Hoje já deve andar tudo a meio gás, a preparar-se para as festas, a fazer as últimas compras, a ver se o bacalhau está de molho há tempo suficiente e se não falta a canela para a aletria e as rabanadas. E eu não fujo à regra, dando os últimos retoques nos livros que vão ter de ir imprimir no final de Dezembro para saírem em Fevereiro. Estamos à beirinha do Natal e, ainda a recuperar de duas cirurgias à coluna, vou aproveitar a semana que vem para ver se me endireito... Por isso, desejo por aqui a todos os Extraordinários umas boas festas: não comam muito, mas, se possível, devorem bons livros. Eu espero ter alguns no sapatinho e certamente falarei deles aqui no blogue mal regresse. As Horas Extraordinárias também tiram férias até Janeiro. Boas entradas a todos e até já!
Chegou o final do ano e, com ele, vêm evidentemente nos jornais as escolhas dos críticos que elegem os melhores em todas as áreas, e os livros, claro, não são excepção. Porém, como se queixava um dos meus autores um dia destes (e com razão), são quase sempre estrangeiros os livros que os críticos escolhem entre os seus preferidos (e muitos são obras clássicas, nem sequer novidades, apenas novas edições). Já se sabe que há uma certa mania nacional de só prestar atenção e valorizar o que vem de fora, mas realmente custa a entender que a crítica ignore sistematicamente tantos livros bons e portugueses que saíram ao longo do ano. Por mera curiosidade, fui consultar a «Babelia» (suplemento cultural do diário espanhol El País) do fim-de-semana passado e, lá está, a maioria dos livros escolhidos pelos críticos (e são 50!) é de autores espanhóis. Outra coisa curiosa é que um número apreciável de livros traduzidos dessa lista de 50 já tinham saído em Portugal no ano passado, ou seja, somos mais apressados, de novo, em pôr cá fora livros de outras línguas, enquanto aqui ao lado parecem dar mais importância aos escritores da pátria. Pode sempre dizer-se que a Espanha tem mais autores de peso, mas, se relativizarmos, será mesmo verdade? Não será o desinteresse de alguma crítica que acaba também por fazer com que as editoras apostem menos nos autores de ficção nacional e mais na literatura traduzida que já traz o sucesso acoplado? Uma reflexão para os dias que aí vêm.
Se perguntarem às gerações mais jovens qual o filme que lhes vem à cabeça assim que pensam em Natal, tenho a certeza de que baterá o record uma coisa muito cómica chamada Sozinho em Casa; porém, no meu tempo, não era assim, e talvez muitos se lembrem de algum dos filmes baseados nessa obra fantástica de Dickens chamada Um Cântico de Natal (A Christmas Carol). Para que conste, entre 1901 e a actualidade foram feitos cerca de trinta filmes, incluindo as versões animadas, uma delas com o Mr Magoo; mas a da minha época, que vi na sala incrivelmente grande do então cinema Monumental (ao Saldanha), chamava-se Scrooge (o nome do protagonista) e tinha como actor principal o inesquecível e várias vezes laureado Albert Finney, que representava como ninguém o papel do avarento, macambúzio, anti-social e anti-Natal, a quem três fantasmas mostram o horror que foi a sua vida (e que pode continuar a ser) por conta da sua obsessão com o dinheiro. Falo disto porque saiu recentemente uma edição deste pequeno romance pela Guerra e Paz, que pode constituir um bom presente para o sapatinho de um leitor jovem que goste de boa literatura. O livro, que tem edições com títulos vários em português (Um Conto de Natal, Um Cântico de Natal...), é uma lição de vida que faz todo o sentido nos tempos que correm, nos quais o vil metal tem um papel demasiado importante na sociedade.
Hoje os mais velhos, como eu, queixam-se muito do desaparecimento da figura do livreiro, aquele que sabia claramente o que tinha na loja, a prateleira onde estava qualquer livro, conhecia os clientes e aconselhava-lhes novidades que chegavam de fora, dava sugestões quando uma pessoa perguntava o que haveria de dar a um menino de doze anos pelo aniversário... Hoje há cada vez menos livreiros assim, que lêem muito, que andam a par do que se vai publicando no mundo, que têm esse bichinho de não conseguir deixar de falar do livro que os entretém com os leitores que entram na sua livraria. Não sei se deram por que, na última sexta-feira, publiquei um excerto de um livro que constitui, grosso modo, um diário e as recordações de uma conhecida livreira do Porto, Dina Ferreira, fundadora da mítica Poetria. Ela é «uma das 60 pessoas que fazem do Porto uma cidade melhor», «uma das 400 escolhidas para terem um busto na Livraria Lello» e também uma promotora de eventos poéticos, mãe, avó, tradutora, enfim... muita coisa. O seu livro A Mais Bela Profissão do Mundo merece a leitura de todos os que adoram ler e sobretudo dos que esbarram nas livrarias com algumas criaturas que se vê logo que nunca leram um livro. Um excelente presente de Natal, atrevo-me mesmo a dizer, para dar a um bom leitor. A edição é da Poetria.
Todos nós fomos naturalmente ensinados na infância a ler e escrever. Mas ensinar alguém a escrever um livro, a escrever uma obra de ficção, a escrever poesia, é realmente possível? Ou, pelo contrário, o talento para isso nasce com a pessoa e não pode ser ensinado? Quando comecei a trabalhar com livros, vi que havia escritores estrangeiros que eram, simultaneamente, professores de Escrita Criativa em universidades. Cá em Portugal ainda não havia nada parecido, mas, com a globalização, lá foram aparecendo cursos e oficinas para todos quantos querem tornar-se escritores, umas vezes ministradas por autores de respeito (Mário de Carvalho já trabalhou a escrita de ficção e até escreveu um bom manual), outras por vedetas da literatura dita comercial. Sei que algumas dicas (uso a palavra como indicações) podem de facto ajudar alguém com talento, mas desorganizado; não acredito que, sem o talento, se chegue lá, por mais cursos e oficinas que se frequentem. Há tempos assisti a um documentário (algo chatinho) sobre o finalista do Booker Prize Percival Everett, professor, entre outras coisas, de Escrita. E ele dizia uma coisa interessante: que, quando ia a uma livraria e comprava uma antologia de contos, percebia logo quais eram os autores que tinham feito oficinas de escrita criativa, porque todas as histórias estavam escritas com as mesmas regras e o mesmo figurino. Será que este tipo de apoio à escrita de ficção acaba por espartilhar o espírito criativo em vez de alargar os horizontes?
Saí ontem de casa com uma ideia bastante vaga de como iria decorrer a tarde, disposta a deixar-me conduzir pelos meus passos. Não é bem verdade porque pelo menos tinha dois objectivos: 1) ir até à rua onde está o café que tem quadros do Miguel Ribeiro expostos; 2) ir à Cooperativa Árvore onde estava o corpo sem vida de João Semedo. Há dias vi o Miguel na Poetria a comprar livros de poesia, febrilmente como sempre. Achei-o mais gordo mas com a mesma cor macilenta, os olhos sem luz e a mesma voz de criança tímida. Disse com uma calma desconcertante que tinha um linfoma. Aliás, vinha de mais um tratamento no Hospital que era o que lhe provocava aquele inchaço no rosto. E então prometi-lhe que ia ver os seus quadros, sem ficar com o nome da rua, em frente ao Cemitério do Prado do Repouso [...]. Mas acabei por descobrir tudo: a rua (Ferreira Cardoso), o café (afinal churrasqueira Nova Era), os quadros, a casa (magnífica) onde o Miguel já não mora e, oh surpresa, o próprio Miguel sentado a uma mesa da Nova Era, sozinho, a comer queijo acompanhado de um copo de vinho. Bom vinho, como constatei depois de aceitar o convite para me sentar e brindar com ele «à poesia» como sugeriu. Quando lhe disse que queria ir conhecer o cemitério dispôs-se a acompanhar-me para me mostrar a campa de Eugénio de Andrade, da autoria de Siza Vieira, em mármore liso de aspecto depurado e austero com gardénias plantadas num dos lados e um poema gravado, do próprio Eugénio, que termina com os versos: «A morte não existe / tudo é canto ou chama» [...]
Despedi-me do Miguel e segui para a Árvore, onde me deparei logo com uma bateria de jornalistas no exterior com os equipamentos prontos para a notícia. Lá dentro, muita gente, das artes, do teatro, da política, claro, muitos jovens, um vídeo a passar imagens de muitos dos momentos da vida do João Semedo [...] No modesto «livro de condolências» não resisti a transcrever os dois versos do poema gravado na campa do Eugénio [...]: «A morte não existe / tudo é canto ou chama» [...].
Dina Ferreira, A Mais Bela Profissão do Mundo: História de Uma Livraria, seguido de Os Dias de Uma Ex-Livreira à solta, Poetria, 2022
Um dos poemas que sei de cor e gosto de dizer alto (De Profundis Amamus) pertence a Mário Cesariny, de quem, como já todos sabem, estamos este ano a comemorar o centenário do nascimento. As sessões em sua homenagem têm acontecido um pouco por toda a parte, de norte a sul do País, e hoje é a vez de se associar à festa também o Museu do Fado. Levados pela imaginação febril e a boa organização de Aldina Duarte (uma fadista que lê muito e que lê muita poesia), o dia neste museu vai ser então dedicado ao referido poeta e artista plástico, abrindo logo às 10h00 com uma mostra de pintura e desenho de Mário Cesariny pertencente à colecção do realizador Miguel Gonçalves Mendes, autor do filme (Autografia) que será exibido no auditório ao final do dia. Mas pelo meio haverá leituras da obra de Cesariny por vários fadistas (à hora do almoço, para fazermos uma digestão feliz), tais como Aldina Duarte, Francisco Salvação Barreto, Tânia Oleiro ou Ricardo Ribeiro (outro grande leitor de literatura!) e uma conversa entre o já citado realizador e o jornalista e crítico Nuno Pacheco, que é um amigo da poesia e do fado. Um dia em cheio para amantes de Cesariny!
Hoje é dia de celebrar o nosso primeiro dramaturgo digno desse nome: Gil Vicente. Quando eu andava na escola, este autor era mesmo uma lufada de ar fresco, pois, fechados no cinzentismo do regime, podíamos finalmente largar umas gargalhadas com alguns vocábulos que usualmente não apareciam nos textos («caganeira», por exemplo) ou corar com um «fi de puta» que persistia, apesar de as selectas literárias terem muitos cortes. Porém, a poesia de Gil Vicente vai estar hoje em grande no El Corte Inglés, às 18h30, numa sessão de leituras organizada por José Anjos no âmbito do ciclo Poem(Ar). Ao organizador vão desta vez juntar-se os maravilhosos encenadores Miguel Loureiro e Miguel Sopas e ainda o violinista Francisco Ramos, para interpretarem passagens da obra poética e dramática do nosso Gil Vicente, retiradas por exemplo do Auto da Barca do Purgatório ou do Auto da Barca do Inferno, obras que permanecem actuais porque os defeitos das pessoas não mudam e continua a haver sacristas por todo o lado, na Igreja, na política e na sociedade em geral. Vamos? É na sala do Âmbito Cultural e só podemos sair de lá bem-dispostos.
A única coisa que pode tornar uma viagem muito melhor são mesmo os livros. Quando vou de férias para uma praia, no Verão, preocupo-me em levar leituras suficientes ou escolher um lugar onde haja, pelo menos, uma livraria decente. Mas partir para um lugar porque se leu um livro ou se gosta de determinado autor e se quer ver por onde ele andou (ou as suas personagens) é ainda mais aliciante. O escritor de ficção portuguesa João Pinto Coelho, autor de romances como Perguntem a Sarah Gross ou Um Tempo a Fingir, resolveu gizar viagens aos cenários de alguns dos seus livros, logo a começar pelo primeiro, cujo enredo passa por Cracóvia e Auschwitz. Pertenci aos primeiros passageiros que seguiram este percurso e afianço que vale a mesmo a pena. No último Verão, falhei a viagem à Toscana, mas já estava com problemas de locomoção, e pelas fotografias de quem foi postadas nas redes sociais fiquei cheia de inveja. E vejo agora que, longe de se cingir a obra própria, o nosso João Pinto Coelho criou uma viagem que, ainda por cima, também inclui poetas, pelo reino de Sua Majestade Carlos III. Hum... cá por mim a ideia parece fantástica e vou estudar datas e percursos. Deixo-vos aqui todas as informações para quem esteja interessado. Sei que já há datas esgotadas, mas imagino que, como nos concertos, se criem novas viagens se os inscritos forem muitos.
Embora nos anos setenta se lessem em Portugal muitos escritores italianos (e até antes, mas nessa altura era eu uma miúda), parece que na década de noventa se começou a olhar sobretudo para a literatura anglo-saxónica, e tantos autores de qualidade da bela Itália (com a honrosa excepção de Umberto Eco) passaram ao lado da edição portuguesa. Graças a Deus que mais recentemente a coisa mudou, e basta referir Paolo Giordano e o seu incrível A Solidão dos Números Primos ou a tetralogia A Amiga Genial, de Elena Ferrante (que obteve um retumbante sucesso no mundo inteiro e até se tornou série de TV), para mostrar que o erro cometido no passado foi felizmente temporário. E agora aparecem muitos autores italianos mais jovens, alguns estreantes, como o Paolo Cognetti de As Oito Montanhas (agora também um filme), Bernardo Zannoni com o multipremiado As Minhas Estúpidas Intenções (um hino à leitura) e também a muito promissora Beatrice Salvioni com o seu Malnascida, uma estreia auspiciosa passada na Itália de Mussolini que fala da relação entre duas adolescentes com origens muito distintas (uma é a Malnascida) que se tornam amigas e cuja relação acabará por pôr em risco a vida de ambas: o livro, de resto, começa com um cadáver em cima de uma delas... Muito bem contada, esta é uma história de um tempo que, habitualmente, não pertence à pena de autores mais jovens, o que torna a leitura ainda mais fascinante; e foi outro dos livros que uma leitora deste blog que encontrei à porta da FNAC também tinha comprado...