Amanhã, dia 1 de Fevereiro, começa um ciclo intitulado «Franz Kafka: Bilhete de Identidade» na Biblioteca do Goethe-Institut em Lisboa, actividade que e insere nas comemorações do centenário da morte de Kafka, que se celebra este ano. Como se refere na apresentação deste ciclo, «cem anos após a sua morte, Franz Kafka permanece um dos monstros mais enigmáticos da literatura universal, dada a amplitude e a complexidade da sua biobibliografia»; e, por isso, quatro conversas não serão demais para falar do génio calado que não quis publicar a sua obra nem em vida nem depois da morte, e da qual teríamos sido privados se não fosse a desobediência de um amigo. A crítica literária Filipa Melo e os seus convidados vão «evocar a relação do homem e do escritor com o corpo, o humor, a espiritualidade e a questão do mal» e, nesta primeira sessão, que se realiza às 19h, vamos descobrir a relação do escritor e das suas obras com a fisicalidade e a estética levados pela mão da escritora Dulce Maria Cardoso e do arquitecto, professor e dramaturgo João Filipe Borges da Cunha. As próximas sessões ocorrerão nos seguintes dias, com convidados a anunciar em breve:
14 de março, 19h00: Kafka: um clown triste 17 de outubro, 19h00 - Kafka: carta a um deus desconhecido 21 de novembro, 19h00: Kafka: o homem e o adjetivo
Este é um tempo de falarmos de saúde mental (tanto jovem a tomar antidepressivos não pode ser normal...) e o romance As Herdeiras, da escritora basca Aixa de la Cruz, fala-nos justamente disso. Passaram seis meses desde que Dona Carmen cortou os pulsos na banheira, e ainda ninguém percebeu porquê, tendo ao seu alcance comprimidos suficientes para acabar com a vida de modo mais suave. Isto descobrem, intrigadas, as suas quatro netas – Lis, Erica, Olivia e Nora – quando se instalam na casa da aldeia onde a avó vivia e que lhes foi deixada em testamento. Lis, que tem um filho pequeno, está ainda a recuperar de um trauma que sofreu ali dentro e só lhe interessa vender tudo e seguir em frente, enquanto a sua sonhadora irmã Erica planeia organizar no local retiros espirituais e passeios na natureza. Por sua vez, Olivia – a prima mais velha, que se formou em medicina por ter visto o pai morrer com um enfarte – não desiste de procurar em tudo o que é gaveta uma pista que explique o que realmente levou a avó a suicidar-se; e Nora, a sua desastrosa irmã, tem a ideia maluca de deixar o seu dealer usar o espaço como depósito de «mercadoria»; de resto, é ela quem a dada altura diz sem complacência: «Parece que um suicídio na família confirma a suspeita de sempre, de que a loucura corre nos genes, de que estamos biblicamente perdidas.» Considerada internacionalmente uma digna sucessora de Henry James, Aixa de la Cruz constrói neste romance intenso e dramático – considerado um dos melhores livros de 2022 pelo jornal El País – a ideia da família como lugar de dissensão e calamidade, explorando a ténue fronteira que existe entre loucura e sanidade. Não deixem de ler, inesperado e muito actual.
Pesco o assunto por causa de um post de Nelson Ferreira dos Santos no Facebook. Aqui há tempos, diante da impossibilidade de meter nem que fosse mais um livro em casa sem o perigo de o chão abater, tivemos de nos livrar de muitos muitos muitos livros... Custa bastante (e já tenho saudades de alguns), mas, se queremos continuar a comprar e ter coisas novas, o melhor é prescindir de algumas das velhas. Lá em casa, por exemplo, tínhamos o mesmo título em edições diferentes, uma do Manel, outra minha, compradas em épocas diferentes, em línguas diferentes, de editoras diferentes. Tentámos que esse tipo de «exageros» fosse ponderado. Por outro lado, havia coisas que sabíamos não voltar a ler, coisas datadas, ultrapassadas, ou que não representaram absolutamente nada na nossa história como leitores. Guardávamos também livros da escola por razões que não se prendiam com os próprios livros, mas com a saudade da infância; e, além de alguns livros da primária e da Cartilha Maternal de João de Deus, acabou por ir tudo fora. No fim, nem foi tão mau como pensávamos (apesar do que eu disse acima sobre as saudades). Em todo o caso, para os mais hesitantes, há especialistas em «não acumular» que nos ajudam muito com os seus conselhos em matérias que têm que ver com a real necessidade de um livro, o gosto de reler, o valor estimativo, a pessoa que ofereceu, o pertencer a uma colecção, a facilidade em comprar de novo se for preciso, enfim... muitas razões para querermos ou não ficar com um livro quando sentimos que acumulámos demasiados. O artigo é mesmo interessante, pelo que vos deixo o link para que a decisão possa ser tomada em consciência se a ocasião se apresentar.
[...] Mãe, a senhora que diga se o santo tombou na fundura, diga, mãe, se for de tombar eu não tenho medo. Mais medo me dá que meu irmão seja sozinho à boca dos bichos, a podrir por feridas que abra, perplexo no abandono. A senhora que diga, mãe, a senhora que diga onde devo ir.
Mariinha dos Pardieiros senrou-se sobre os joelhos, desmoronada. Ruíra de si mesma. Era pelo chão. Dizia que o menino entrara na escuridão. Ficara tão escuro em volta que não se tornava mais possível enxergar coisa alguma.
Certamente pelo medo, pela pressa do sangue no interior do corpo, o espelho silente nsinuava ondular. Ou o modo como caíramos de corpos no chão abalara as madeiras e o espelho reflectiu sua pequena vertigem. Ondulou. Tive a impressão de se mover sozinho, aflito por dentro, na sua ínfima espessura onde todas as coisas eram apenas fantasmas das coisas reais.
Fico muito feliz quando alguém se entusiasma de tal modo pela leitura que resolve pôr toda a gente a ler. Sílvia Ribeiro, com um mestrado recente em Mediação da Leitura, deseja que no seu concelho as empresas tenham minibibliotecas e emprestem livros aos funcionários, quer porque alguns deles têm ordenados baixos e não os podem comprar com a frequência com que gostariam, quer porque se calhar alguns dos trabalhadores precisam de ser convocados para o acto de ler por chefes ou colegas. Seria bom que houvesse mais pessoas a pensar assim e a pôr a mão na massa. Segundo as palavras da autora do Ler é poder, «criei este projeto com o objetivo de aproximar as pessoas do livro e da leitura, no sentido de passarem a incluí-la (ou a tê-la mais presente) na sua rotina diária, tentando, contribuir (ainda que de forma muito limitada) para aumentar os (embaraçosos!) índices de leitura em Portugal.» A ideia é incluir pelo menos dez a quinze empresas de Ourém, algumas das quais já foram contactadas e têm mais de 70 empregados. Mas, para isso, são precisos livros, claro. Eu já vou dar alguns dos meus, bem entendido, mas quero sobretudo divulgar o projecto, que me parece realmente meritório, para que outras pessoas se juntem e libertem de livros que não voltarão a ler nem lhes fazem falta. Se quiserem saber mais detalhes sobre este bonito projecto, o link do Instagram está abaixo. E tentem o mesmo nos vossos concelhos!
A Folha (ou a folha), o Boletim da Língua Portuguesa nas Instituições Europeias, tem mais um número, e alguém me avisa de longe, pedindo a divulgação aqui no blogue, o que faço, de resto, sem qualquer sacrifício. Primeiro, porque é uma forma de escrever um post sem ter de pensar muito; segundo, porque é uma boa maneira de fazer chegar a mais gente a informação (não somos muito dados a publicações institucionais fora das universidades e, por vezes, é uma pena, porque há sempre coisas interessantes que perdemos); e terceiro: o artigo de abertura, sobre tradução, é assinado pelo grande Harrie Lemmens, um tradutor que tem dado a conhecer na Holanda a obra de muitos autores portugueses e brasileiros mortos e vivos, inlcuindo Lobo Antunes e esta vossa serva, de quem Lemmens traduziu um conjunto de poemas que ele próprio escolheu e coligiu (um privilégio para mim, bem entendido). Mas há outras novidades, artigos de Luís Filipe Sabino, Joana Gil, Jorge Madeira e Paulo Correia («Escrever em português sobre a Índia e o Oriente», outro assunto de interesse), pelo que, havendo candidatos para estas leituras, o link fica já abaixo.
Na nossa vida, por uma ou outra razão, há sempre livros que, se não forem lidos na altura em que são publicados, acabam por ir ficando para trás, numa lista interminável de obras a ler que raramente conseguimos recuperar. Tenho lá muitos em que ainda queria pôr os olhos antes de me dar o tranglomanglo (caramba, há quanto tempo não usava esta expressão!), mas suspeito de que para os mais sérios e longos já não vou ter paciência ou concentração. No entanto, nos últimos tempos fui buscar um desses atrasados à estante e foi um belo presente de Natal atrasado que dei a mim mesma. Trata-se de Beloved, da norte-americana Toni Morrison, vencedora do Prémio Nobel da Literatura em 1993, e nas primeiras páginas eu já estava caidinha por aquela prosa que não é fácil mas cheira a invenção e inteligência por todos os lados. A história fala de um grupo de escravos que tiveram a sorte de trabalhar muitos anos na «Sweet Home» de um casal que os «tratava bem». Porém, com a morte do chefe de família, a viúva teme ficar sozinha com os negros e resolve trazer para tratar da propriedade um mestre-escola e os seus dois sobrinhos, cuja presença e comportamento mudarão para sempre a vida dos escravos. Na sequência de alguns actos violentos, a fuga será tentada ou executada, mas as consequências serão terríveis, e nem as crianças conseguirão escapar ao difícil destino que lhes calhou em sorte. Maravilhoso, mágico, duríssimo, escuríssimo, um primor de linguagem inventiva, este é um livro realmente especial que não deve deixar de ser lido num momento em que as questões do racismo e da escravidão são tão comentadas. Mas, por favor, não vale ler a sinopse da contracapa: é um texto muito desmancha-prazeres que conta o que o leitor deveria descobrir sozinho já passada metade do livro...
Escrevi aqui há tempos sobre o artigo de Miguel Real a respeito da crise da ficção nacional, em que se dizia, entre outras coisas, que, nos últimos anos, os vencedores de importantes prémios para a língua portuguesa (Oceanos, Saramago, LeYa...) tinham sido africanos ou brasileiros. É verdade, claro, e a questão foi também abordada no número seguinte do JL por António Carlos Cortez (poeta, crítico e romancista) que, concordando com Miguel Real, vai até mais longe, dizendo que a língua portuguesa falada no Brasil e em África é mais colorida do que o chatinho português europeu (não estou a citar, mas a interpretar). Para corroborar estas opiniões, reparei há dias que na lista dos romances nomeados para o Dublin Literary Award na categoria de livros traduzidos estão três livros escritos originalmente em português, mas mais uma vez nenhum é de um autor português: Torto Arado, de Itamar Vieira Junior; A Palavra Que Resta, de Stênio Gardel (que salvo erro, já foi finalista de outros prémos internacionais) e O Bebedor de Horizontes, de Mia Couto (dois brasileiros e um moçambicano). Podemos sempre somar dois mais dois e tirar esta conclusão, mas o resultado da conta feita noutro sítio também pode ser diferente. É que, na última edição do Prémio Oceanos (o maior de língua portuguesa no Brasil), na categoria de romance, não havia um único autor brasileiro na final, eram só portugueses e africanos... Talvez tudo seja afinal uma ilusão e, no ano que vem, os portugueses se sagrem vencedores destes prémios e de outros mais.
Há uns anos, resolvi que a minha assinatura dos e-mails poderia ser enriquecida com uma frase que, de algum modo, tivesse que ver comigo e com as minhas funções. Escolhi nessa altura uma de que não me arrependi e ainda lá está, debaixo do meu nome, em português e inglês, de cada vez que envio um e-mail. Diz «Lemos para sabermos que não estamos sozinhos» e o seu autor é o britânico C. S. Lewis. A leitura é de facto uma excelente companhia e a mim já me salvou de umas quantas depressões. Uma vez, Mario Vargas Llosa contou ao vivo que, em adolescente, ler sobre o sofrimento alheio o fez sentir-se menos só e triste no colégio interno onde o padrasto o metera. Ler é isso, como diz a frase que escolhi, descobrirmos que não estamos sós nos nossos infortúnios. Encontrei no mural do Facebook de uma amiga um cartaz bonito que dizia «Não estou sozinho, tenho muitos livros», o que é só mais uma maneira de dizer que a leitura faz mesmo companhia; no entanto, há momentos em que ler não pode ser uma obrigação, e a grande Virginia Woolf, numas resoluções para o Ano Novo em 1931, escreveu, entre outras coisas: «Ser livre e gentil comigo mesma [...] Às vezes ler, às vezes não ler. Sair, sim, mas ficar em casa apesar de convidada. Quanto a roupas, comprar boas.» Pois, às vezes não ler também é muito bom, sobretudo para quem lê por profissão o dia todo.
Agora, que os jornais parecem estar a desaparecer tal como os conhecemos e os jornalistas culturais têm cada vez menos espaço para escrever, viram-se frequentemente para a organização de outras actividades, e é vê-los orientarem encontros literários ou artísticos, fazendo podcasts, escrevendo em blogues, fazendo oficinas. Quem não descansa é o incrivelmente imaginativo João Morales, há já muitos anos responsável pelo festival de livros da Lourinhã, Livros a Oeste e que se tem multiplicado por sessões ao vivo e entrevistas gravadas. Desta feita, oferece-nos um Laboratório de Escrita, que na verdade não sei bem o que é, mas deve ser qualquer coisa divertida e original, a avaliar pelo cartaz escolhido para anunciar o evento. Acontece já no próximo sábado às 17h00 em Lisboa, perto do Jardim Constantino, na Zénite Bar Galeria, à Rua Passos Manuel (a mesma rua onde era a Assírio & Alvim de Manuel Hermínio Monteiro), e traduz-se num convite aos interessados para virem escrever histórias acompanhados uns dos outros, com a vantagem de, sei lá se para se sentirem mais inspirados, beberem qualquer coisinha. Um sábado diferente, em suma.