O presidente do Brasil, mãe, você o conhece pessoalmente. Ele já foi em casa duas vezes, quando ainda era líder sindical. Você esteve na fundação do partido dele. Esteve ao seu lado na luta pela Anistia, pelas Diretas, pela redemocratização. Até queriam você como suplente de senador do partido dele. Ele foi em casa numa noite em que tudo estava uma bagunça. Eu jogava War na sala com amigos. Tínhamos fumado maconha. Ríamos alto. Você, no quarto.
A Veroca o trouxe com o Geraldinho. Ele entrou, e gargalhamos, pois estávamos bem chapados. Ele nos cumprimentou, riu também, deve ter sentido o cheiro da rua. Claro que não oferecemos. Ele entrou e foi conversar com você sobre os rumos da política brasileira, que se reorganizava, saía da ditadura. Ficamos nos perguntando se deveríamos ou não oferecer maconha ao metalúrgico líder sindical. Melhor não. Naquela época, eu fumava maconha em casa com os amigos. No quarto, na varanda, nunca na sua frente. Depois de você ter descoberto que eu fumava, depois de ter descoberto que meus amigos fumavam, depois de ter descoberto que seus amigos, e amigos que fez já viúva, fumavam, depois de seus amigos que fumavam terem lhe oferecido, e de você não recusar, por educação, por timidez, e ter dado uns pegas, curiosa… e não ter sentido nada, você viu que não era coisa do demônio. Liberou.
Às quintas-feiras jantamos geralmente num restaurante com uns amigos que eram só do Manel mas agora também são meus. O elemento masculino do casal é um apaixonado pela História e, como conversamos sempre muito sobre o passado do mundo, eu aprendo muitíssimas coisas com ele; acrescento-as aos meus parcos conhecimentos de algumas personagens, adquiridos frequentemente na escola há décadas e desenvolvidos irregularmente ao logo do tempo com outras leituras. É certamente com o objectivo de ilustrar outros portugueses como eu que Lourenço Pereira Coutinho, doutorado em História, vai dar um curso no El Corte Inglés a partir de hoje, em cinco sessões, sempre às 18h30, sobre Personagens da História de Portugal e a Sua Época, em que abordará as figuras de Afonso Henriques, do Infante D. Henrique, do Padre António Vieira, do Marquês de Pombal e, sim, de Eça de Queiroz, que recentemente deu origem a polémicas (até aqui no blogue) mas é alguém que soube pensar o nosso país como poucos. Eu, infelizmente, não posso ir porque à mesma hora estarei a dar um curso sobre livros, mas quem possa e se interesse vá. Aprender não custa nada e sabe mesmo bem!
Numa manhã gelada de dezembro, Kyungha recebe uma mensagem da sua amiga Inseon – internada num hospital de Seul na sequência de um ferimento grave – pedindo-lhe que a visite urgentemente. Quando Kyungha chega à enfermaria, Inseon conta-lhe que veio de avião da ilha de Jeju para ser tratada urgentemente e implora-lhe que vá a sua casa dar de comer e beber ao seu periquito, que de contrário morrerá. Uma tempestade de neve fustiga a ilha à chegada de Kyungha e muitos dos autocarros foram cancelados ou sofreram atrasos. Kyungha não sabe se chegará a tempo de salvar a ave – nem mesmo se sobreviverá ao frio tremendo daquela noite; e não sabe também a vertigem que a aguarda em casa da amiga, onde uma história há muito sepultada acabará por revelar-se, documentando um terrível massacre ocorrido muitos anos antes em Jeju. Despedidas Impossíveis, o mais recente romance de Hang Kang, vencedora do Prémio Nobel da Literatura em 2024, é um hino à amizade e um poderoso manifesto contra o esquecimento. Como um longo sonho de inverno, estas páginas belíssimas iluminam uma memória traumática, enterrada ao longo de décadas, que ainda hoje ecoa no peito de muitas famílias coreanas. Saiu ontem, com tradução de Maria do Carmo Figueira e Ana Saragoça. Ganhou o Médicis para ficção estrangeira em França, ex-aequo com Misericórdia, de Lídia Jorge.
Quando pensamos em livros na fogueira pensamos naturalmente na Inquisição e no seu Index, ou em sistemas políticos repressores e ditatoriais, nos quais há sempre centenas de livros proibidos e queimados. Mas, desta feita, os livros na fogueira, os livros ardidos, nada têm que ver com censuras e proibições, mas com os horrorosos incêndios da Califórnia. Sim, é verdade, algumas editoras e livrarias nos arredores de Los Angeles foram apanhadas pelo fogo e, já se sabe, o papel arde depressa e bem; os fogos prejudicaram os proprietários, os autores, os leitores, as bibliotecas de alguns famosos, a cultura em geral... Os donos e o pessoal da Book Soup e da Vroman's, uma livraia e uma editora, respectivamente, segundo um artigo publicado na Publisher's Weekly, foram convidados a afastar-se dos respectivos estabelecimentos e ficaram sem notícias do que aconteceu com eles, mas não esperam já nada de bom. Um ou outro livreiro sabe que a sua loja foi salva pelos bombeiros, mas mesmo assim foi obrigado a mantê-la fechada por vários dias e, não podendo vender livros por esse período, terá outro tipo de prejuízos. Em Pasadena, Santa Mónica, Riverside, Carmel e outros locais da Califórnia, o fogo chegou à porta de muitas casas e devorou livros nas estantes; e, nas livrarias, há muita gente sem saber como recuperar do susto e dos danos (e como vai conseguir pôr tudo de pé depois do rescaldo). Solidarizemo-nos, pois, com os nossos pares californianos, amantes da leitura como nós. O que lhes vale é nos EUA haver uma Book Charitable Foundation para ajudar, enquanto Trump não acaba com ela.
Há muitos anos, alimentava eu uma colecção de ficção estrangeira na Temas e Debates com umas capas lindas de morrer do designer António Rochinha Diogo (que também evocavam o génio de pintores de várias épocas), publiquei um romance chamado O Dia em Que Hitler Foi Lá a Casa, de Rodney Hall, cujo protagonista fictício recebia a visita do tirano quando era pequeno, sem ter a mais pequena ideia daquilo que Hitler um dia se tornaria. Agora, a Casa das Letras publica, porém, algo mais suculento, porque não ficcional mas verdadeiro, sobre os parentes de Hitler que lhe terão sobrevivido e que moraram ou moram ainda nos Estados Unidos. O livro chama-se A Família de Hitler e tem por subtítulo À Descoberta da Genealogia Secreta do Ditador Nazi. Foi escrito pelo jornalista britânico David Garner, que dirigiu a revista Newsweek e investigou durante muitos anos a vida dos sobrinhos e irmãos do Führer, parentes que, regra geral, tiveram vidas completamente sóbrias, discretas e muito decentes e esconderam, aliás, do mundo inteiro (menos de David Garner, suponho) o seu apelido, trocando-o por outro, não querendo ter nada que ver com o monstro que foi Adolf. Sai amanhã para as livrarias e veremos que surpresas nos guarda.
Eça de Queiroz foi para o Panteão esta semana, onde poderá ter interessantíssimas conversas com Sophia (digo eu), apesar de para já estar sozinho numa sala. A cerimónia da trasladação dos seus restos mortais foi muito bonita, com leituras e peças musicais muitas vezes evocadas nos seus livros; e, apesar de Eça estar agora em Lisboa, a sua Fundação, em Baião (ou deveria dizer «Tormes»?), continua a trabalhar na associação do nome do grande romancista do século XIX a belos projectos contemporâneos, tais como um prémio literário bienal de 10.000 euros atribuído a uma ficção escrita por um autor que tenha até 40 anos; ou uma bolsa de criação literária com um «ordenado» associado e estadia na localidade da casa do autor de A Cidade e as Serras (na qual certa noite ele comeu o tão famoso arroz de favas que ainda por se lá cozinha no restaurante). O prémio literário mencionado, que já foi dado a autores como Joana Bértholo ou Frederico Pedreira, tem o apoio da Fundação Millenium/BCP e, em 2025, terá como jurados Ana Luísa Vilela, Bruno Vieira Amaral, Carlos Reis, Isabel Lucas e Luísa Mellid-Franco. Já as bolsas de criação literária contemplam vários escritores e géneros no presente ano: poetas como Rita Taborda Duarte, jornalistas como Inês Bernardo ou Susana Moreira Marques, cronistas e ensaístas como Nelson Nunes. A Fundação Eça de Queiroz sempre a mexer!
A casa onde viveu o escritor Vergílio Ferreira, na aldeia de Melo, perto de Gouveia, abriu para residências artísticas temporárias, e os curadores serão Adélia Carvalho (se não conhece os seus livros e projectos, ainda vai muito a tempo, para alguma coisa serve a Internet) e Valter Hugo Mãe (o romancista vencedor do Prémio Literário José Saramago com o Remorso de Baltazar Serapião), que já estão a aceitar inscrições. Como sei que me lêem vários autores de livros, mas também cantores e artistas de outras áreas, divulgo já que se iriam sentir lá muito bem a trabalhar, já que a casa foi amplamente remodelada e remobilada, tem aquecimento, dois quartos, cozinha, casa de banho e, bastante importante como inspiração, uma vista soberba para a serra! Quem for escolhido para estas residências ocupará o segundo andar, em ambiente bem sossegado, e poderá ali conceber, adiantar ou terminar algum projecto artístico, bem como participar em actividades nas redondezas. O rés-do-chão e o primeiro andar estão abertos ao público, para visitas à casa do grande Vergílio, cuja entrada é gratuita. Tente-se a apresentar um projecto aos curadores, porque não?
Fiquei cheia de pena quando, na semana passada, li sobre a morte do escritor britânico David Lodge. Era um homem muito simpático (e também bastante surdo) que cheguei a conhecer em Lisboa; mas o que me liga a ele são os seus romances, muitos dos quais publiquei na primeira editora onde trabalhei, há um ror de anos, começando, se não me engano, por Um Almoço nunca É de Graça. Mas o meu preferido foi, sem dúvida, Terapia, com o protagonista a ler Kierkegaard para ver se atinava consigo próprio (a mulher pedira-lhe o divórcio e ele nem dera por que havia algo de errado com o casamento), e a ir de fim-de-semana com uma nova conquista para as Canárias, onde se tornou intimidante ir à casa de banho e ficar com um cocó entalado (chorei a rir com a cena que quase acabou com o romance). Também recordo vivamente Notícias do Paraíso, sobre pacotes de férias que acenam com o Paraíso e são um fracasso completo, até porque passara pela mesma experiência num longínquo arquipélago em que, no final do terceiro dia, já não havia nada que ver e, ainda por cima, era noite às cinco da tarde (eu tinha ido no nosso Verão...). Professor e romancista de excepção, Lodge honrou realmente o proverbial humor britânico e vale muito a pena lê-lo. Há muitos livros traduzidos em português.
Neste Natal, como de costume, passei várias horas com adolescentes e gente nova e reparei que são mesmo meninos-excepções os que não vivem a olhar para o ecrã do telemóvel e a digitar mensagens a toda a hora, quando não a ver vídeos que mostram uns aos outros constantemente. O digital tomou conta do tempo das crianças e jovens que, por vezes, estando ao lado uns dos outros, comunicam através do telemóvel. Mas esta coisa que nos trouxe tantas vantagens (no meu ramo de actividade foi incrível poder apagar e reescrever um texto sem mudar de folha e, se necessário, recuperar até versões anteriores de um texto gravadas num ficheiro antigo) tem afinal estado a deixar muita gente para trás. Isso mesmo dizia o jornal Público num artigo recente, baseado no boletim estatístico da Comissão para a Igualdade de Género, no qual se explicava que, apesar de alguns desenvolvimentos, o digital está a deixar as mulheres cada vez mais para trás (deixo o link abaixo); e, do mesmo modo, os mais velhos que não conseguiram «informatizar-se» (sobretudo fora dos grandes centros) e que estão a ser claramente prejudicados pela transição digital na área da saúde (ponho também o link deste alerta para quem queira ler). Além de tudo quanto tenho andado a pregar sobre o facto de a digitalização ser responsável por um decréscimo da leitura e da linguagem, agora mais estas. Mas como é que uma coisa que nos facilita tanto a vida pode complicá-la tanto ao mesmo tempo?
É verdadeiro o título deste post: chegou a primeira revista Nervo de 2025 e isso só pode ser bom sinal! A Nervo, uma revista de poesia dirigida por Maria de Fátima Roldão (ela própria poetisa) vai já no seu 23º número e não pára de nos revelar belos poemas de autores portugueses e estrangeiros (estes últimos geralmente traduzidos por congéneres portugueses). Desta feita, brinda-nos com textos de Andreia C. Faria, Frederico Pedreira (também romancista) e Renata Correia Botelho, bem como António Vieira, Jorge Aguiar de Oliveira, Rui S. Magalhães ou Bernardo Maria Salgado, que traduz também o poeta espanhol Jose Mateos. Regressam as traduções do músico e poeta João Paulo Esteves da Silva (neste número os poemas são de Rami Saari, israelita); e haverá, entre outros textos, um testemunho sobre o poeta José-Alberto Marques, que morreu recentemente, em Setembro de 2024. A imagem da nova Nervo está a cargo de Fernando Aguiar e pela capa vê-se logo que é bonita. Não se enerve com a minha insistência e leia poesia!