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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

29
Nov24

Excerto da Quinzena

Maria do Rosário Pedreira

A mulher idosa olha fixamente para um semáforo no cruzamento. Os flocos que caem à frente dele brilham com tons diferentes à medida que as luzes mudam. Até agora passaram por nós apenas quatro autocarros, todos de rota costeira em ambas as direções. Ninguém parece ter entrado ou saído dos autocarros. Não me lembro de ter visto nenhum deles parar.

[...]

O floco solitário que agora mesmo pousou e se derreteu sobre a minha luva era tão próximo de um imaculado cristal de neve de seis pontas quanto é possível encontrar-se. O que pousa ao lado dele está parcialmente desfeito, mas as quatro pontas que restam retêm a sua forma delicada. Estas dendrites moles e em deterioração são as primeiras a derreter. O minúsculo centro branco, a parte que se assemelha a um grão de sal, demora-se um suspiro antes de se dissolver.

As pessoas dizem «leve como a neve». Mas a neve tem um corpo próprio, que é o peso da sua gota de água.

 

Han Kang, Despedidas Impossíveis (trad. de Maria do Carmo Figueira e Ana Saragoça), no prelo.

28
Nov24

O que fica por ler

Maria do Rosário Pedreira

Incluo-me num gupo de pessoas (penso que bastante alargado) que vai deixando para a reforma alguns livros que pedem tempo, disponibilidade mental, atenção redobrada, leitura sem interrupções. No meu caso, há, entre outras, uma obra magna que não li na juventude e que, sei lá porquê, resolvi eleger para a idade madura. Falo de O Homem sem Qualidades, de Musil, que vergonhosamente continua à minha espera na estante. Tenho, mesmo assim, a consciência pesada desde que li na revista Máxima  há vários anos uma crónica do escritor António Alçada Baptista, na qual ele confessava ter guardado muitas obras longas e densas para quando fosse mais velho e, tendo chegado a essa idade, sentia tristemente não ter já as suas faculdades a 100% nem a paciência e a dedicação necessárias à leitura dessas obras de maior densidade. Pois não é que eu mesma já vou sentindo o mesmo?, que me disperso com muito mais facilidade do que antes e que  frequentemente dou por mim a contar quantas páginas ainda me faltam para chegar ao fim, fugindo-me a paciência para livros que, mais cedo na vida, teria lido decerto com outro entusiasmo? Pois é, o cineasta António-Pedro Vasconcelos, com quem eu falava muitas vezes de livros, dizia que o pior da morte era o que deixávamos por ler... Tinha toda a razão, claro, e o pior é que alguns livros já não os leremos por manifesta impossibilidade...

27
Nov24

Para amalianos e não só

Maria do Rosário Pedreira

Escrevo há cerca de dois anos (se estou a fazer bem as contas) uma crónica para o jornal digital a Mensagem de Lisboa intitulada "O Nosso Fado", que é, grosso modo, dedicada à canção de Lisboa. Eu sabia muitas histórias partilháveis, até porque o meu pai era um boémio e nos levava aos fados frequentemente; mas às tantas essas lembranças esgotaram-se e tenho lido bastantes livros sobre a arte do fado, tendo começado pelos mais teóricos e indo depois às biografias e memórias. Há uns meses, por exemplo, li um conjunto de artigos publicados nos anos 1920 no jornal A Voz do Operário e reunido mais tarde num volume intitulado O Fado e os Seus Censores, de Avelino de Sousa. E há uns quinze dias estive a deliciar-me com Amália: a Ressurreição, do jornalista e escritor Fernando Dacosta, que traz muitas e divertidas achegas à biografia de Amália baseada numa longuíssima entrevista conduzida pelo seu amigo chegado Vítor Pavão dos Santos. Neste livro de Dacosta, estão porém muitos episódios que só os que conviveram com a diva de perto provavelmente sabem e uma ou outra história que talvez não tenha sido antes registada por poder ofender A ou B, que entretanto morreram e já não se podem incomodar. Uma delas compôs, de resto, a minha crónica mais recente para a Mensagem de Lisboa e fala de dois poetas sonantes e da sua relação com a maior fadista da nossa história. Se quiserem ler, deixo-vos o link. Se gostam de fado, o Museu do Fado tem apoiado uma série de obras muito interessantes sobre fado e vale a pena dar uma espreitadela à página da Internet.

https://amensagem.pt/2024/11/19/cronica-fado-levantar-voz-amalia-rodrigues/?fbclid=IwY2xjawGwJOVleHRuA2FlbQIxMQABHbuL77PAHQ8LK_JHKomUliKKtNWsvhcirHYE0U6DaWySa1nHRiPLyYQ89g_aem__MHiUisuBowmEqaX83OIjg

 

 

26
Nov24

Escrever em Buenos Aires

Maria do Rosário Pedreira

Quando fui a Buenos Aires visitar um amigo que infelizmente perdi para uma doença, o Malba, que é um museu excepcional, era ainda muito recente. Esse meu amigo dava lá cursos de literatura e ainda hoje o Malba tem muitos programas para leitores e escritores. Agora, por exemplo, abriram as candidaturas a uma residência de escritores estrangeiros no Malba: cinco autores de qualquer nacionalidade e mais três, um do Chile, um de Itália e um espanhol (estes três com bolsas co-financiadas pelos seus países). Desde 2018 que o Malba convida escritores de outras línguas e paragens para desenvolverem, ao longo de cinco semanas, um projecto artístico que tenham em mãos. A residência acontece nos meses de Abril, Junho, Agosto, Setembro, Novembro e Dezembro. Quem sabe se não é a sua altura de concorrer a esta bolsa e ser seleccionado? É que escrever em Buenos Aires é altamente inspirador, garanto, pois as livrarias estão por todo o lado e abertas até tarde, há muitas actividades literárias por toda a cidade e o espírito de Borges cumprimenta-nos a cada esquina. As candidaturas estão abertas até 13 de Dezembro. Para saber tudo, aqui fica o link.

www.rem.malba.org.ar

25
Nov24

Para sempre

Maria do Rosário Pedreira

2018 foi o ano em que Itamar Vieira Junior ganhou o Prémio LeYa com o romance Torto Arado. O livro foi publicado em Portugal e vendido depois ao Brasil, onde foi publicado em 2019 pela excelente editora Todavia. Por lá, ganhou uma enorme popularidade, até porque falava de coisas que era preciso dizer sobre as condições em que ainda hoje muita gente trabalha no Brasil, e ganhou os prémios Jabuti e Oceanos no ano seguinte. A partir daí, foi um ver-se-te avias, e hoje o livro está vendido em 28 países. Foram feitos espectáculos de teatro e musicais, e estão em projecto outro tipo de adaptações, como exposições itinerantes, novela gráfica, série, etc. No ano passado, a edição em língua portuguesa do segundo romance do autor, Salvar o Fogo, foi editada simultaneamente em Portugal e no Brasil, e também já houve variadas vendas deste livro ao estrangeiro. O romance é lindo e fala do trabalho e da propriedade da terra, como o anterior, mas também da pedofilia praticada pela Igreja e da vida de uma família muito especial. E Itamar, merecidamente, venceu de novo o prestigiado Jabuti na semana passada! Fiquei mesmo contente e orgulhosa por estar ligada a estes livros. Prevejo coisas muito grandiosas para este autor e conto acompanhar a sua obra para sempre. Parabéns, Itamar. Ainda o verei ganhar ao Nobel...

22
Nov24

Palavrinhas

Maria do Rosário Pedreira

Quando pensamos na palavra «organização», pensamos numa coisa arrumadinha, no seu lugar, quieta, imóvel. E, porém, «organizar» tem, curiosamente, a mesmíssima raiz da palavra «orgasmo», que é tudo menos uma sensação organizada, provocando espasmos, contracções, explosões de seiva, tremores, calafrios e sacões dos pés à cabeça; enfim, não vale a pena ser exaustiva, quem já teve sabe como é – e sabe que não tem nada de organizado. Mas como se dá então esta afinidade etimológica? Investiguei e descobri que «organizar», na base, quer dizer qualquer coisa como «dispor de forma a tornar apto à vida» ou «dotar de um órgão»; e, lá está, sem órgão, feminino ou masculino, não há «orgasmo». Tudo se explica, não é verdade? Fiquemos então a saber que o vocábulo «orgasmo», no tempo de Hipócrates, estava relacionado já com um «órgão pleno de seiva» e que, mais tarde, em França, significava, vejam lá, «um vivo acesso de cólera»... Um dicionário bom é uma excelente companhia. Bom fim-de-semana, com ou sem orgasmos.

21
Nov24

Adaptações

Maria do Rosário Pedreira

Há algumas autoras anglo-saxónicas que descobri nos últimos anos que aconselho sempre que me pedem uma sugestão de leitura: Elizabeth Strout, Maggie O'Farrell, Elaine Feeney, Claire Keegan. Desta última os livros são pequeníssimos, mas dizem exactamente o que devem dizer, são humanos, sem palha, magníficos, retemperadores. O primeiro que li, Pequenas Coisas como Estas, continua a ser o meu preferido e, na minha cabeça, enquanto o lia, transformou-se numa espécie de filme de Frank Capra, um realizador que adoro pela sua humanidade e que teria adorado ler os livros de Keegan, tenho a certeza. Aconteceu-me ver na televisão há uns meses, praticamente por acaso, o filme que adapta o segundo livro que li desta autora, Acolher, e curiosamente não fiquei desiludida, embora, confesso, estivesse desconfiada de que fosse possível conseguir adaptar mantendo a política do "sem gordura". Mas agora soube que Pequenas Coisas como Essas já foi também adaptado ao cinema e que a própria Claire Keegan participou na escrita do argumento. O filme de Tim Mielants, que estreou dia 1 de Novembro na Irlanda, conta com grandes actores como Emily Watson ou Cillian Murhy, e eu já estou com água na boca. Se a novela nos enche o coração de um amor e de um bem inigualáveis, nem imagino o que será o filme, sobretudo se o virmos em mood de Natal. Espero é que venha depressa e não desmereça a grande escritora, que merece o melhor.

20
Nov24

Perguntas

Maria do Rosário Pedreira

Muitos romancistas referem que os seus livros não respondem a nada, pelo contrário, fazem muitas vezes as perguntas que os inquietam. No livro de conferências de Juan Gabriel Vásquez intitulado A Tradução do Mundo, o escritor colombiano conta que o editor de Tchékhov se irritou com ele por não ser capaz de tomar posições claras nos seus contos; e que Tchékhov terá ripostado que ele estava a confundir duas coisas: responder às perguntas e formulá-las correctamente. Na semana passada, ouvi a jornalista Isabel Lucas (também escritora, embora de não-ficção) dizer no programa da TSF de Nuno Artur Silva que, numa entrevista, as perguntas são tão importantes como as respostas, pois uma coisa leva a outra e, se as perguntas forem pobres, as respostas podem também não ser fantásticas. Já vi uma vez um escritor entrevistado ao vivo num festival literário desistir, aliás, de responder às perguntas tontas da sua entrevistadora, pegando-lhe na mão e dando-lhe umas pancadinhas no pulso, como a dizer, "pára lá, que eu faço isto sozinho", e a seguir fazer aquilo sozinho e dar um baile incrível sem precisar realmente de ninguém, porque estava a formular as perguntas certas e a responder-lhes. Isabel Lucas disse nesse programa de rádio que tinha muito medo das perguntas, e ainda bem que tem, porque as suas entrevistas a escritores, recentemente saídas com o título Conversas com Escritores, são boas e talvez o seu cuidado com as perguntas tenha que ver com esse medo e com o desejo de ganhar a confiança dos entrevistados, entre os quais estão nomes tão sonantes como os de Julian Barnes, Javier Marías, Paul Auster, Salman Rushdie ou Elena Ferrante. Esta é uma forma de saber quais foram as perguntas que levaram os romancistas a responder com a ficção. Vale muito a pena saborear por isso este livro de entrevistas.

19
Nov24

A lição de Proust

Maria do Rosário Pedreira

Penso que foi no podcast Vale a Pena de Mariana Alvim que fiquei a saber que o último volume da Recherche foi apontado pelo escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez como uma das suas leituras-chave. Custa-me dizê-lo, mas não passei dos primeiros três volumes da Recherche. Conheço duas fãs incondicionais de Proust que a lêem e relêem continuamente, mas também conheço alguém que diz que é incrível como alguém consegue escrever cem páginas sem sair do lugar, mas que aquilo não é para toda a gente. Nem sei onde posicionar-me entre estas duas opiniões: percebo que é genial, um jogo fantástico entre escrita e memória, mas também acho chatinho (e, além disso, embirro com o Marcel, desculpem). Tudo isto para dizer que nos últimos tempos andei às voltas com um livro que percebi logo que era bom (não tanto como Proust, mesmo assim) mas que, quando o lia na cama, dava-me o sono ao fim de poucas páginas. E, porém, era incrível como a autora, Marlen Haushofer, descrevendo o dia-a-dia praticamente invariável da sua protagonista no campo, na companhia de uma vaca e de um cão (há gatas, mas passam o dia na delas), consegue fazer maravilhas, lá está, sem sair do sítio. O livro tem sido enormemente elogiado e é um hino à natureza. Chama-se A Parede porque, num fim-de-semana que a protagonista foi passar na cabana de caça de uns amigos, se ergue uma parede invisível na montanha que a vai isolar para sempre do resto do mundo. Sim, a parede não a deixará sair de onde está e obrigá-la-á a sobreviver num ambiente que não era o seu e a tornar-se outra pessoa. É de algum modo algo buñuelesco, curioso e inteligente, mas eu achei-o levemente chatinho. A tradução, boa, é de Gilda Lopes Encarnação.

18
Nov24

Música enquanto podemos

Maria do Rosário Pedreira

Há tempos, pediram-me que escrevesse uma história para um livro infantil colectivo em que tinha de falar do Afeganistão. As suas vendas revertiam a favor de uma associação portuguesa que apoia raparigas afegãs que vêm fazer os seus estudos universitários para Portugal, uma vez que no seu país são proibidas de estudar. Para escrever esse livro, pedi para falar com uma delas, para lhe fazer perguntas corriqueiras sobre, por exemplo, o que comem e como se divertem; e tomámos um café numa manhã em que fiquei a saber muitas coisas que não sabia, entre as quais que ouvir música é proibido no Afeganistão e que alguém que seja apanhado a ouvir música pode ser preso e torturado. Já alguém imaginou um país sem música?! Eu nem queria acreditar! Mas, porque podemos ouvi-la aqui em Portugal sem problemas, sugiro então que assistam ao curso que começa hoje no Âmbito Cultural do El Corte Inglés de Lisboa (já houve este curso no de Gaia antes) ministrado por David Ferreira. Chama-se História da Música Ligeira e vai da invenção da gravação sonora até 1959, ano em que supostamente o rock morreu. São cinco sessões que passarão pelo jazz, a chanson française, a bossa nova e o rock. Vamos lá?

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