Hoje, enquanto estiverem a ler este post, devo estar a caminho da ilha de São Miguel, nos Açores, onde nem me importava nada de passar uns dias, mas não é para isso que lá vou e, portanto, estarei de volta amanhã de manhã para gozar o feriado em Lisboa. Desloco-me uma vez mais a Ponta Delgada em jeito de Pepe-Rápido para o lançamento de Passagem Noturna, de Leonor Sampaio da Silva, um romance magnífico que foi finalista do Prémio LeYa e que, sendo o primeiro romance da autora publicado aqui na casa, é obra de surpreendente maturidade literária, de resto muito elogiada por intelectuais como Carlos Fiolhais ou Onésimo Teotónio Almeida (e que será apresentada em Lisboa por João de Melo durante a próxima Feira do Livro). Vivendo a autora numa ilha, é natural que o seu romance reflicta sobre a insularidade, ainda que de forma parabólica (e muito divertida), e que a história parta de um «sinistro» que bem pode ser um daqueles terramotos a que as ilhas costumam ser atreitas. Mas é universal. Leiam-no. É o melhor que fazem.
À semelhança do que vem sendo feito com várias disciplinas do conhecimento (história, artes plásticas, inteligência artificial, música...), o Âmbito Cultural do El Corte Inglés não esquece a literatura, em especial a poesia. Há sempre recitais excelentes organizados, regra geral, por José Anjos, que é um leitor profissional de poesia e há poucos dias esteve com Rui Spranger a falar de O'Neill e do seu Um Adeus Português; e há agora também a novidade de um curso sobre oito poetas portugueses contemporâneos, dado por António Carlos Cortez em quatro sessões. Infelizmente não fui a tempo de avisar da primeira (em que se falou de Vitorino Nemésio e Jorge de Sena), mas nos dias 5, 12 e 19 de Maio os que gostam de poesia ainda podem aproveitar as sessões sobre Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner, David Mourão-Ferreira e António Ramos Rosa e, no último dia, Gastão Cruz e Fiamma Hasse Pais Brandão. Tudo poetas, como hoje se diz, incontornáveis na história da literatura portuguesa.
(Excepcionalmente à segunda, porque sexta foi feriado.)
Esquecida entre os cadernos do liceu, uma fotografia antiga. Mostrava Jacinto, os pais e as irmãs junto do monumento aos Descobrimentos. Usavam todos roupas leves e frescas. A luz reverberava no leito do rio e contra o calcário das estátuas. Acompanhavam a família duas raparigas que não conhecia, talvez parentes dos Açores. No verso da fotografia li a data: julho de 1960. Datava da inauguração recente do monumento, quando o padrão original, erguido em materiais perecíveis, fora reconstruído em betão e cantaria, para assinalar os quinhentos anos da morte do Infante. Uma caravela estilizada faz-se ao mar, levando à proa o Infante D. Henrique e alguns dos protagonistas da gesta ultramarina e da cultura da época, navegadores, cartógrafos, guerreiros, colonizadores, evangelizadores, cronistas e artistas, retratados com os símbolos que os individualizaram. Jacinto, reparava agora, posava debaixo da efígie de Bartolomeu Dias, a sua personagem no teatrinho do liceu. Pensaria nele todos os dias? Faria dele o seu modelo, a sua inspiração?
Cada vez estamos a ser mais treinados para ler pouco... Numa rede social, quem se atreve a publicar um texto mais extenso (Frederico Lourenço fê-lo várias vezes no passado e tinha imensos leitores) vê-o reduzido a três meras linhas seguidas da expressão destacada «Ver mais», mas o facto de não vermos logo o texto completo leva a que muita gente nem sequer se dê ao trabalho de ver quanto lhe falta e se tem tempo para ler até ao fim; se as primeiras linhas não forem muito fortes, ficarão de facto por ler na maioria dos casos... Agora, que os jornais em papel, impressos na véspera da data de saída, se tornam facilmente obsoletos de manhã (até já houve um jornal que acreditou estar seguro das suas previsões e deu uma primeira página com dados errados numas eleições americanas...), muitos jornais mandam por e-mail um resumo das principais notícias todas as manhãs (o Expresso e o seu Expresso diário, por exemplo). Desta feita, foi o Diário de Notícias que resolveu criar a newsletter «Bom Dia», em que um experiente profissional nos faz a papa toda, resumindo com elegência o que há a saber de mais importante sobre a actualidade. Confesso que dá imenso jeito (sobretudo a caminho do Luxemburgo, onde ficarei até domingo), mas, depois desta síntese tão bem feitinha, alguém vai ler o resto do jornal? Duvido.
Confesso que li o meu primeiro livro da norte-americana Marylinne Robinson porque ouvi o presidente Barack Obama dizer que era uma das suas autoras preferidas. Ainda o nosso Presidente não era presidente, mas professor e comentador, e já os livros que divulgava na televisão, mesmo demasiado sucintamente (eram muitos para tão pouco tempo), passavam a registar vendas significativas na semana seguinte nas livrarias. Mas desta feita vai falar-se dos livros de um outro presidente, Mário Soares, para comemorar o seu centenário e falar da sua enormíssima biblioteca (no Dia Mundial do Livro). A mesa-redonda é organizada pela Universidade do Minho e faz parte do ciclo «Conversas na Casa»; realizar-se-á hoje às 18h30, na Casa do Conhecimento em Braga (Largo do Paço), e conta com as participações da filha de Mário Soares, Isabel Soares, e também de Maria João Avillez e Pedro Matos Gomes, sendo moderada por Sérgio Guimarães Sousa. Vai de certeza valer a pena, até porque quem aqui não gosta de ouvir falar de livros?
Lutando contra a desculpa esfarrapada de que não têm tempo para ler, dada por pessoas que em geral não querem dar-se a esse trabalho, a RTP começa hoje um interessante programa intitulado A Pequena Biblioteca, com autoria e apresentação de Filipa Leal (já experiente nestas andanças), que propõe semanalmente em menos de cinco minutos (para não roubar muito tempo) um livro pequeno que merece ser lido. Ao longo de cinquenta episódios, a ideia é mesmo promover a leitura junto de todos, especialmente os preguiçosos, de pequenas obras e mostrar que os livros não se medem aos palmos e que há títulos incríveis de poucas páginas que, ainda por cima, têm a vantagem de não pesar e poder ser transportados na mala ou no bolso. Parabéns por mais esta iniciativa que eu não vou de certeza perder. Se não lerem grande, leiam pequeno! É o mínimo que se pode pedir.
Na semana passada, para começarmos mal, morreu-nos Mario Vargas Llosa, o grande (enorme) romancista peruano, premiado com tudo o que havia para ganhar, incluindo o Nobel da Literatura em 2010. Autor de livros absolutamente marcantes, e tão diferentes uns dos outros como Conversa na Catedral, Quem Matou Palomino Molero, A Guerra do Fim do Mundo ou, mais recentemente, As Travessuras da Menina Má e O Sonho do Celta, fez-me apanhar um bruto escaldão na Praia da Luz, em Lagos, há muitos anos, enquanto lia A Tia Júlia e o Escrevedor, que se baseia na sua própria experiência de radialista e pretendente de uma tia por afinidade, com quem na vida real acabaria por ficar casado durante doze anos. Era, além disso, um desses autores que falam bem, e ouvi-o a propósito do seu percurso (já aqui o contei) na Feira do Livro de Guadalajara, no México, numa ocasião em que contou como a leitura o ajudara no colégio interno a perceber que não era o único miúdo no mundo a sofrer a privação da mãe e da alegria. Era por fim um homem implicado na política, não indiferente, tendo-se candidatado a presidente do Peru e escrito romances com fundo político (Lituma nos Andes, um dos meus preferidos), mesmo que o amor nunca fosse estranho a esses livros. Presto-lhe homenagem neste blogue e espero que a sua herança crie grandes escritores por esse mundo fora. A sua obra é para continuarmos a ler e reler.
Poesia rima com Primavera, ainda que não pareça. Já aqui disse que o dia em que se inaugura a nova estação é o Dia Mundial da Poesia, mas agora conto-vos que na próxima semana estarei no Luxemburgo para, com muitos outros poetas de várias nacionalidades, participar em várias sessões no âmbito do encontro Printemps des Poètes. Além de uma conversa com a representante do Instituto Camões, Adília Carvalho, na universidade a propósito do que se lê e publica em Portugal desde o 25 de Abril, o que dá pano para mangas, realizarei duas leituras de poesia de cerca de dez minutos em português, que serão seguidas da leitura, por uma atriz, das respectivas traduções francesas, feitas pela magnífica Sónia da Silva, com quem pude trabalhar aquando das Correntes d'Escritas, no passado mês de Fevereiro. Com essas traduções foi feita, de resto, uma pequena plaquete bilingue pelos Cahiers de l'approche (Cadernos do Achegamento) para eventual venda durante as actividades. Vai ser uma Primavera muito poética. Boa Páscoa e até segunda.
Já aqui falei da fabulosa estreia na ficção literária da cantora Luísa Sobral. Como faz parte, houve algum preconceito quando se falou de que a artista se atrevera à escrita de um romance porque os portugueses parecem sempre desconfiar de quem tem êxito (e o Camões até acabou Os Lusíadas com a palavra inveja). Mas, mal as pessoas começaram a ler, renderam-se à evidência de que a Luísa Sobral era uma belíssima contadora de histórias muito para lá das canções que escreve desde os doze anos; que era capaz de estruturar um romance literário, de usar vários registos estilísticos, de ter uma voz segura (ela é uma grande leitora), de investigar e inventar; e as críticas positivas têm-se multiplicado em blogues, jornais, podcasts e redes sociais, fazendo com que Nem Sempre as Árvores Morrem de Pé tenha passado já à 6.ª edição, o que é raro conseguir-se num primeiro romance. Para quem esteja interessado em ouvir a Luísa Sobral falar ao vivo sobre o seu processo criativo e o romance em causa, hoje às 18h30 estarei a conversar com ela na FNAC da Avenida de Roma, onde esperamos todos aqueles que queiram aparecer e tirar teimas. Hão-de cair muitos muros, aposto. Até logo.
Hoje sai para rua e as livrarias mais um romance vencedor do Prémio LeYa. Desta feita, estamos em 1962, num país orgulhosamente só, e vem aí a construção da primeira ponte suspensa sobre o Tejo, para a qual vão ser precisos cerca de três mil homens. A obra irá mudar para sempre a paisagem da capital, muito especialmente para quem vive em Alcântara, como é agora o caso de Victor Tirapicos, instalado na casa dos tios depois de ter envergonhado o pai com dois anos de cadeia só por ter roubado pão e batatas para fintar a miséria. É, de resto, pelos olhos deste serralheiro de vinte e dois anos que veremos a ponte erguer-se um pouco mais todos os dias e, ali mesmo ao lado, partirem os navios cheios de rapazes para a guerra do Ultramar, donde muitos acabarão por voltar estropiados, endoidecidos ou mortos. Porém, apesar de a modernidade parecer estar a matar a vida e os costumes do pátio operário onde convivem (amigavelmente ou nem tanto) uma série de figuras inesquecíveis – entre elas o mestre sapateiro que faz as chuteiras para o Atlético Clube de Portugal e um velho culto que aprende a desler –, Victor Tirapicos encontra o amor de uma rapariga que é muda mas consegue escutar o planeta, pressentindo a derrocada da estação do Cais do Sodré e outra catástrofe ainda maior, que se calhar tem pés de barro e só acontece neste romance, mas bem podia ter acontecido. Pés de Barro é um livro maravilhoso que, garanto, toda a gente vai gostar de ler. Parabéns, Nuno Duarte! (A maravilhosa capa é de Rui Garrido.)