Francisco Camacho estreou-se com o incrível Niassa, premiado com o P.E.N. Revelação, e uns anos mais tarde escreveu A Última Canção da Noite. Esteve muito tempo sem publicar, mas agora volta em força com um livro que tem tudo para dar uma bela série de televisão. Chama-se O Monte do Silêncio, passa-se num monte alentejano, e é contado por Diogo, um dos sobrinhos do dono, um rapaz desmemoriado que consome drogas para compensar traumas de infância, alimentados por uma família cheia de segredos. Mas, num Verão em que tudo parecia pacificar-se, Nora, uma afilhada do tio que entrou para a família já adolescente, é encontrada morta; e, ao que parece, alguém viu Diogo no local do crime... Passado entre os anos 80 e os dias de hoje, com um contraste de ambientes que ilustram um país profundamente desigual, este romance é simultaneamente uma sátira sobre uma certa elite portuguesa, uma reflexão acerca do peso da família na construção da nossa identidade e um thriller psicológico com um enredo sinuoso que prende o leitor até à última página. O lançamento é logo à noite, no Teatro A Barraca, às 21h30. Quem apresenta é João Tordo e Pedro Boucherie Mendes.
Todas as pessoas que adoram livros ficam sideradas quando passam ao pé de caixotes de lixo na rua e vêem pilhas de livros que alguém deitou fora como se fossem meras caixas de papel ou cartão. Pior ainda é quando se fala de guilhotinar livros das editoras porque o stock é enorme e as vendas foram fracas... É verdade que os custos de armazenagem são altíssimos, mas oferecer livros a instituições implica o pagamento do IVA correspondente, pelo que a dada altura a única solução é mesmo cortar aos bocados (ai!). Mas isto não se passa apenas em Portugal, e li no mural de uma bibliotecária portuguesa a história de um grupo de colegas suas estrangeiras que se arrepiaram quando souberam que cerca de 2000 livros que não tinham sido requisitados uma única vez ao longo do último ano na sua biblioteca iriam ser... destruídos. Chocadas com aquele procedimento, resolveram então tentar evitar a calamidade e inventaram uns quantos leitores-fantasmas, criando cartões de leitura falsos nos quais eram registadas as requisições de muitos desses livros condenados à guilhotina. Pelos vistos, salvaram uma data de volumes, que continuam lá para quem os queira ler um dia. Contrariedades que desenvolvem o engenho.
Li há muitos anos alguma poesia de Rabindranath Tagore, um Prémio Nobel da Literatura oriundo da Índia, nascido em 1861. Não conhecia, porém, nada da sua prosa (lamento, mas é verdade), talvez também porque ela não abunde em tradução portuguesa e, quando visitamos as livrarias, somos sobretudo chamados por livros vertidos para a nossa língua e livros actuais. Tratando-se de um escritor importante, devemos, pois, agradecer que a E-Primatur (que tem vindo a recuperar alguns clássicos fora de circulação, e não só) tenha recentemente dado à estampa A Casa e o Mundo, publicado originalmente em 1916 e considerado então extremamente inovador pela forma como toma como centro da narrativa uma mulher, cujo marido (um marajá) a ama e ilustra para mal dos seus pecados, pois logo aparece um revolucionário algo interesseiro que a arranca do seu sossego palaciano. Mas é também um livro sobre a dificuldade de um país mudar, se libertar do opressor, se autonomizar, fazer as escolhas certas, ter, em suma, a sua identidade – com todos os erros crassos inerentes às tentativas de alcançar o progresso. Muitíssimo interessante em termos históricos e políticos, às vezes algo rocambolesco e gracioso nos seus volte-face, original na pluralidade de vozes, de vez em quando fez-me recordar, no tom, Hermann Hesse e os seus livros indianos. A Casa e o Mundo foi considerado um dos dez livros asiáticos mais importantes de sempre. A edição portuguesa tem uma capa belíssima.
Na revista que a Livraria Bertrand me envia regularmente por email (obrigadíssima!), descobrem-se factos e recomendações bem interessantes; de uma destas últimas vezes encontrei ali um resumo de um artigo sobre o escritor chileno Roberto Bolaño sobre alguns conselhos que este romancista, contista e poeta (como gostava de considerar-se, embora para nós seja sobretudo um ficcionista) terá dado sobre a escrita de contos. Além de dizer que quem quisesse dedicar-se ao género não poderia falhar de forma alguma a leitura de contos de uns quantos autores (entre os quais estão, obviamente, Cortázar, Rulfo, Tchekhov, Borges, Bioy Casares, Francisco Umbral, Camilo José Cela e Raymond Carver), Bolaño defendia que não se escrevesse apenas um conto, mas mais de um conto ao mesmo tempo, alegando que, de contrário, se ficaria a escrever o mesmo conto até morrer. Chega mesmo a recomendar no seu artigo, a quem tenha energia para tal, que escreva cinco ou seis contos de uma assentada (e, se tiver pedalada, dez ou doze!). O autor de Detectives Selvagens e 2666, que morreu demasiado jovem (aos 50 anos) e decerto com ainda tanto para dar, era o mais promissor escritor latino-americano da sua geração e é dos mais lidos em Portugal. Mas é também, curiosamente, um admirador confesso de Edgar Allan Poe, cujos contos, segundo ele, quase bastariam como material de leitura para quem quisesse ler uma panóplia variadíssima de contos.
Já aqui vos falei de um livro de Claire Keegan, a escritora irlandesa que chegou à final do Booker Prize com Pequenas Coisa como Estas, um pequenino romance magistral que me evocou a cinematografia de Frank Capra por uma certa bondade que não é comum. E agora temos disponível em português uma mini-novela (a autora, pelos vistos, é de textos concisos) intitulada Acolher que uma vez mais não deve ser perdida de forma alguma. É um texto belíssimo sobre uma menina – filha de uma família numerosa na qual há sempre bebés no colo e na barriga da mãe (como, aliás, sucedeu na vida da própria autora) – que, num certo Verão, é levada para casa de uma família de acolhimento. E, enquanto vão passando os dias no meio de um amor que ela nunca sentiu dos próprios progenitores, sempre ocupados com os filhos mais novos e o trabalho, nós vamos descobrir um segredo triste que, claro, uma vizinha conta imediatamente à miúda, ou não se passasse tudo num meio extremamente pequeno em todos os sentidos. A cena final faz chorar (não vale ler antes!) e, apesar de não ter muito mais de 60 páginas, é realmente um livro enorme em muitos sentidos. Uma autora a reter, sem dúvida alguma.
Mais tarde, naquela mesma manhã, estava a tomar um café num bar à esquina do escritório do especialista em investimentos – a estudar, pela primeira vez na sua vida, a página de economia do jornal da manhã – quando se aproximou uma sorridente mulher de meia-idade e lhe disse que depois de ter lido o que ele contava sobre a sua libertação sexual em Carnovsky se sentia também ela menos «reprimida». No banco da Rockefeller Plaza onde foi descontar um cheque, o segurança cabeludo perguntou-lhe entre dentes se podia tocar o sobretudo do Sr. Zuckerman: queria contar à mulher quando à noite chegasse a casa. Enquanto atravessava o parque, uma jovem mãe do East Side elegantemente vestida que passeava com o seu bebé e o seu cão atravessou-se-lhe no caminho e disse-lhe:
– O senhor precisa de amor, e precisa dele constantemente. Tenho pena de si.
Na sala das publicações periódicas da Biblioteca Pública, um cavalheiro de idade deu-lhe uma palmadinha no ombro e num inglês com forte sotaque – o inglês do avô de Zuckerman – disse-lhe que tinha muita pena dos pais dele. – Não contou a sua vida toda no livro – disse com tristeza. – Na vida há muito mais coisas. Mas você deixa-as de fora. Para se vingar.
E por fim, de volta a casa, tinha um negro forte e jovial da Con Ed à sua espera para ler o contador da eletricidade.
– Ouça lá, você faz aquilo tudo que vem no livro? Com aquelas garinas todas? Você é um caso sério, homem. – O contador da eletricidade. Mas as pessoas já não liam só os contadores da eletricidade, também liam aquele livro
Philip Roth, Zuckerman Libertado, tradução de Francisco Agarez
Confesso que nunca tinha lido esta pérola nem ouvido falar do autor, que era sobretudo um diplomata que se dedicava à escrita de peças de teatro. O conhecimento veio através do professor Miguel Viqueira, que usou o texto como trabalho de mestrado com alunas do curso de Tradução na Faculdadede Letras e, assim que o li, fiquei completamente seduzida. Na Espanha católica dos anos cinquenta, um rapaz aguarda, ansioso, a chegada do verão e dos primos, principalmente Helena. Mas, de um verão para outro, Helena transformou-se. Pode a inocência tornar-se subitamente desejo? E pode o que se sente… ser pecado? Este é um livrinho absolutamente maravilhoso sobre a transição da infância para a adolescência. Tão simples que é impossível não nos revermos nele. Quando apareceu, em 1952, Helena ou o Mar do Verão foi considerado por um o grupo de leitores entusiastas uma das obras mais extraordinárias da narrativa espanhola do pós-guerra. Passados tantos anos, permanece intacto o seu poder de sugestão e o lirismo da escrita de Julián Ayesta. O jornal El País considerou-o um dos dez mais belos textos ficcionais espanhóis do século passado.
Lembro-me muito bem de quem me aconselhou Tudo É Rio, de Carla Madeira, uma escritora brasileira que não conhecia. Foi a cantora Luísa Sobral que, além de compositora e intérprete, escreve livros infantis e canções incríveis, é uma leitora de mão cheia e tem até uma espécie de clube literário. Ora, numa conversa trocada à pressa, recomendou-me esta maravilha que li nas férias e que me fez obviamente ter vontade de ler mais romances da autora. Tudo É Rio está magnificamente escrito, tem imagens realmente poderosas, mas, além do trabalho de linguagem, em que nada parece forçado e tudo flui, a história que gira à roda de três personagens é realmente um assombro. Lucy, que fica órfã muito cedo e é criada por uma tia que nunca realmente consegue amá-la como filha, torna-se a prostituta que todos os homens desejam. Dalva, pelo contrário, é uma mulher triste e bem-comportada, com um casamento feliz que, curiosamente, acaba por ser estragado pela existência de um filho. Venâncio, o pai da criança, fez o erro da sua vida por ciúme e não parece que consiga que a mulher lho perdoe, pelo que vive amargurado e se satisfaz de vez em quando no bordel, mas não se encanta especialmente com a poderosa Lucy, que, raivosa, promete conquistá-lo. Por estes caminhos desencontrados passam então laços realmente insuspeitos, surpresas constantes e reflexões muito válidas sobre o valor da família, o amor, as afinidades, os erros irreparáveis e os limites do perdão. Obrigada, Luísa: muito bom mesmo. Vou procurar outros de Carla Madeira que, se não estou em erro, virá este ano ao FOLIO.
Como se costuma dizer, abriu a rentrée, e lá começam os lançamentos. O meu primeiro (quase como o primeiro teste de um ano lectivo) é o de Teoria das Nuvens, de Mário Cláudio, já amanhã na cidade de Porto, a que se seguirá no sábado dia 9 às 17h00 uma sessão de autógrafos na Feira do Livro do Porto, no pavilhão da IBook. Teoria das Nuvens é ao mesmo tempo um livro sobre a actualidade (uma professora com um esgotamento é mesmo uma personagem dos dias de hoje) e um livro sobre esse frade-poeta do século XVI que é San Juan de la Cruz, cujas vida e obra são o assunto de uma tese de doutoramento que ocupa o namorado da referida professora. Como se escreve na contracapa: «Numa cidade portuguesa, facilmente identificável, mas também na Espanha do Século de Oiro, um punhado de personagens ruma ao horizonte da sua redenção. Uma fotógrafa e um músico, uma empregada doméstica e um académico da literatura, um velho coleccionador, um poeta místico, e uma criança eterna, encontram-se e desencontram-se ao sabor do acaso. Correm as nuvens sobre os passos que levam, companheiras da idade humana que lhes coube trilhar.» O convite para o lançamento aqui fica.
Descobri há uns tempos, por recomendação de amigos, uma série de pequeninos livros belíssimos, publicados com a chancela BCF. O «B», descobri bem mais tarde, é de «Brito» e tem que ver com o nome de um dos proprietários, o filho do saudoso editor Manuel Brito, da Contexto, onde Al Berto publicou a sua obra. O primeiro desta série que li (e de que aqui falei) foi a pérola escrita pela cineasta Chantal Ackerman, Uma Família em Bruxelas; e agora estou a terminar As Malditas, o primeiro romance da argentina Camila Sosa Villadas. Trata-se de um história tremenda e dura sobre um grupo de travestis nos anos em que a SIDA começa a ceifar vidas, curiosamente contada por uma delas: a própria Camila, que nasceu rapaz, e negro, e pobre, em Córdoba, Argentina. (Se viu a série espanhola Veneno, é algo do mesmo tipo.) E não escrevo «trans» porque a autora acha a palavra que a Europa e os EU usam hoje algo eufemística, mas é na verdade um livro sobre meninos e rapazes que sempre se sentiram raparigas, sempre gostaram de vestir saias e de se pintar, que injectaram silicone nas mamas e nas nádegas, raparam os pelos, fizeram operações, que se prostituíram, tiveram chulos, foram maltratadas, presas, gozadas. Mas é também uma história de gente imensamente solidária, sensível, inclusiamente capaz de recolher um bebé encontrado no cesto de lixo de um parque ou receber uma mãe solteira para ter o seu filho no bordel. Penso que todos nós beneficiaríamos com esta leitura antes de darmos opiniões sobre aquilo que não conhecemos sobre a problemática trans. A história pessoal da narradora, bem como das suas muitas amigas, é realmente comovente e capaz de iluminar. A única coisa que não apreciei especialmente foi uma tentativa algo forçada de introduzir um elemento de realismo mágico (a uma das travestis, a María muda, crescem penas no corpo), mas, enfim, é um pormenor.