Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

31
Jul24

Boas férias

Maria do Rosário Pedreira

Hoje é o final do mês e as Horas Extraordinárias despedem-se até Setembro. Vem aí Agosto, esse mês meio mole em que a maioria dos leitores deste blogue tira férias, viaja, vai para longe de casa, altera as rotinas, e eu faço o mesmo: descanso, leio, desprecupo-me, fico sem obrigações. Como também o mundo editorial fica meio parado e pouco há que noticiar, não vale a pena desperdiçar tempo e trabalho com o anúncio de umas meras feiras de livro nas praias do País, que em geral só vendem velharias em saldo e mau estado e, com sorte, têm um ou outro autor por lá a autografar. Assim, aproveitarei, isso é mais do que certo, o tempo para ler (clássicos, modernos e livros fora da caixa, seja lá o que isso for) e já comprei alguns no sábado passado, mas ainda aceito uma ou outra sugestão se a quiserem partilhar. Espero que façam o mesmo e que se ilustrem e divirtam com as vossas leituras de Verão e, no regresso, possamos falar delas por aqui. Boas férias a todos e até breve.

30
Jul24

No Chile

Maria do Rosário Pedreira

Conheci, já adulta, pessoas da minha idade ou à roda disso cujos pais tinham andado em fuga, ou na clandestinidade, alguns dos quais tão-pouco usavam o verdadeiro nome. Alguns destes relatos acabaram por tornar-se quase risíveis quando, por exemplo, um controlador do Partido Comunista não sabia que ia controlar o seu próprio namorado... Mas outros eram impressionantes, sobretudo para uma menina que os pais acordaram às tantas da noite, avisando que iriam andar bastantes quilómetros a pé durante a noite e que havia uma coisa estritamente proibida: chorar. Creio que ela nunca mais chorou por nada que não merecesse... Subtracção, de Alia Trabuco Zerán, é um livro sobre três membros desta geração marcada pela clandestinidade no Chile durante o período de Pinochet; é sobre o medo, a prisão dos pais, o trauma e muito mais, sendo que uma das raparigas conseguiu asilo numa embaixada e a outra nunca mais se conseguiu separar da mãe, enquanto o rapaz perdeu o pai e conta (subtrai) mortos a toda a hora. Gostei bastante mais de Limpa, de que aqui já falei também, embora tenha sido este a chegar à final do Man Booker International Prize. Mas, claro, vale a pena ler.

29
Jul24

O senhor Rui

Maria do Rosário Pedreira

Tanto quanto sei, em tempos a família de Rui Nabeiro terá pedido a José Luís Peixoto, igualmente oriundo do Alentejo, que escrevesse a biografia do empresário; mas o escritor ofereceu-se em vez disso para escrever um romance, no qual «o senhor Rui» é o protagonista, intitulado Almoço de Domingo. Dá-nos uma boa ideia de quem foi o comendador Nabeiro, um homem de extrema humanidade e generosidade, como há poucos, que enriqueceu com o café, mas nunca deixou de apoiar a sua terra e os seus conterrâneos, ajudando sobretudo as crianças e criando um centro educativo em Campo Maior. O fundador da Delta Cafés tem agora um outro livro sobre a sua vida, este infantil, que conta o seu percurso desde miúdo. Chama-se O Avô Rui, foi escrito por Mariana Jones e ilustrado por Joana Gancho, e tem um prefácio de uma neta de Rui Nabeiro, Rita Nabeiro, que fala desta homenagem a um dos portugueses que devia servir de exemplo a todos, adultos e crianças. Se ainda não conhece a vida desta figura que ajudou muita a gente a sonhar, leia-o, pois vale muito a pena.

index.jpg

26
Jul24

Excerto da Quinzena

Maria do Rosário Pedreira

À noite era um pouco melhor. Podia passar cuidadosamente as mãos pela realidade, alisando-a para a observar com a esperança de, um dia, obter dela uma perspectiva geral, como se examinasse uma tapeçaria inacabada e multicolor cujo padrão oculto e intrincado poderia porventura deslindar, mais cedo ou mais tarde. No silêncio noturno, recordava-se das vozes que ouvira durante o dia e, com um pouco de paciência, desemaranhava-as umas das outras como fios de um novelo. Podia pensar com toda a calma nas palavras, sem temer o aparecimento de novos termos antes que a noite terminasse. Naquela fase da sua vida, a noite só com muita dificuldade apartava os dias, e se abrisse com um sopro um buraco nas trevas – como se desembaciasse uma vidraça coberta de gelo –, a manhã penetraria nos seus olhos muitas horas antes do tempo devido.

Tove Ditlevsen, Os Rostos, tradução de João Reis

25
Jul24

Vida e trauma

Maria do Rosário Pedreira

Hoje fala-se e escreve-se muito sobre identidade sexual e transexualidade. Mas, na maioria das vezes,  o assunto é tratado de forma quase militante, combatendo o preconceito, o discurso do ódio e a violência de género (nada contra, se isso ajudar a corrigir as injustiças, o problema é que por vezes assume uma «gritaria» que tem o efeito contrário). Não é o caso deste livro absolutamente maravilhoso chamado Maus Hábitos, de Alana Portero, que comprei há meses porque a autora estava convidada para vir às Correntes d'Escritas e eu tinha intenção de o ler antes disso. Mas ela acabou por cancelar a viagem e só recentemente peguei no romance. É a história de alguém que, logo aos cinco anos, tem uma noção exacta de que nasceu no corpo errado (um menino que se fecha na casa de banho para se maquilhar às escondidas e que adora sentar-se a ouvir conversas de mulheres sobre roupa e cusquices); e, longe de ser uma obra de agenda política sobre defesa de direitos, linguagem inclusiva, operaçõs de mudança de sexo ou tratamentos hormonais, é toda ela sentimento, carne e sangue, sem filtros, com as palavras todas que magoaram a protagonista enquanto crescia («maricas», por exemplo, aparece em quase todas as páginas) e que a própria usa sem medo nem paninhos quentes. Um livro magnificamente escrito sobre o trauma de não conseguirmos ser quem os outros gostariam que fôssemos e, por outro lado, a dureza de termos de nos esconder, talvez nos piores tugúrios, para podermos ser quem realmente somos nem que seja uma vez por outra. Eu já tinha lido o magnífico As Malditas, de Camila de Souza Viladas, e visto a série Veneno, baseada numa história verídica de uma travesti (é mesmo assim que é descrita no livro, que alega que trans é um eufemismo naquele caso), mas Alana Portero escreveu um livro que não deixa ninguém indiferente cuja acção decorre num bairro problemático dos arredores de Madrid (gente antiquada e bruta, toxicodependentes, rapazes violentos, velhos sozinhos, grupos neonazis...); é mesmo literatura a sério e mostra de forma incrivelmente humana e verosímil o que pode ser realmente o sofrimento de alguém que vive desde sempre uma vida que não lhe pertence. Belíssimo e contudente.

24
Jul24

Mais curto e mais longo

Maria do Rosário Pedreira

António Tavares, vencedor do Prémio LeYa com o romance O Coro dos Defuntos e finalista deste mesmo prémio com As Palavras Que Me Deverão Guiar Um Dia, escreveu ainda mais alguns romances, um maravilhoso livrinho de poesia, teatro e ensaios. Mas Mesmo não Indo, o Tempo Vai é a sua estreia no conto e incrivelmente variada: um homem que vive com um relâmpago dentro dele; uma avó com sangue de galinha; uma rapariga que engraxa esculturas de elefantes africanos de madeira e se surpreende quando o sexo deles muda de tamanho; um manicómio que recorre a métodos pouco ortodoxos para recuperar um doente que fugiu; umas botas militares que mudam inesperadamente de pés; um canário numa gaiola pendurada na varanda de um prédio que irrita sobremaneira um vizinho. Estas são apenas algumas das personagens deste delicioso Mesmo não Indo, o Tempo Vai, um conjunto de histórias admiráveis que decorrem em vários tempos e geografias e que ora nos oferecem magia e surrealismo, ora combinam humor com tragédia ou delicadeza com violência. Verdadeiramente imperdíveis, vêm demonstrar que António Tavares tem igual talento para a ficção mais longa e mais curta.

index.jpg

23
Jul24

Ler e escrever em liberdade

Maria do Rosário Pedreira

Este ano tivemos um tremendo incidente na zona infantil da Feira do Livro de Lisboa. Uma autora estava a autografar o seu novo livro (e não vou dizer nomes nem títulos aqui porque ainda esta semana vou falar desse livrinho delicioso) quando apareceu um elemento de uma associação de Extrema-Direita a insultá-la, ameaçá-la e impedir que os leitores se aproximassem dela, filmando tudo. A Segurança ocupou-se de expulsar a criatura, mas depois eu soube que não era a primeira vez que aquele tipo de atitude acontecia à jovem autora que nas redes sociais é ameaçada frequentemente. A razão? Escreveu há tempos um livro que se chama, salvo erro, O Pedro Gosta do Afonso. Pronto, esses senhores violentos e botas-de-elástico nunca mais a deixaram sossegada (e parece que há um ex-juiz que faz parte do grupo de autores de ofensas graves) e fazem-lhe ameaças dizendo que sabem onde ela mora... um descalabro que é preciso evitar a todo o custo, pois repete-se contra outros autores, contra bibliotecários e, no fundo, contra todos nós, que gostaríamos de poder escrever e ler em liberdade, passados que estão 50 anos da instauração da democracia. Centenas de pessoas, das mais variadas áreas, desde professores, psicólogos, juristas, bibliotecários, tradutores, escritores, editores, etc., assinaram então um documento em defesa da «liberdade de escrever, de publicar, de ler», que apela  à tomada de medidas de proteção pelas entidades competentes. Diz o comunicado: «O discurso de ódio, violento e discriminatório, proferido por estas organizações, é público e conhecido das autoridades. Muitos destes ataques e ameaças são feitos publicamente, gravados pelos próprios e, depois, orgulhosamente partilhados nas redes sociais.» Devemos todos assinar este documento e exigir que se combata esta insanidade. (Esta gente, na sequência de uma entrevista feita à autora , já deixou à porta na SIC frascos de merda e fardos de palha, entre ofensas e insultos graves e racistas ao director e ao dono da estação.) Eu já  assinei. Se quiser fazê-lo, fará o que é melhor para todos os que gostam de ler.

https://acessocultura.org/2024/07/08/comunicado-pela-liberdade-de-escrever-de-publicar-de-ler/

22
Jul24

Um novo Tabucchi antigo

Maria do Rosário Pedreira

Sai dentro de dias para os escaparates um livro maravilhoso de Tabucchi que, sendo o seu segundo romance, nunca tinha sido publicado em Portugal. A partir de objectos de família legados de geração em geração e encontrados no sótão da casa paterna, o Capitão Sexto torna-se historiador da sua família. Do primeiro antepassado toscano, nos anos 1850, até ao seu próprio nascimento, reinventa a vida dos antepassados e, através de personagens delirantes (como as duas gémeas grávidas que só têm um filho, a tia-mexilhão, o padrasto que obriga a mulher a comer pescadinhas a toda a hora ou o rapaz que decide não abrir a boca no colégio interno e se desabitua simplesmente de falar), deixa-nos assistir às tribulações de diferentes Sextos através de episódios que contam, afinal, a história da Itália no século XX: a unificação do país, as duas guerras mundiais, o fascismo e os anos da contestação comunista. Este romance incrivelmente imaginativo de um jovem Tabucchi ainda em busca da sua voz literária, combina projecções imaginárias e realidades políticas para nos dar a ler uma narrativa barroca com laivos de lenda que faz brilhar os recursos da ficção. Pouco conhecido do público, O Pequeno Navio conquista os leitores, garanto, desde as primeiras páginas. Não percam. A tradução é de Maria da Piedade Ferreira e foi revista por Maria José de Lancastre, autora da Fotobiografia de Pessoa e viúva do romancista italiano.

_opt_VOLUME1_CAPAS-UPLOAD_CAPAS_GRUPO_LEYA_DQUIXOT

19
Jul24

Poesia e música

Maria do Rosário Pedreira

Não vou falar de resistência, mas sinto um desinteresse maior dos leitores sempre que os meus posts são sobre poesia. Pelos vistos, o género não é o mais apelativo e, pela sua natureza metafórica ou elíptica, chega a menos gente, o que é uma pena. Já o poeta Pedro Homem de Mello, quando Amália cantou fados baseados em vários poemas seus (e roubados sem consentimento), em vez de se enfurecer, agradeceu à diva ter feito chegar a sua poesia ao povo. E é o mesmo que se vai passar agora com o músico e cantor Fernando Tordo que, para aproximar as pessoas dos versos, resolveu musicar e gravar muitos textos de poetas portugueses, dando a explicação: «Chegam melhor às pessoas através da música.» Chegarão? É bem provável; e, com data de saída prevista para Setembro, Fernando Tordo já começou a trabalhar no novo álbum, que será gravado com orquestra. Para já, sabe-se que os poetas escolhidos são Mário de Sá-Carneiro, António Botto, Pedro Homem de Mello, Manuel Alegre, Fernando Pessoa, Luís de Camões, Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena e Carlos de Oliveira, e que estes  serão cantados pelo próprio Tordo e seus convidados (Carolina Deslandes, Agir e Milhanas). O jornalista Nuno Pacheco, do Público, revela que Fernando Tordo, já há muitos anos, fez uma experiência semelhante com vencedores do Nobel da Literatura, cantando Joseph Brodski, Octavio Paz, Saint-John Perse, Eugenio Montale, Wislawa Szymborska, Pablo Neruda, Rabindranath Tagore, Harry Martinson, Derek Walcott, Vicente Aleixandre, Seamus Heaney e José Saramago. Haja quem tente mostrar com é linda a poesia.

18
Jul24

(In)confidências

Maria do Rosário Pedreira

O diário é seguramente o mais íntimo dos géneros literários. Repositório de confidências – e inconfidências – escritas sob a febre das emoções, partilhá-lo com o público é um acto de coragem, mais ainda quando o seu autor é um intelectual conhecido e reputado e quando as páginas que nos oferece estão cheias de revelações da sua «vida real» por oposição à ficção a que nos habituou. Iniciado em 1958 – tinha Mário Cláudio apenas 16 anos – e interrompido por mais de uma vez até à actualidade, este Diário Incontínuo, que funciona também como um maravilhoso álbum fotográfico, traz-nos relatos de almoços em família, de idas ao supermercado ou de obras em casa, a par de visitas a exposições, leituras de livros, períodos de escrita intensa, viagens, encontros com figuras que marcaram ou marcam ainda a vida nacional. Nestas páginas, desfilarão por isso Agustina ou Lobo Antunes, Carlos Avilez ou Graça Lobo, Eugénio de Andrade ou Vasco Graça Moura, José Rodrigues ou Manoel de Oliveira, Rodrigo Guedes de Carvalho ou Gonçalo M. Tavares; mas não faltam igualmente os amigos certos, ou os relacionamentos – também amorosos – que num dado momento podem ter entrado em confronto, mas cujo afecto verdadeiro acabou tantas vezes por não deixar abalar. Com a beleza dos pequenos instantes com os animais de estimação, com a mágoa que o reconhecimento público, mesmo que desejado, não consegue apagar, esta é uma obra pessoal escrita com toda a frontalidade e, ao mesmo tempo, um documento literário importantíssimo de uma época.

index (1).jpg

Pág. 1/2

A autora

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2014
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2013
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2012
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2011
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2010
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D