Na semana passada, uma das minhas sobrinhas mais novas, que anda (creio) no décimo ano, foi entrevistar o tio lá a casa sobre o 25 de Abril. Por muito que tivesse ouvido falar da Revolução, não a viveu na pele e não tinha noção de muitas coisas que se passaram antes desse dia. E, como precisava de fazer investigação para um trabalho escolar e os pais eram ainda demasiado novos em 1974, optou pelo tio, que assistiu em directo a esse «dia inaugural» e que, antes disso, tinha estado envolvido em lutas académicas e acções clandestinas. Ficámos contentes por saber que teve 18 valores no trabalho! Mas, para que os mais pequeninos possam saber o que foi realmente o 25 de Abril, há um livrinho ilustrado publicado na Dom Quixote muito útil e elucidativo chamado O Meu Primeiro 25 de Abril, da autoria de José Jorge Letria e com ilustrações de Helder Teixeira Peleja. O ilustrador já nasceu em Democracia (em 1978), mas o autor do texto era em 1974 jornalista e cantautor e viveu com grande emoção esses dias de alegria na cidade de Lisboa ao lado de pessoas como Zeca Afonso e conta neste livro aos meninos e meninas como tudo aconteceu. É uma boa introdução ao assunto para os piolhos. E aconselho-o porque estou farta de encontrar adolescentes que não fazem já a mínima ideia do que foi este dia tão importante para Portugal.
O português é um idioma extremamente rico; quando vemos, lado a lado, um dicionário de Português-Inglês e outro de Inglês-Português, imediatamente nos apercebemos de que temos muitíssimos mais vocábulos do que os nossos velhos aliados. E isto passa-se realmente em todos os contextos. Um dia destes, fui jantar fora a um restaurante de bairro e aí encontrei na ementa uns «grenadinos», palavra que não conhecia associada a comida. Uma amiga que tem sempre a internet à mão consultou o telemóvel e logo descobriu que se tratava de uns finíssimos escalopes, enviando-me o link em que o descobrira, com o qual me diverti nos dias seguintes, pois só em termos de preparação, corte e confecção de carnes a oferta de palavras não pára de aumentar. Vejamos, por exemplo, termos como «lardear» ou «albardar» juntarem-se a vocábulos mais comuns como «atar», «chamuscar», «limpar», «cortar», «desossar», «picar» e «rechear». E, antes ainda de pôr a carne a cozinhar, podemos dividi-la em «escalopes», «bifes», tournedós», «costeletas», «entrecôtes», «medalhões, «supremos», «carrés», «selas», «rojões», «febras» e muito mais (além de «grenadinos», evidentemente, que acima referi). Finalmente, para confeccionar a carninha (estamos quase a poder provar), há várias técnicas à disposição, tais como «fritar», «cozer», «panar», grelhar, «guisar», «estufar», «assar», «saltear», «gratinar», «brasear» (e isto para usar apenas verbos, porque ainda temos coisas como «ao sal» ou «au bleu», mas não vale a pena ser exaustiva). Um dia destes volto com o peixe e com mais uma dúzia palavras que, em inglês, são quase de certeza menos de metade. Claro que a nossa comida também nada tem que ver com a deles, pelo que ler um livro de receitas em Portugal é mesmo uma aprendizagem da língua, lá isso é.
Lá em casa raramente vemos televisão (o futebol... enfim, notícias às vezes, pouco mais); mas um dia destes, já não sei bem porquê, estive a assistir com muito agrado a um pequeno documentário sobre a Capicua, que é uma pessoa que fala... e escreve... muito bem; então, lembrei-me de a mencionar aqui no blogue, pois não é todos os dias que uma rapper escreve livros com cabeça, tronco e membros e, sobretudo, sai da sua zona de conforto para escrever um disco inteirinho para uma fadista. Pois é, no dia 22 saiu Metade-Metade, de Aldina Duarte, um álbum que fala muito da natureza (que é também tema de algumas das obras de Capicua) e no qual, sobre as melodias do Fado Tradicional, ressaltam poemas belíssimos que dá gosto ouvir (e ler). O single de promoção está no link abaixo, e é também muito bom ver como é límpida e perfeita a dicção da fadista (são raros os cantores que dizem assim os versos das canções), uma amiga que adora a literatura e está sempre a inventar coisas magníficas, como um disco de fado escrito por uma rapper... Eu, que adoro árvores, fiquei rendida.
«Não é todos os dias — nem todos os anos — que se encontra uma estreia tão fresca, segura e divertida como Escovar a Gata», disse o New York Times, um livro sobre o mundo sensual das mulheres mais velhas escrito por Jane Campbell à beira de fazer oitenta anos. Longe de caírem nos estereótipos da velhice, as protagonistas deste livro delicioso (e por vezes altamente dramático) – tantas vezes atiradas para lares ou casas de família só por terem passado dos setenta – querem continuar a ter a chave de casa e não deixam que a sua vida seja controlada por outros. Susan descobre-se sexualmente atraída pela sua cuidadora no hospital; ao enviuvar, Linda resolve procurar o homem com quem teve um relacionamento escaldante durante um congresso; Martha, isolada num apartamento em tempos de pandemia, aceita a proposta do governo para desfrutar da companhia de um robô bem-comportado, que engana descaradamente; a avó que vai de comboio ao encontro da neta decide casar-se com o único passageiro da carruagem para não ter de ficar a tomar conta da irmã inválida e prepotente; a senhora que escova a gata do filho recorda, nos movimentos do animal, as próprias experiências sexuais e pensa que a nora há de acabar por pô-las na rua, a ela e à siamesa… Escrito de forma desafiante, cheio de uma sabedoria intemporal, eis uma fantástica lição contra o preconceito e os equívocos que rodeiam a vida das mulheres de idade.
Chegado aqui, vejo-me como se fosse o Fabrice del Dongo, esse personagem do Stendhal, no início da Cartuxa de Parma, que avança, no nevoeiro de Waterloo, ouvindo vagamente o ruído da batalha, mas que não consegue encontrar o ponto em que os exércitos entram em confronto, limitando-se a enterrar as botas na lama num esforço para encontrar o inimigo. Posso dizer, por experiência própria, que não há nada mais cansativo do que andar em cimade um lamaçal. Levantar uma perna é um esforço tão grande como puxar um balde de água de um poço; isto, claro, depois de já termos puxado muitos outros baldes de água. E se o poço for fundo, não vemos sequer se há ou não água que chegue para tirar ainda mais baldes; mas o peso de cada balde redobra quando o puxamos, ouvindo-o bater contra as paredes do poço, provocando um eco que nos bate no ouvido até que não conseguimos ouvir mais nada. Posso comparar esta sensação à que tive ao ler, pela primeira vez, a Cartuxa de Parma sem conseguir parar da primeira até à última linha, como se cada página fosse um desses baldes que eu puxava do fundo da imaginação de Stendhal até chegar à vista dos meus olhos. Fiquei exausto, isto é, ficava exausto no fim de cada página, mas era um cansaço que me obrigava a continuar, sem descanso, sabendo que só no fim, quando o poço ficasse seco nessa última página, e eu estivesse mergulhado num oceano, de tanta água que tirara do poço, teria o repouso ambicionado, embora quase não conseguisse respirar, afogado naquele dilúvio de palavras.
Já tivemos um Nobel da Literatura que era, acima de tudo, um escritor de canções (e Leonard Cohen também já tinha sido indicado, segundo se sabe, ao mesmo prémio). Muitos revoltaram-se porque disseram que não se tratava de literatura, mas, por exemplo, o nosso Sérgio Godinho, além de contos e romances, tem realmente canções que são dignas de todos os elogios e prémios (uma das minhas favoritas é «Com um Brilhozinho nos Olhos»). Saíram já para o mercado vários calhamaços com as letras de Chico Buarque e Vinicius de Moraes (li-os todos!) e tenho guardado um volume menos ambicioso com as letras de Caetano Veloso, já antigo, salvo erro publicado ainda pelas Quasi. Em Portugal, saiu há pouco um livro de João Monge chamado Razão de Ser e Outras Letras, e o único senão é não ter todas as letras que ele escreveu, mas ser apenas uma selecção, embora abarcando um longo período, desde os Trovante até Kátia Guerreiro, António Zambujo, Helder Moutinho, Aldina Duarte e muitos outros. Leia estas canções do autor dos famosos «Lambreta» ou «Zorro», duas das minhas letras preferidas do volume, e vai ver que afinal até gosta de poesia.
Ando, como sabem, sempre à volta de palavras e de relações entre elas, tantas vezes do que parecem ser e não são. E um dia destes aprendi algo que não sabia. Apanhei já não sei em que texto que estava a ler uma referência aos «agapantos», uma palavra que não parece, vão desculpar-me, nome de flor, muito menos de uma flor leve, empoleirada num caule fininho, que parece desintegrar-se a qualquer momento se uma rabanada de vento sobre ela soprar. Fui à procura da origem deste nome e descobri que «agapanto» significa «a flor do amor» porque «agape» em latim é amor e «anthos» flor. Confusa sobre a explicação do «ágape» que, para mim, era um banquete bem fornecido, encontrei a justificação: é que «ágape» não é simplesmente uma comezaina, como eu pensava, mas uma refeição de confraternização, ou seja, um banquete entre amigos, gente fraterna, que os primeiros cristãos faziam juntos: um banquete, em suma, onde há amor. Gostei de saber, claro.
Costumo promover ou anunciar eventos em Lisboa que creio interessantes para os leitores deste blogue, mas desta feita, como perdi a sessão na capital porque estava tomada por outra coisa nessa tarde, aviso sobre a sessão a norte, no El Corte Inglés de Gaia, amanhã pelas 18h30. E faço-o porque admiro o conferencista, ele próprio nascido no Porto em 1949, chamado José Pacheco Pereira, conhecido por todos. No âmbito de uma programação que responde pelo nome «Sociedade», este senhor que é escritor, político, foi deputado, é blogger, fundador de um arquivo incrível chamado Ephemera e muito mais coisas, vai falar de «O Novo Velho Continente» e explicar muito do que está mal na construção europeia e os «erros, abusos e interesses escondidos atrás da retórica europeia», sem esquecer, evidentemente, o Brexit, que é um dos seus efeitos negativos, e a guerra da Ucrânia, que de certa forma retirou à Europa o estatuto de continente democrático. Diz Pacheco Pereira que o facto de vivermos hoje num novo Velho Continente não é necessariamente bom. Eu, se estivesse em Gaia, iria ouvi-lo sobre o assunto.
Fernanda, uma aluna insolente de um colégio elitista da Opus Dei, acorda certo dia com as mãos e os pés atados numa cabana escura no meio da floresta – e este é apenas o começo de uma jornada que tem tudo para ser aterradora. Longe de se tratar de alguém desconhecido, a sua sequestradora é Miss Clara, a professora de Literatura perseguida por um passado violento que Fernanda e as colegas atormentam há meses com vexames e perguntas inconvenientes. Porém, os motivos do rapto revelar-se-ão muito mais complexos do que a mera vingança pelos traumas sofridos na sala de aula e, de certa forma, não deixam de estar ligados ao desejo, ao ciúme e mesmo ao amor. Neste romance imaginativo e extremamente hipnótico, a equatoriana Mónica Ojeda – uma das vozes mais aclamadas da literatura da América Latina – cria em Mandíbula um mundo feminino feroz e implacável, partindo das relações nem sempre claras entre colegas de escola, professoras e alunas, mães e filhas, irmãs e melhores amigas. Viciante e imperdível. A tradução é de Rui Elias e a maravilhosa capa de Rui Garrido.
Divido com algumas pessoas o horror aos erros ortográficos. Acho deplorável que os jornais e as televisões cometam erros nos rodapés dos noticiários e nas notícias escritas, pois serão lidos por milhares de pessoas que confiam na sapiência desses meios; e agora, que há liberdade para todos escreverem na redes sociais, pior ainda: os erros estão mesmo por todo o lado, vindos por vezes de personalidades que até imaginávamos cultas, mas... Porém, o mais incrível é quando quem quer ser escritor (ou já o é) dá erros de palmatória ou confunde «iminente» com «eminente» (estou constantemente a encontrar este erro). Sei que muita gente me acha uma exagerada, explicando-me que em todas as épocas houve sempre gente a escrever com erros; mas agora uma amiga solidária manda-me um artigo de uma revista francesa que explica que os erros gramaticais não só ferem os ouvidos como... estão preparados?... fazem mal ao coração! É um estudo britânico feito no mês passado que o sugere, mostrando que a frequência cardíaca se altera quando deparamos com este tipo de erros e que o nosso stress aumenta em conformidade. E, se não acreditam, aqui vai o link, com o qual se podem entreter no fim-de-semana. Até segunda!