No próximo sábado celebra-se o Dia Internacional dos Museus e a associação Assarapanto teve uma belíssima ideia no sentido de contribuir para um incremento da leitura. Como se sabe, neste dia não se pagam entradas, pelo que a afluência aos museus de adultos e crianças costuma ser maior. Então, a proposta é deixar um livro no museu para ser roubado por alguém que até pode deixar igualmente um livro para alguém mais roubar. Este leva-e-traz (na verdade, o projecto chama-se Um Livro no Museu) pode ser feito em onze museus a norte, a saber: Museu Nacional Soares dos Reis (Porto); Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto: Polo Central e Galeria da Biodiversidade, Centro Ciência Viva (Porto); Museu da Memória (Matosinhos) e Museu da Quinta de Santiago (Matosinhos); Museu Nogueira da Silva (Braga); Museu de Alberto Sampaio (Guimarães); Paço dos Duques de Bragança (Guimarães); Museu de Olaria (Barcelos); Casa Museu José Régio (Vila do Conde) e Casa Museu Abel Salazar (São Mamede Infesta). Mas a Assarapanto quer que para o ano este projecto se repita em mais zonas do país, porque museus e leitores há-os em toda a parte. Se visitar um dos referidos museus e vir lá um livro perdido, não devolva na recepção, é mesmo para quem o quiser apanhar!
Como provavalmente a maioria dos portugueses, conheci a escrita de Michael Cunningham, romancista norte-americano, através de As Horas, um livro bastante particular dividido em três partes que foi vencedor do Pulitzer Prize, no qual acabaria por basear-se um filme com o mesmo nome e actores famosíssimos como Meryl Streep, Julian Moore, Nicole Kidman e o maravilhoso Ed Harris, que desempenha o papel de um doente com SIDA. Lembro-me de ter gostado muito de ler o romance, mas nunca mais tinha tocado em nada de Cunningham e agora comprei Dia, que saiu há pouco tempo cá em Portugal. Também este romance tem três partes, cada uma dedicada ao mesmo dia (5 de Abril) em três anos distintos: um antes, outro durante e o último no final da pandemia que assolou o mundo e infelizmente, antes da vacinação em massa, levou muitas pessoas que conhecíamos (e que desconhecíamos). Esse é também um dos factos de Dia (a capa merecia ser menos xaroposa...) que, embora não seja comparável a As Horas, tem pormenores muito interessantes e originais, entre os quais a forma como dois irmãos adultos resolvem criar a personagem de um irmão mais velho que é tudo o que ela e ele ambicionariam ser (com perfil no Instagram alimentado diariamente e tudo!) e também a relação sempre ambígua entre dois cunhados que estão há séculos apaixonados pela figura um do outro, mesmo se um deles é heterossexual. Se já sabíamos como a pandemia mudou decisivamente a nossa vida, este é um bom livro para que nunca o esqueçamos. E também a história de uma família tocada por um inescapável infortúnio.
Arranjaram-me há uns anos um portátil que é mesmo uma desgraça. Primeiro, por causa do álcool-gel durante a pandemia, apagaram-se simplesmente as letras mais usadas das teclas pretas: primeiro o A, depois o E; tive de as substituir por etiquetas circulares autocolantes com o desenho das vogais feito por mim, regularmente substituídas elas próprias porque o papel se desfaz com o tempo e fica tudo nojento. Enquanto começavam a desaparecer também o O e o S (e a tecla da vírgula ficou igual à do ponto), as teclas começaram a saltar e tive mesmo de pedir ajuda aos informáticos. Lá deram um jeito com uma chavinha e aparafusaram o A e o E, mas pouco depois o O saltou, só que, como estava a acabar um trabalho urgente e tinha dois emails a que tinha de dar resposta imediata, resolvi tentar usar palavras que não tivessem O para não ter de sair da sala com o portátil ao colo e ir lá abaixo pedir a uma alma caridosa que me aparafuse a tecla desavinda. E, juro, foi mesmo uma «ginástica mental» (expressão que não tem O), mas consegui praticamente não usar a vogal problemática do meu teclado. Fiquei contente por descobrir que conheço muitos sinónimos e tenho um léxico bastante alargado para estas emergências (ler traz muitas vantagens). Se assim não fosse, não iria conseguir responder tão depressa a um email assim urgente. Mas, ufa, nem imagino o que foi para Georges Perec escrever todo um livro sem a letra E... Sim, e outras maluquices.
Comecei a ouvir falar de poesia muito cedo. Não só os meus pais e avó sabiam muitas coisas de cor que nos diziam regularmente, como andei numa escola primária que tinha um patrono poeta, João de Deus, cujas poesias líamos na sala de aula e nos saraus de final do ano. O meu próprio pai escrevia poemas e conhecia muitos poetas (Cesariny, Ruy Cinatti...) além de ser amigo desde sempre de Alexandre O'Neill, porque tinham frequentado ambos o mesmo colégio em miúdos (aliás, também com o físico António Manuel Baptista), embora o meu pai fosse dois anos mais velho. A minha mãe conta que, quando engravidou do meu irmão mais velho, engordou imenso e o médico a mandou dar passeios a pé, muitos dos quais eram feitos na companhia de Alexandre O'Neill. No sábado passado, foi lançado Alexandre O'Neill: Uma Biografia Literária, de Maria Antónia Oliveira, que é há muitos anos uma estudiosa deste grande poeta igual a si próprio (e também um grande publicitário), e vale muito a pena (mas vale mesmo, não é só por às tantas referir o meu pai por causa de uns papéis e uns poemas de juventude que a Cristina Ovídio, filha do acima referido físico, encontrou há uns tempos). Por isso, mesmo que não se interesse especialmente por poesia, atreva-se a este volume, pois a vida literária deste enorme poeta está cheia de dados curiosos que vão de certeza agradar-lhe.
A mortalidade é uma chatice para muita gente, e há uma parte dessas pessoas que tentam desesperadamente cá ficar nas memórias alheias quando se forem embora. Muitas nem sabem que é também por causa disto que ambicionam ser célebres ou, no mínimo, conhecidas pelas suas boas acções e invenções. Mas ser vedeta ou personalidade pública deve dar imenso trabalho: ser investigado, perseguido, policiado, acompanhado por milhares de pessoas a todo o instante, abordado na rua, etc., etc., a mim parece-me um verdadeiro inferno. Falo disto porque saiu para os escaparates um livro chamado Vida de Nobel, no qual o jornalista científico Stefano Sandrone entrevista mais de duas dezenas de vencedores do Prémio Nobel para dar a conhecer as histórias das suas vidas e o que mudou desde que ganharam o Prémio mais ambicionado do Planeta. Trata-se de cientistas nas áreas da Química, da Física e da Medicina e ainda de alguns economistas, que deixam aos mais novos a sua história, os seus conselhos e incentivos. A Literatura ficou de fora desta leva de pessoas, mas alguém poderia pegar na ideia e perguntar realmente o que muda na vida de um escritor que ganha o Nobel. Os livros normalmente ficam piores, diria eu, e a vida um horror com tanto convite...
Quando saí da faculdade, sentia-me um pouco perdida sobre o que ler, pois os professores tinham sido uma grande orientação ao longo dos anos. O que me valeu foi ter muitos amigos leitores, alguns dos quais são uma grande ajuda. Claro que nem sempre os nossos gostos concidem, pois a nossa experiência de vida e de leitura (e até de formação) é necessariamente diferente. Um destes amigos, por exemplo, é um apaixonado da História e lê quase sempre ensaios, enquanto eu prefiro a ficção; outro prefere ler os clássicos, que geralmente não desiludem, enquanto eu tenho por hábito ler os novos autores nacionais e internacionais. Mas é sempre bom receber um conselho sobre o que ler e troco muitas opiniões e livros com a minha irmã, que, depois de se ter reformado, não faz mais nada senão ler, a sortuda. Para quem não tem pessoas próximas que ajudem, há sempre os blogues de livros (este também, claro). Em França, os livreiros assinalam nas montras os seus «coup-de-coeur» com um post-it na capa dos livros de que gostaram com palavras elogiosas (há até prémios dados por livreiros). Cá, a newsletter da Bertrand também inclui opiniões de alguns livreiros de norte a sul do País («o seu livreiro é o seu melhor conselheiro», diz o título, a que se seguem alguns livros destacados pelos funcionários). Não há razões para não ler só porque não sabe por onde começar. Ouvir opiniões é sempre um bom começo.
Li há tempos um artigo muito interessante sobre o desaparecimento de certos tempos verbais da linguagem escrita (na oralidade, sempre foram tempos menos comuns, como o imperfeito do conjuntivo, o condicional composto e o pretérito mais-que-perfeito; em francês, também o «passé simple» por oposição ao «passé composé»). Dizia o seu autor que este «desuso» pode significar uma falta de capacidade para olhar o passado e aprender com ele e, por outro lado, uma incapacidade de ser prospectivo, de pensar o futuro. Vive-se hoje no hoje, e pronto; e, de facto, muitos dos romances que recebo actualmente nem parecem realmente romances, mas apenas apontamentos para escrever um romance, fichas com ideias para desenvolver mais tarde, do tipo: «Ele encontra a namorada com outro e faz uma cena. Enquanto discutem, o amante desaparece e ela fica admirada por ele não ter ficado ali.» Pois, parece bastante pobre, e é. Mas, se isto seria aceitável em principiantes, a verdade é que muitos dos mais considerados escritores estão a deixar-se contaminar por esta moda em vários países, fazendo pensar que mesmo quem aprendeu a gramática com os velhos professores está cada vez mais tentado a usar a linguagem dos guiões das séries televisivas e contar histórias em tempo real. Estará o presente a absorver-nos ou é só a influência do audiovisual?
Já sei que hoje terei menos leitores interessados aqui no blogue, porque vou falar de uma revista de poesia, a Nervo, e a maioria dos Extraordinários (termo que um dos comentadores inventou e foi pegando) já tornou muito claro que não lê poesia regularmente. Mas, como há outros que a apreciam (e eu aprecio-a muito!), venho então avisar esses que desde dia 2 já está disponível mais um número (o 21!) dessa revista que está aí para ficar e é dirigida por Maria de Fátima Roldão, ela própria poetisa. Desta feita, participam os espanhóis Antom Laia e Gabriel Insauti (este traduzido por Luís Filipe Parrado), os brasileiros Claudio Daniel e Lana Ruff, os portugueses Helder Macedo, João Paulo Esteves da Silva, Jorge Roque, Carlos Poças Falcão, Miguel Filipe Mochila e Rui Pires Cabral e ainda o angolano Zetho Cunha Gonçalves. Publica um texto sobre o poeta Ramos Rosa o ensaísta António Vieira e ainda teremos direito a poemas de e. e. cummings na tradução de Luís Pignatelli. Francisca Carvalho assina desta feita as imagens da capa e do interior. Leia-se poesia.
No Wisconsin – onde está como escritora-convidada pela Universidade –, a narradora deste livro recebe da senhora que lhe alugou o quarto o pedido para que conte a história do marido, que se encontra muito doente no hospital. Embora fique relutante, a escritora acaba por ficar a saber o que aconteceu a Daniel – uma criança que, nos anos cinquenta, foi dada para adoção por uma telefonista solteira, ficando então à guarda de uma instituição. À medida que os dias passam, o médico e a assistente social apercebem-se, porém, de que o bebé é mestiço, o que representa um escândalo num lugar onde a população é maioritariamente branca e num tempo sujeito ainda a rigorosas leis de segregação racial. Caberá à assistente social investigar a paternidade de Dan, coisa que a mãe biológica se recusa a revelar. Mas, se o objetivo de encontrar a família certa para a criança parece ser nobre, nem tudo parece porém corroborá-lo. Anna Kim – de ascendência coreana a viver na Áustria (que virá a Portugal para o Folio em Outubro próximo) – foi especialmente sensível a esta história real e escreve um romance em torno da noção de raça, tema que ainda hoje marca as sociedades e se impõe no espaço privado, dividindo famílias ou impedindo a progressão de carreiras. De um modo inteligente e tocante, História de Uma Criança fala de como olhamos para o outro e do que acreditamos ver nele. A tradução é de Paulo Rêgo.
No início da semana observara as modas atuais e dirigira-me imediatamente a uma loja de vestuário onde, a transpirar, adquirira roupas, as experimentara atrás de cortinas e mergira transformado.
E agora esperou, com os pés largos nos sapatos novos firmemente plantados à sua frente.
– Provavelmente – disse-lhe Phil mais tarde –, provavelmente o problema foi que todos se lembravam do que eu fiz. Provavelmente a culpa não foi tua.
Mas George nunca acreeditou nisso e nunca se esqueceu de ter ficado à espera naquele quarto, um jovem corpulento, com os pés largos plantados à sua frente. Quando o corredor finalmente se silenciou, vestiu o pijama novo e enfiou-se na cama; pela janela aberta ouviu vozes e cantorias. O ar da noite da Califórnia estava pesado, não com o cheiro de artemísia mas com o odor de flores desconhecidas.
Thomas Savage, O Poder do Cão, tradução de Elsa Vieira