Hoje sai para os escaparates a obra poética completa de Roberto Bolaño (o último «autor-mito», como diria Eduardo Lourenço, da nossa época, a par de David Foster Wallace, mas muito mais lido internacionalmente). Bolaño escreveu em vários registos, que não raro se misturavam, e os seus romances (Os Detectives Selvagens ou 2666, por exemplo) são a parte da sua obra mais referida e elogiada, o que é curioso, porque o escritor chileno achava que a poesia é que era uma forma de arte superior. Com tradução do jornalista e editor Carlos Vaz Marques (que é um apaixonado de Bolaño) e prefácio de Manuel Villas (autor que se tornou conhecido mundialmente com o romance Ordesa, por cá intitulado Em Tudo Havia Beleza, mas também poeta), a Poesia Completa de Roberto Bolaño é um cuidado volume de capa dura e sobrecapa que ultrapassa as 400 páginas e será um excelente presente de Natal para quem gosta de poesia e de Bolaño (pode ser que mo ofereçam antecipadamente, pois não vou esperar até lá). Segundo o texto da editora Quetzal, que o dá à estampa num acto de amor e coragem, muitos dos poemas de Bolaño «são profundamente autobiográficos e – como a generalidade da sua ficção – estão cheios de poetas e artistas famintos, errantes, em cenas de pugilato, loucos por sexo, magoados, egocêntricos, mergulhados na noite, à beira da penúria, literatos corruptos ou canções que nunca foram escritas. É um mundo interminável, belo e terrível». Como resistir?
A minha geração leu na juventude uma data de livros em que as meninas andavam em colégios internos e ali faziam partidas tremendas às professoras ou choravam que nem Madalenas com saudade dos pais. Era também uma situação comum em raparigas de carne e osso que haviam perdido as mães, cujos pais se tinham separado ou que eram completamente inaptos para as educar, e bem assim em rapazes que se portavam mal e iam de castigo para o colégio interno, geralmente de padres e na província. Num dos estabelecimentos de ensino que eu própria frequentei, com centenas de alunas (na altura, éramos só meninas ou só rapazes), embora quase todas as estudantes fossem externas, havia umas pobres miúdas que viviam no colégio. Vindas de longe, de alguma aldeia perdida no mapa, as freiras davam-lhes a escolaridade, cama e roupa lavada em troca de trabalhos de limpeza e, quem sabe, na esperança de reunirem ao seu rebanho mais umas ovelhas que quisessem um dia ser noviças. Mas há quem tenha frequentado colégios internos para ter uma educação de excelência, como Fleur Jaeggy, a escritora suíça que trabalhou na mítica editora Adelphi, de Roberto Calasso, e acabou sua mulher, além de escritora. O pequeno romance Felizes Anos de Castigo (que é uma obra de culto e acaba de sair em Portugal com tradução de Ana Cláudia Santos) parte provavelmente da sua experiência para nos contar a história de uma rapariga que vive em colégios internos desde os oito anos, colégios esses que recebem ordens da mãe dela, que vive no Brasil (talvez com um segundo marido), e aonde o pai a vai buscar uma ou duas vezes por ano para passarem férias juntos em hotéis, nunca existindo uma casa de família. A chegada de uma aluna nova, Frédérique, sofisticada e inteligente, será uma brecha na monotonia dos seus dias sempre iguais, excepto pelas mortes de progenitores que vão acontecendo e que criam separações e feridas que não saram em muitas colegas. Publicada pela primeira vez em Portugal, uma autora que importa acompanhar.
Já há muitos anos que ouço dizer que, na América Latina, o escritor mais vezes indicado ao Nobel é o argentino César Aira. Roberto Bolaño, por exemplo, disse que, quando se começava a ler Aira, nunca mais se conseguia parar. Confesso que nunca tinha lido este autor; tenho a certeza de que haverá livros dele lá por casa (na biblioteca conjugal), provavelmente na língua original, mas há sempre tantos livros que se nos impõem que um ou outro autor acaba ficando para trás. Felizmente, a Cavalo de Ferro publicou recentemente duas pequenas novelas de César Aira e, caso pudessem passar despercebidas, vestiu-as com uma capa amarela berrante, o que foi bom, pois serviu para me chamar a atenção. (E este é um dos livros que a leitora desta blogue que encontrei um dia à porta da FNAC também comprou.) Li a primeira, chamada A Tília (a seguinte é Aniversário), que é sobretudo uma memória de infância do autor com os pais num bairro pobre da província de Buenos Aires. Porém, apesar de bonita e fluida, como as referências ao peronismo são constantes e eu sempre tive imensa dificuldade em perceber o que era exactamente o peronismo (tão depressa de esquerda como de direita, tão depressa de preocupação social como de violência política), digamos que não foi a obra ideal para começar. Para uma história sobre um pai muito especial (como é o de César Aira nesta novela) prefiro de longe o romance de Hector Abad Faciolince, Somos o Esquecimento Que Seremos, editado inicialmente pela Quetzal e reeditado há pouco pela Alfaguara. Vou agora ler Aniversário para tirar teimas.
Diz-se que os italianos não conseguem falar sem gesticular (por vezes até um pouco exageradamente) e que há pessoas que têm mãos que falam. É verdade, e tem graça olhar para elas, embora eu seja bastante contida nessas movimentações e isso nem esteja especialmente relacionado com contenção ou timidez, mais com tensão e stress. O que não sabia era que também há mãos que cantam, e isto pareceu-me mesmo bonito. Porque os deficientes auditivos comunicam através de Língua Gestual entre eles e com quem a domina, como os tradutores dos noticiários ou as pessoas que traduzem conferências, debates, palestras, congressos, etc., com as mãos; mas a verdade é que não havia tradutores de canções para quem as não pode ouvir, e acabo de ler que o projecto Mãos Que Cantam, em associação com o Museu do Fado, está a construir uma base de dados de fados em Língua Gestual Portuguesa. Ao que entendi, Ricardo Ribeiro e Aldina Duarte foram os primeiros artistas a cantar para estes tradutores, e na foto abaixo aparece a reprodução de uma destas traduções. Fiquei ainda mais impressionada com a maravilha quando descobri que o Papa, quando em Agosto esteve em Portugal, foi brindado por um coro de surdos, que cantam, claro, com as mãos.
– Então, senhora Kayleigh, afinal de contas, que tipo de coisas viu?
As pessoas fazem de conta que é uma pergunta perfeitamente normal, mas que normalidade pode haver numa pergunta para a qual se espera uma resposta horrível? Também não sinto que essas perguntas signifiquem que as pessoas se interessam por mim. Talvez isso não seja estranho, talvez as perguntas não tenham como objetivo o interesse pela outra pessoa, mas a curiosidade sobre as vidas que nós pudemos ter levado [...] mesmo assim, eu noto uma pontinha de fascínio mórbido, uma necessidade que leva a fazer perguntas, mas que nunca ficará totalmente satisfeita.
Vi uma rapariga enterrar em direto uma navalha demasiado romba no braço; foi preciso enterrá-la bem fundo para começar a sangrar. Vi um homem dar pontapés ao seu pastor-alemão com tanta força que o bicho chocou aos latidos contra o frigorífico. Vi miúdos a desafiarem-se mutuamente para ingerir uma dose irresponsável de canela. Li textos de pessoas elogiando as qualidades de Hitler aos vizinhos, colegas e vagos conhecidos, assim sem mais nem menos, à vista de todos, para potenciais companheiros ou patrões lerem. Li a frase «O Hitler devia ter acabado o que começou» escrita como comentário à fotografia de uns imigrantes num barco à deriva.
Tudo isto são exemplos desenxabidos [...] São tudo coisas que apareceram nos jornais, contadas por outros ex-moderadores de conteúdos, o que de resto não significa que eu não as tenha visto: as saudações nazis, os cães violentados…, a rapariga com a navalha é inclusivamente um clássico. Há milhares delas por aí, há uma em cada rua, imagino eu: naquela casa onde à noite a luz da casa de banho está acesa, ali está ela, sentada sozinha no chão duro e frio. Mas isto não é o que as pessoas querem ouvir. Querem que eu descreva algo novo, coisas que elas mesmas nunca teriam coragem de ver, coisas que ultrapassam em muito o seu poder de imaginação […]
Hanna Bervoets, Tivemos de Remover Este Post, tradução de Maria Leonor Raven
No feriado de dia 1 não falhei à tradição e fui ver um morto, mas um morto que, graças a Deus, ainda continua vivo e de quem se comemora este ano o centenário do nascimento: Mário Cesariny de Vasconcelos. Numa das galerias do Maat (um museu à beira-rio em cuja esplanada um simples café & pastel de nata custa 4,5 euros, mesmo para uma pobre não-turista como eu), depois de atravessarmos os excessos de Joana Vasconcelos com o seu Polvo-Valquíria (que, por acaso, eu tinha visto em Macau em 2015, quando fui à Rota das Letras), está patente até Fevereiro uma exposição dedicada ao poeta surrealista que vale muito a pena ver. Se formos à espera da biografia do escritor, bem podemos apanhar uma desilusão pouco depois de entrarmos, porque pouco se diz sobre isso em matéria de informação escrita. A exposição não é sobre o lado da poesia e da vida, embora, claro, as criações plásticas (pinturas, colagens, etc.) de Cesariny e de alguns dos seus contemporâneos sejam, de facto, às vezes, mais eloquentes do que uma frase sobre a época em que viveu, sobre os seus mestres inspiradores, os colegas de loucura, os vícios e até os epígonos (muitos trabalhos de gente mais nova aparecem como alusão ou homenagem e alguns são mesmo muito bons). A compor tudo, há ainda fotografias de Cesariny em várias épocas e, logo a abrir, a porta verdadeira do seu atelier (incrível!). Apesar do preço do café na esplanada, a vista é maravilhosa, o que é um bónus. Aproveitem um dia bom e vão também.
Frederico Lourenço traduziu recentemente a poesia de Horácio para a Quetzal e temos a certeza de que não vai ficar por aqui em matéria de tradução e apresentação de clássicos. Já Carlos Ascenso André se ocupou de A Arte de Amar, de Ovídio, que li, salvo erro, na edição da Cotovia há muito tempo, observando já (e não eram ainda os tempos do Me Too, nem pensar) como algumas das afirmações do mestre sobre as mulheres poderiam irritar e até ofender as feministas mais radicais e as leitoras que não conseguem situar certas obras na época e no contexto em que foram escritas. Disto mesmo falava Mário Cláudio um dia destes no Facebook (citando um excerto de A Arte de Amar especialmente «colorido»), e a filha de um amigo nosso que dá aulas de literatura clássica em Inglaterra contou-nos que, nas primeiras aulas do semestre, é obrigada a descrever exaustivamente aos seus alunos de que tratam certas obras e autores (Ovídio e A Arte de Amar, por exemplo) para que estejam avisados do que aí vem; mas (pior!) esses alunos podem recusar-se, só pela temática anunciada, a estudar certos livros por motivos ideológicos, concluindo o curso universitário sem chegar a ter posto os olhos em autores essenciais. E Ovídio, diz ela, é geralmente o mais banido... É a arte de não amar a literatura...
Só uma pessoa que ama verdadeiramente os livros tem certos gestos de respeito e consideração para com os seus donos. Não estou a falar de não virar os cantos, dobrar a lombada ou até sublinhar um livro emprestado. Falo, sim, de uma história bonita que uma velha amiga, jornalista do Expresso, contou um dia destes no Facebook. Dizia ela que na véspera lhe haviam entregado um livro que fora da sua mãe antes de ela ter nascido e que a mãe teria emprestado esse livro a uma amiga pouco depois de o ter comprado e lido; ora, a amiga nunca chegou a devolver-lho, certamente por distracção, como tantas vezes acontece, e a coisa ficou esquecida. Mas eis que, tantos anos passados (tanto eu como essa jornalista temos mais de sessenta, por isso façam as contas), vem agora o livro parar às mãos desta minha amiga e do irmão, que são os seus legítimos herdeiros. Não se sabe se o gentleman que teve esse gesto bonito é filho ou sobrinho da pessoa que ficou indevidamente com o livro, porque a mãe da jornalista podia tê-lo emprestado a qualquer uma das irmãs; mas o senhor achou-o no meio de outras coisas enquanto estava a recuperar a casa dos avós e, ao abri-lo, reparou que estava assinado, pelo que resolveu contactar os actuais donos e devolvê-lo. Temos a noção de que, se não gostasse de livros, provavemente não teria valorizado a propriedade daquela brochura envelhecida, deitando-a fora ou não se dando ao trabalho. Porém, alguém que gosta mesmo de livros tem normalmente estas atenções.
Falo-vos hoje de um dos romances de estreia mais marcantes que li até hoje: As Minhas Estúpidas Intenções é a história fascinante de Archy, um macho de fuinha nascido na miséria, mutilado ainda jovem por um acidente e vendido como escravo pela mãe a um raposo usurário chamado Solomon, que resolve ensiná-lo a ler a Bíblia em segredo. Este conhecimento faz de Archy um milagre da zoologia, mas também um ser estranho que acaba por não encaixar em lugar nenhum. À medida que a vida de Archy é transformada pelos livros e pela ideia de Deus, ele começa paradoxalmente a ter saudades da sua velha existência guiada pelo instinto. Mas não pode desaprender o que aprendeu, nem conciliar as suas pulsões mais selvagens com dilemas éticos, ou o seu desejo de transcendência com as suas necessidades animais. Escrever sobre a sua vida e passar a outros o conhecimento é a tentativa de Archy de vingar o destino a que a mãe, afinal, o quis condenar. Vencedor de uma série de prémios no ano da sua publicação, incluindo o prestigiado Campiello, este é um romance excepcional de um autor ainda muito jovem que promete dar que falar.
Acredito que muitos dos que aqui vêm regularmente tenham afinidades entre si. Ainda que muitas vezes os comentários originem desconfiança, discórdia ou até acesa discussão, é fácil perceber que, como diz o Carlos Tê, é mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa. Vem isto a propósito de uma engraçada história real que se passou na semana em que fui operada. Conheci há uns anos num festival literário uma leitora deste blogue (que em tempos até comentava bastante, mas se deixou disso na sequência de um comentário indelicado de outra pessoa a um seu comentário) e, depois desse primeiro encontro, de vez em quando vemo-nos por acaso num lugar ou noutro. Da última vez, como não podia deixar de ser, foi à porta de uma FNAC que eu frequento bastante por ficar perto do meu local de trabalho, e ela, que vinha a sair, esteve então a mostrar-me os livros que não resistira a comprar. E não é que coincidiam quase exactamente com as minhas compras de uns dias antes nessa mesma livraria? É claro que podemos ter ido ambas atrás de capas bonitas e vistosas, de livros bem expostos, de referências lidas na imprensa, mas eu acredito mais na história das afinidades... Querem saber de que livros falo? Tenham paciência, pois em breve dedicarei a cada um deles um post.