Aluguei casa na Ericeira para férias durante uns anos e, nessa altura, ia muitas vezes a Mafra, algumas delas visitar o convento com alguém que ainda não o conhecia, outras almoçar ou fazer compras, sobretudo quando o nevoeiro demorava a levantar. Mas não sabia que Mafra tinha um festival literário que começou ontem e vai até 5 de Novembro. Tem como curador José Fanha (um grande divulgador da cultura que se estreou na TV com um saudoso concurso cultural chamado A Visita da Cornélia, em que participou também Fernando Assis Pacheco) e conta com vários convidados, começando pelo ex-candidato a Presidente da República Sampaio da Nóvoa, mas também Paulo Moreiras, Alberto Santos e Isabel Stillwell (que falarão de história e ficção), Cristina Carvalho, Carlos Fiolhais e André Gago (que se dedicarão ao professor e poeta António Gedeão), e muitos outros autores portugueses, como David Machado, Rita Taborda Duarte, Ana Cristina Silva, Ondjaki ou Álvaro Laborinho Lúcio, que estarão em várias mesas para abordar temas sempre interessantes e ligados à nossa querida leitura. Haverá ainda um concerto de Agir, um encontro de ilustradores e os contadores de histórias que andarão a dar de si pelas várias escolas da zona. É ir, senhores.
Bom dia. Cá estou de volta à nossa sala de leitura, embora, em rigor, não esteja completamente recuperada: tenho uma costura do tamanho de quinze agrafos coberta por umas fitas que fazem comichão, e ainda tenho algumas dores mas tenho esperança de que, com o tempo, me desapareça o incómodo (afinal, foi esse o objectivo da cirurgia). Mas regresso ao blogue com gosto, mesmo sabendo que rouba tempo e que tenho trabalho atrasado, prometendo algumas histórias e sugestões de livros, como a que vos faço hoje, de conhecerem uma autora que comecei por estudar no Instituto Italiano nos anos oitenta (Natalia Ginzburg) e que está a ser publicada agora em Portugal quase exaustivamente com belas capas, ainda por cima. Eu comecei pelo maravilhoso Léxico Familiar (o mais conhecido livro de Ginzburg, creio), mas podem também espreitar As Pequenas Virtudes, Foi assim ou até o menos interessante (pelo menos para mim) Todos os Nossos Ontens, este com prefácio de Sally Rooney, a conhecida autora de, entre outros, Gente Normal. A obra de Natalia Ginzburg é feita, regra geral, de livros que são romances-documentos-ensaios-memórias-crónicas da vida em Itália durante o nazismo (tudo junto), já que a autora é judia (o seu nome de solteira é, aliás, Levi), viveu o drama do fascismo italiano na pele e esteve presa com o marido, que acabou por ser morto em 1944. Uma autora de mão cheia que importa não esquecer. Amanhã há mais.
Quase, quase a voltar (parece um paradoxo, mas isto não é bem um regresso). Hoje vou tirar os pontos e vamos ver se me dão rédea solta. Tenho estado a trabalhar, mas numa versão mais irregular e vagarosa (alguém mais jovem diria «numa versão soft»). De qualquer forma, quero avisar deste lançamento no próximo sábado. Vá e, se tiver crianças, leve-as também.
A Quetzal tem vindo a reeditar a obra de Julian Barnes, cujos livros fazem as minhas delícias pela inteligência, o humor e as reflexões sobre a vida e a morte. Alguns deles, que li quando saíram na ASA, aparecem agora com novas capas e quase nunca resisto a espreitá-los de novo ou relê-los. Há uns tempos saiu, por exemplo, Amor & C.ª, a história de um triângulo amoroso que no original se chamava Talking it over, narrada pelos três vértices desse triângulo: Gillian, Oliver e Stuart. Gillian está apaixonada pelo tímido e pacato Stuart, com quem acaba por se casar e que é o melhor amigo do extravagante Oliver. Mas este Oliver, consumado o casamento do seu amigo Stu, percebe que gosta de Gillian e vai obviamente desencaminhá-la... Uns anos mais tarde, Barnes escreveu Amor & Etc., que acaba de ser também reeditado pela Quetzal, em que estas três personagens, já mais velhas e sábias, voltam à carga. E desta vez Gillian está casada com Oliver, que afinal não é flor que se cheire... Stuart, por outro lado, trabalhou e viveu nos Estados Unidos durante muito tempo, ganhou muito dinheiro, voltou a casar-se mas não esqueceu a sua velha amada. De novo, falam os três (e outros), com as suas vozes incrivelmente pessoais e marcantes. Estes dois livros são mesmo bons para ler um a seguir ao outro, muitíssimo sérios e divertidos, como é típico do senhor Barnes, um dos meus autores mais lidos.
P. S. Amanhã vou ser operada à coluna, vou ter de vos deixar por uns dias, mas volto assim que possível. Vão lendo sempre, é o melhor que levamos daqui.
Desde que o Prémio Nobel da Literatura foi atribuído ao norueguês Jon Fosse (já indicado em várias apostas como o vencedor) leio as mais díspares opiniões sobre o assunto. Confesso que não conheço a sua obra dramática (não li as suas peças que estão publicadas em Portugal e não me lembro agora se assisti a alguma delas encenada por cá) e que ainda só li dois dos seus livros de ficção que a Cavalo de Ferro publicou (Manhã e Noite e Trilogia, sobre os quais aqui escrevi), mas destes gostei imenso. Contudo, lembro-me de que o recomendei a um amigo que é um grande leitor e que ele achou o texto meio infantil e muito repetitivo, não vendo nele nada de assinalável e achando-o até chatinho. Por isso se percebe que, quanto a Fosse, não haja consenso e tão depressa as pessoas se mostrem indignadas, como digam que é uma chatice absoluta, como elogiem muito. Outros vencedores recentes do prémio que também não reuniram muitos leitores à sua volta foram, por exemplo, Elfriede Jelinek e Patrick Modiano, além, claro dos poetas, mas isso já se sabe.
Para nós, que gostamos de ler, existe um certo voyeurismo no acto de bisbilhotar a biblioteca de alguém conhecido, mais ainda se se tratar de um escritor, já que raramente temos oportunidade de conhecer os autores que gostamos de ler. De que escritores têm mais livros? Em que línguas lêem? Têm instrumentos de trabalho, como dicionários, alinhados na estante? Como arrumam os livros, por ordem alfabética? Que temas ou géneros lhes interessam mais? Têm os livros impecáveis ou bastante subinhados e estragados? A cada maluco sua mania, dizia a minha avó, e agora podemos meter o bedelho em algumas bibliotecas de escritores contemporâneos para descobrir quais são essas manias: o jornal The Washington Post resolveu fazer uma série chamada Book Tour, em que John Williams, jornalista, vai visitar algumas bibliotecas privadas e falar com os seus donos. O primeiro artigo, cujo link vos deixo em baixo, foi sobre os livros de Jennifer Egan, publicada em Portugal pela Quetzal, cujo mais recente livro é, se não erro, Uma Casa Feita de Doces. (Tenho, mas ainda não li.) Se forem curiosos, vão acompanhando.
Eis um livro incrivelmente oportuno que me deu imenso gozo ler e publicar sobre o lado mais negro das redes sociais. Conta a história da jovem Kayleigh, que está cheia de dívidas e por isso aceita um emprego como moderadora de conteúdos de uma rede social, cujo nome está absolutamente proibida de mencionar. O seu trabalho consiste em decidir, segundo regras muito apertadas e em constante mudança, que textos, vídeos ou fotos devem ser removidos da plataforma –, passando grande parte dos dias a testemunhar o pior de que a humanidade é capaz. Mas Kaleigh ganha bem, é boa no que faz, arranjou amigos na empresa e até se apaixonou por lá, pelo que, pela primeira vez na sua vida, o futuro parece sorrir-lhe. Só que, de repente, um após outro, os colegas começam a entrar em colapso e a despedir-se, quando não a abraçar as mesmas causas que supostamente deviam censurar… Ambientado no universo tremendo das redes sociais, Tivemos de Remover Este Post é uma história poderosa e absolutamente pertinente sobre quem determina hoje a nossa visão do mundo. Explorando o conceito de moralidade e a forma como este se tornou completamente fluido, destaca o poder das grandes empresas tecnológicas e a forma como controlam, directa ou indirectamente, as nossas vidas. Ian McEwan disse deste livro que era «soberbamente equilibrado, psicologicamente astuto e subtil». No país de origem, vendeu 600 000 exemplares. Faz-nos pensar muito enquanto lemos e depois de o terminarmos.
Realmente, parece mentira, mas a partir de certa idade o tempo voa de maneira absolutamente louca e a verdade é que se completam esta semana 25 anos da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago (!). A data é, aliás, pretexto para um congresso na Livraria Lello, no Porto, em redor do escritor, congresso intitulado «Que Faremos com José Saramago?» que se inicia hoje e vai até à próxima sexta-feira. A organização está a cargo do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa, da Cátedra José Saramago da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e da própria Livraria Lello, com o apoio da Fundação José Saramago. Falarão académicos e especialistas na obra do autor nobelizado, portugueses e estrangeiros, de idades muito diferentes, como Carlos Nogueira, Carlos Reis ou Annabela Rita, mas também o galego Carlos Quiroga e a italiana Maria Luísa Cusati. A viúva do escritor também participará no painel de abertura. No fim, por certo saberemos o que fazer com José Saramago.
David Machado é um dos maiores e mais originais escritores infanto-juvenis que Portugal tem, e é sobretudo um autor que não trata as crianças como tolinhas ou imbecis, trocando-lhes frequentemente as voltas com um toque de non-sense e indo ao encontro dos disparates bons que todas fazem, provocando boas gargalhadas. Desta feita, alia-se a um grande senhor da ilustração, João Fazenda, e o resultado é mesmo mágico. Chama-se Esta História e talvez seja tudo menos isso, constituindo um diálogo maravilhoso entre uma pessoa que que contar uma história pura e angélica e cor-de-rosa a uma criança e, do outro lado, a criança que quer ouvir uma história que seja tudo menos isso, preferindo inclusivamente fazer outra coisa a ter de ouvir a narrativa previsivelmente chatinha que se avizinha. Existe uma gravação belíssima de Esta História feita durante a pandemia, ao espelho, pela talentosíssima actriz e contadora de histórias Ana Sofia Paiva, que é um bom complemento para a leitura desta preciosidade.
Quando publicamos um livro de autor português, temos sempre de perguntar se há epígrafes, dedicatórias e agradecimentos por causa das páginas que é preciso guardar. As epígrafes são cada vez mais comuns, uma espécie de ponto de partida ou explicação apriorística que justifica o que aí vem; mas ficaram de tal maneira na moda que, muitas vezes, sinto que os autores vão à procura de qualquer frase que ilustre o seu texto quando deveria ter sido a frase a desencadear a escrita do livro. Isso faz-me lembrar uma colega de faculdade com quem tive de fazer um trabalho de grupo que, antes de começar, já tinha um número de citações que queria incluir à força no trabalho... Enfim, com as dedicatórias é diferente, e elas geralmente funcionam como agradecimento, homenagem ou uma espécie de presente. Aprendi, porém, com a newsletter da Livraria Bertrand que nem sempre foi assim e que, na época do Império Romano, se dedicava um livro a alguém importante e com poder para o publicar, e não a uma pessoa íntima, e que as dedicatórias eram muitas vezes longos elogios a esse desejado patrono, tornando-se mais curtas apenas no século XVIII. Hoje em dia, costumam ser bastante curtas, e diz a referida newsletter que maioritariamente contemplam membros da família, amigos, namorados e cônjuges. Já os agradecimentos costumam ir para o final e, regra geral, são dirigidos a quem leu, releu, ajudou a fazer, contribuiu com informações e opinou sobre o próprio livro. Curiosamente, são bem recentes em Portugal, pois nos anos setenta e oitenta era muito invulgar os autores agradecerem fosse a quem fosse.