiçosos (livro de quadradinhos), mas fazendo subir o nível literário (até já houve um romance gráfico finalista do Booker Prize). Encontrei vários romances gráficos de uma autora argentina chamada Agustina Guerrero numa livraria de Cádiz no ano passado e apaixonei-me por eles. Resolvi então comprar dois títulos, e o primeiro sai agora em Portugal. Chama-se A Viagem e trata realmente de uma viagem ao Japão de duas amigas íntimas e do que encontram de completamente diferente na cultura japonesa. Mas é sobretudo um livro sobre a amizade entre duas mulheres de trinta anos e sobre as suas ansiedades, alegrias e neuras (uma quer ter filhos e não consegue engravidar, a outra fez um aborto e está muito marcada pela decisão). Se ainda não aderiu ao género, esta é uma boa obra para começar.
Como seria mais do que justo (imperioso mesmo, dado os que já lá estavam...), hoje seria o dia em que os restos mortais do grande escritor português Eça de Queiroz iriam finalmente para o Panteão Nacional, o que não aconteceu por causa de uma providência cautelar promovida por um ex-autarca de Baião, que não quer que o corpo saia de lá (acha que chama gente ao local) e que conseguiu ser apoiado por seis dos vinte e dois bisnetos do escritor. Mas Eça é daqueles que não morre, por isso é tão importante que continuemos a lê-lo, a relê-lo e a aprender com ele, independentemente do lugar onde estiverem os seus ossos. A Fundação com o seu nome, cujo presidente é um trineto de Eça (o escritor Afonso Reis Cabral), tem, de resto, feito um excelente trabalho neste sentido; e até tinha um programa para o último fim-de-semana na famosa casa de Tormes (a de A Cidade e as Serras) que foi cancelado por causa da polémica, mas cujas actividades incluíam realizar a entrega do Prémio Eça de Queiroz (para um romance de um autor com menos de 40 anos, neste caso A História de Roma, de Joana Bértholo), promover visitas guiadas à casa e mostrar um arquivo seleccionado do escritor, com peças e documentos raros, bem como alguns objectos pessoais que habitualmente não são exibidos publicamente. Agora vamos ter de esperar, e com o tempo que a nossa Justiça costuma levar, Eça continuará no pequeno cemitério em que está mais uns tempitos.
A autora sul-coreana Han Kang, que venceu (com a sua tradutora) o International Man Booker Prize com A Vegetariana e da qual publicámos mais tarde Atos Humanos (o meu favorito) e O Livro Branco, está de volta aos escaparates com a história de um professor de Grego que está a perder a visão e de uma aluna sua que está a perder a voz. Ambos descobrem, porém, que existe uma dor ainda mais funda a uni-los: numa questão de meses, ela perdeu a mãe e a batalha pela custódia do filho; já ele ganhou o medo de perder a autonomia e o incómodo de, por ter crescido entre a Coreia do Sul e a Alemanha, estar sempre dividido entre duas culturas e duas línguas tão diferentes. Lições de Grego (assim se chama o romance) fala de um homem e de uma mulher comuns que se conhecem num momento de angústia privada – a perspectiva da cegueira dele encontra-se com o silêncio dela. Mas são justamente estes handicaps que os atraem um para o outro, levando-os a encontrar uma saída da escuridão para a luz, do silêncio para a expressão. Muito bom, como sempre.
Levamos os dias a ouvir falar dos «influencers» ou «influenciadores» e do que pesam na economia de certas empresas. Contaram-me que há um casal lindo já não sei de que país (talvez da Austrália) que é pago chorudamente para andar a passear por tudo quanto é hotel de luxo no mundo inteiro e partilhar as fotografias em piscinas e praias de sonho, fazendo os elogios ao serviço e à localização. Literalmente, vivem de tirar férias todo o ano, o que cá para mim também deve ser bastante cansativo, mas já correram mundo e aparecem sempre lindos e em sítios convidativos, conseguindo que muitos dos que os vêem e lêem lhes sigam as pisadas (tendo dinheiro, claro) e dando muito a ganhar às tais cadeias de hotéis. Nos livros, a coisa não é muito diferente; e, no tempo em que o nosso Presidente era comentador televisivo, os livreiros diziam que às segundas-feiras se notava o movimento de saída de certos títulos que tinham sido referidos por ele na véspera, mesmo que ao de leve. Um dos autores que publico foi recentemente referido muito elogiosamente em três canais de TV na mesma semana por três comentadores (e não pela rama, devo dizer, eles tinham lido o livro) e, uns dias depois, não é que tivemos de reimprimir o romance em causa? Mas, curiosamente, nem as críticas nos jornais nem os programas de livros na TV ajudam muito, estes últimos porque passam a horas impossíveis e porque quem os apresenta não é, obviamente, um influenciador...
Mas o melhor era o banho ao fim da tarde, quando o Sol descia e ficava enorme e cada vez mais encarnado, e o mar estava primeiro verde e depois verde mais escuro, e a seguir azul, e depois anil e depois quase preto. E a água estava quente, quente, e havia cardumes de peixes muito pequeninos nadando entre as algas avermelhadas.
E dava gosto mergulhar e dar beliscões nas pernas das mulheres, para que gritassem. E depois que o papá e o tio Arturo e o marido da titi Josefina nos pusessem às cavalitas e nos deixassem atirar-nos dos seus ombros para a água. E depois que um de nós fosse agarrado por dois adultos pelas pernas e os braços e que eles nos atirassem ao ar e dissessem «Cai na água como um gato», e as mulheres, com o traseiro inchado como um balão debaixo do fato de banho em forma de pêra, dissessem: «Não façam disparates com as crianças». E então os homens diziam-nos «Vamos pregar-lhes um susto» e nós corríamos atrás da mãe e das tias e das outras senhoras e elas saíam da água aos gritos e fugiam pela praia fora até que as apanhávamos e as levávamos agarradas até à beira-mar e ali elas sentavam-se na areia cheias de medo e a tia Honorina quase chorava, dizendo ao marido «Não, não, por amor de Deus, Arturín». E nós partíamo-nos a rir quando dizia «Arturín», e chamávamos «Arturín» ao tio Arturo pelo menos durante uma hora, até que nos cansávamos. Mas depois dávamos todos as mãos (e as mãos das mulheres tremiam) e entrávamos juntos a correr na água e atirávamo-nos de cabeça, mas as senhoras não, sentavam-se e ficavam onde a água não passava de três dedos, rindo como galinhas chocas.
Há uns dias falei de destruir livros em biblioteas e livrarias, e hoje o livro de que falarei vem a propósito. Diz-se que o autor checo Bohumil Hrabal afirmou ter vivido apenas para escrever Uma Solidão demasiado Ruidosa, romance que se tornou obra de culto para todos os que acreditam que os livros não vão morrer nunca, apesar de muitos os terem, ao longo do tempo, condenado à morte, sobretudo ditadores e líderes religiosos para quem o que traziam escrito podia ser uma ameaça ao seu poder. Mas nem a Inquisição nem a Censura fascista ou comunista foi capaz de matar a memória, e a palavra escrita e, até ver, os livros importantes continuam a ser escritos e lidos contra a barbárie e a arrogância da ignorância. Hanta, o protagonista deste romance de Bohumil, prensa livros e papel há trinta e cinco anos e, não resistindo a ler uma frase aqui e outra ali, acabou por tornar-se um homem extremamente culto que, entre a miséria e muitas canecas de cerveja, cita Hegel e Lao-Tsé. De há muito para cá, numa cave infecta e cheia de ratos (que também vão parar à prensa de vez em quando), separa das enormes pilhas de papel os livros que o mandam destruir e tem, por isso, toneladas de obras literárias no seu quarto de dormir, o que ninguém sabe e poderia perturbar realmente a sua paz. Mas eis que chega a grande prensa tecnicamente desenvolvida (que, na verdade, dispensará o seu trabalho manual), bem como os rapazes e raparigas com fardas coloridas e cursos superiores que são os novos prensadores a mando da nação... Que será do pobre Hanta e dos seus livros? Com um final inesquecível, este romance (que foi censurado na sua época, ensina que o riso silencioso dos livros se ouve sempre, mesmo entre as engrenagens de uma prensa).
Leio tanta coisa em tanto sítio que depois perco o norte e já não consigo recuperar as fontes. No entanto, a referência nem é muito importante para o caso. A história tinha que ver com alunos de todo o mundo, mas especialmente de países em que o sacrifício financeiro para tirarem um bom curso é maior, que puseram um processo a uma universidade americana porque, depois de terem pago um valor altíssimo para frequentarem aulas de professores bons e famosos, descobriram que o que a universidade lhes dava não eram aulas ao vivo com esses craques, mas meras gravações. Um escândalo, segundo eles, porque desta forma não podem de modo nenhum interagir com o professor, são meros receptores de conteúdos... e, para isso, tinham ficado nos seus países a assistir pelo computador. Têm razão, evidentemente, e espero que ganhem o processo que instauraram pois, com uma mera gravação, a universidade pode estar a ganhar todos os anos propinas de muitos alunos que vão ao engano. Isto suscitou-me, porém, uma outra questão: o meu irmão mais velho é formado em Direito e teve professores que, embora em aulas presenciais, nada mais faziam do que ler as suas sebentas, iguaizinhas há anos. A minha sobrinha mais velha, que tirou o mesmo curso, passou pelo mesmo e até me contou que havia à venda gravações dessas aulas em pens, porque eram todos os anos iguais. E que ninguém abria o bico para interpelar o professor, que tinha como objectivo apenas despejar a matéria da sua sebenta. Fará assim tanta diferença, em alguns casos, tratar-se de uma aula filmada e gravada? Talvez não. Mas é um abuso trocar uma pessoa por um filme.
Na minha família, uma avó e uma tia morreram sós e foram encontradas já sem vida. Penso sempre que deve ser terrível para alguém sair do mundo sem o conforto de uma outra mão ou uma palavra calorosa de alguém próximo; mas talvez seja lirismo da minha parte. Num livro que já deve ter perto de cinquenta anos (A Morte de Um Apicultor, do sueco Lars Gustafsson), o protagonista, ao sentir as primeiras bicadas da morte, escolhe ficar só; na verdade, ao receber a carta do hospital com o resultado dos exames laboratoriais (não tem telefone, mas vive no campo e nos anos setenta isso era mais ou menos comum), rasga-a e prefere ficar a recuperar ou piorar da sua doença a saber o que tem e tratar-se num centro de saúde onde (lá como cá) as pessoas têm de ir de madrugada para serem atendidas. Vivendo com a eterna dúvida, faz a vida que sempre fez desde que se reformou (era professor primário mas, lá como cá, as escolas fecham e os meninos são mandados de autocarro para a única escola que resiste, a muitos quilómetros dali), que é cuidar das colmeias e recordar o passado: da infância bastante pobre (este homem sempre viveu com os mínimos) aos últimos anos do casamento, passando pelos tempos da universidade e os namoros inconsequentes. Um retrato impiedoso de um país que parece muito o que não é num romance magistral há muito publicado em Portugal numa colecção que fez as minhas delícias, a Pequenos Prazeres da ASA.
Bem sei que são mais neste blogue os leitores de romance do que os de poesia, mas não desisto de publicitar a saída de de mais um número da revista Nervo, uma revista de poesia que não se verga às dificuldades e está aí viva e de boa saúde para revelar o talento poético de portugueses e estrangeiros. Neste seu n.º 19, lançado no passado dia 2 de Setembro e desta feita ilustrado pela pintora Sofia Areal, as novidades são muitas, desde logo um texto de Carlos Braga sobre o centenário do nascimento da grande poetisa Natália Correia, bem como um texto do poeta e romancista Frederico Pedreira sobre Dylan Thomas, incluindo poemas do autor galês traduzidos pelo seu punho. Mas há mais: textos de Carlos Luís Bessa, Rui S.Magalhães e Regina Guimarães, por exemplo, a par de poemas do brasileiro Iacyr Anderson Freitas ou da polaca Krystyna Dabrowska. Por isso, entre romances ou entre ensaios, atreva-se à poesia e comece, porque não?, pela Nervo, dirigida por Maria de Fátima Roldão.