Quando a chuva desabou severa numa manhã de outubro, e precipitou a imagem dos arrastados e das perdas que continuava a reverberar feroz em sua vida, Rita Preta não sabia que estava a poucos dias de ser levada outra vez, por uma corrente violenta, à vida que as mulheres de sua comunidade temiam ter. Registrar as compras e ouvir o bipe da máquina escaneando o código de barras a trouxe para o presente. Então constata que anda exausta e enumera na mente as causas de seu cansaço: primeiro, a falta de paciência com Jorge. Ela é a amante — e essa palavra a deixa com um sentimento ambíguo difícil de definir, um estigma, sem dúvida, mas também lhe confere certa dose de excitação e liberdade. O que a abala são as promessas não cumpridas, os telefonemas não atendidos, as expectativas não correspondidas. Toda uma cadeia de pequenas frustrações. Além de passar muito tempo na estrada, viajando para transportar os grãos do oeste à baía, ele tem uma família que ocupa seu tempo: mulher, filhos, um neto. Prometera que sairiam para dançar em breve, mas havia meses os dois não iam à casa de seresta da Cidade Baixa. Além disso, a vida de encontros em hotéis baratos do centro da cidade sempre lhe soara humilhante e destituída de interesse.
Às vezes, Rita Preta tenta se conformar com seu destino, alegando que esta é sua sina. Confere um peso a essa história tendo como métrica seus relacionamentos anteriores. Ela tem muitos motivos para duvidar de seu atual romance. Foi assim com o pai de seu primeiro filho; com a transa breve que se seguiu e lhe deixou outro filho; com o delinquente, pai do terceiro, que a agredia e só deixou a casa quando ela trocou as fechaduras, e depois de lhe comprar uma passagem de ônibus de ida, sem volta, para o cafundó de onde ele tinha saído.
Ontem foi o anúncio da obra vencedora da primeira edição do Prémio Nuno Júdice, um prémio que foi criado para homenagear um dos maiores poetas portugueses contemporâneos, que nos deixou há cerca de ano e meio. Concorreram 222 livros, tendo, numa primeira fase, sido seleccionados 39 semifinalistas e, numa segunda fase, 5 finalistas. Tive o gosto de presidir ao júri, até porque era amiga pessoal de Nuno Júdice, e de trabalhar na excelente companhia da minha colega Cecília Andrade (que publicará a obra galardoada na Dom Quixote em Março de 2026, no encerramento das comemorações do 60.º aniversário da editora), dos poetas Filipa Leal e Ricardo Marques e da editora Sandra Mendes. Está de parabéns a arquitecta Carla Louro, autora de Entra-se na Casa pelo Pátio, o único livro que estava no topo das preferências de todos os membros do júri e que, por isso, ganhou por unanimidade. É um livro de alguém que sabe o que é poesia, um livro feminino sobre a maternidade (lembrando às vezes a querida Ana Luísa Amaral), o doméstico, o luto, o fazer do poema (o que honra o patrono!) e a comparação entre os poemas e as casas, com analogias e metáforas muito boas. É também uma obra redonda, arrumada, coesa como poucas, que se diria de alguém muito lido e experimentado nas lides da poesia, mas que é (que coisa bonita!) uma obra de estreia. Parabéns, Carla Louro, por este livro claro, mas nunca simplista; emotivo, mas nunca sentimental.
Leio um artigo muito interessante que uma amiga me envia e está assinado por uma senhora de nome hispânico: María del Valle Varo García, docente universitária. Diz-nos que o cérebro tem regras próprias, e que as redes neuronais são mais ativas quando escrevemos à mão do que quando teclamos, como já sabíamos por experiência, mas não cientificamente; e acrescenta que, para que as palavras adquiram o seu pleno sentido e se tornem ideias ou conceitos duradouros, têm de passar primeiro pela memória de curto prazo; mas que, para a informação estabilizar, tem de passar por outro tipo de memória: semântica, afetiva, espacial ou temporal. Ou seja, a recordação de umas férias envolve uma memória episódica; por outro lado, saber que a capital da Itália é Roma remete para uma memória semântica, desprovida de contexto pessoal. Vale então a pena recordar que a escrita à mão activa uma rede mais ampla de regiões cerebrais (motoras, sensoriais, afetivas e cognitivas) do que a digitação. Esta última, mais eficiente em termos de velocidade, requer menos recursos neurais e promove uma participação passiva. O artigo ainda refere que nem todas as palavras levam o mesmo tempo a processar e que as pausas são muitíssimo importantes. Ora, estas muito mais frequentes na escrita à mão do que na digitação. «Devorar palavras não é o mesmo que absorver a sua essência», diz esta sábia senhora, e eu aplaudo. Agora, que já desistiram do telemóvel nas escolas, que tal reservar os computadores apenas para os alunos mais velhos?
Para o Fólio deste ano, foram convidados três Prémios Nobel da Literatura! Não pude estar no primeiro fim-de-semana e perdi infelizmente, a bielorrusa Svetlana Alexievitch, mas assisti à leitura de um texto sobre genocídio por John Coetzee, o sul-africano que pôs a sala num silêncio absoluto e fez Alberto Manguel dizer-lhe que conduzir aquela sessão foi como arrancarem-lhe um dente. O terceiro Nobel convidado, o mais recente, o húngaro Laszlo Krasznahorkai, teve de regressar intempestivamente a casa assim que chegou, pois estava doente e com problemas respiratórios e, por isso, ninguém pôde ouvi-lo. Já a nobelizada do ano passado, Han Kang, recusa a maioria dos convites para festivais porque quer é escrever sossegada (e presumo que não goste muito de falar inglês, o que acontece com vários asiáticos que conheço). Mesmo nas entrevistas é muito parca; quando lançou o seu último romance, Despedidas Impossíveis, disse que só daria uma entrevista por país, e aqui em Portugal a benesse calhou à Visão. Mas nem por se esconder é menos lida, e nos 60 anos da Dom Quixote, um dos seis livros comemorativos é justamente A Vegetariana, um romance profundamente original que já teve muitas edições. Se ainda não o leu, tem agora esta versão especial.
Pronto, lá se foi a Escritaria donde venho mais morta do que viva; mas, como prometi que hoje já havia blogue, venho aqui dizer-vos que este ano se comemora o 50.º aniversário de carreira literária do querido João de Melo (eu sei que, olhando para ele, não parece possível alguém tão novo escrever há tanto tempo) e que logo à tarde, na Livraria Buchholz, no âmbito das referidas comemorações, vão ser lançados dois livros do autor do premiadíssimo Gente Feliz com Lágrimas e de muitos outros livros de ficção (e um dia poesia que esperamos não seja filho único). Sim, eu disse dois. Um deles é uma colectânea de contos, intitulada A Nuvem no Olhar, que será apresentado pela também romancista Ana Margarida de Carvalho; o outro é um diário que tem por título Novas Fases da Lua, no qual o escritor açoreano tão depressa fala das suas leituras ou comenta a situação, como se refere à própria vida e à escrita; este último vai ser apresentado por Guilherme d'Oliveira Martins. João de Melo é um dos poucos autores consagrados que lê os novos e comenta com eles as suas obras, obras que às vezes ainda apresenta, cita e prefacia. Por tudo isso e por muito mais, merece obviamente ter sala cheia. Vamos?
Não ia realmente falar disso, mas, como já foi referido, adiante! Hoje à tarde rumarei a Penafiel, onde já decorre desde segunda-feira a 18.ª edição da Escritaria, um festival literário dedicado a uma personalidade ligada às letras que já homenageou escritores como Saramago, Lobo Antunes, Hélia Correia, Lídia Jorge, Mário Cláudio, Ana Luísa Amaral..., e que este ano resolveu atribuir-me esse papel, pelo que estou imensamente grata. Além de a cidade ficar com um busto e uma frase minha para todo o sempre, as actividades dedicadas ao que tenho feito ao longo dos últimos quarenta anos são muitas e desde já quero agradecer a todos os que aceitaram o convite da Escritaria para participar nos painéis dedicados às minhas várias facetas: a de poetisa, a de editora, a de autora de literatura infanto-juvenil, letras para fado e canções, crónicas, contos e também, claro, deste blogue, que alimento quase diariamente desde 2010 (é obra!). Na sexta, haverá um concerto com Aldina Duarte e Pedro Lamares (com a participação da harpista Ana Isabel Dias) e, no domingo, um concerto de Marta Y Micó (José-María Micó é um grande poeta e compositor do país vizinho que musicou e gravou umas letras minhas, que traduziu). Passarão pelas mesas pessoas que me são muito queridas ou que tiveram uma importância fundamental na minha vida nos livros (e não menciono os seus nomes, sob o risco de me esquecer de alguém, mas haverá críticos, editores, autores que publiquei, tradutores e gente da música e da família), mas o programa completo consta de várias notícias que têm saído nos últimos dias e pode ser consultado na página do município de Penafiel. Se estiverem a norte, apareçam! (E o blogue só regressa na segunda, mil desculpas!)
Embora trabalhe num grupo editorial de peso, não me são estranhas as preocupações das editoras independentes, não só em Portugal, onde a ausência de livrarias de nicho ou de fundo é marcante, mas também lá fora, em países onde as coisas vão de mal a pior. Num artigo da Bookseller, divulgado pelo consultor editorial Nuno Seabra Lopes, tomo conhecimento de que cerca de vinte editoras independentes do Reino Unido publicaram uma carta aberta explicando que se encontram numa «crise existencial», pedindo ajuda para poderem sobreviver. Elencam os problemas que as afectam, entre os quais o aumento dos custos de produção (papel, energia...); as dificuldades logísticas e comerciais (parcialmente devidas à saída da União Europeia e às decorrentes complicações alfandegárias); a dificuldade em penetrar no mercado livreiro ou nas redes de distribuição (como cá, em que só as grandes editoras conseguem chegar a todo o retalho); a falta de cobertura mediática e a diminuição do espaço para a promoção de livros na imprensa; e ainda o excesso de trabalho dos funcionários destas editoras e a sua insegurança quanto ao futuro, que gera muitas vezes problemas de depressão e/ou esgotamento. Houve várias chancelas que acabaram e editoras que tiveram de fechar portas, afectando claramente o mercado, pois de repente tudo corre o risco de se tornar industrial e apenas entertaining, o que é perigosíssimo para o desenvolvimento das mentalidades. Cá (excepto no caso da não pertença à União Europeia) passa-se exactamente o mesmo, e não me parece que tenhamos um executivo especialmente preocupado com os livros e a leitura. Deveríamos escrever-lhe uma carta aberta?
Por ocasião do baptizado do filho varão, Felipe III de Espanha e II de Portugal promove festejos imperdíveis na cidade de Valladolid, sede da Corte e capital do império. E, se para aquele umbigo do mundo – onde desaguam todos os vícios, velhacarias e vilanias – concorrem nobres e ladrões, damas e rameiras, será mais do que certo que, depois de um périplo por Badajoz, Sevilha, Trujillo ou Toledo, siga também para lá Tanganho Perdigão Fogaça, conhecido por Dom Perdigote, a fim de cumprir o seu destino. Mas nem tudo se apresenta de feição a este espadachim nascido no ano em que morre Camões; claro que, entre as muitas peripécias vividas, encontra o amor da sua vida e conhece o pintor El Greco, o escritor Quevedo e até o autor do Quixote; porém, será envolvido na tentativa de assassinar um dramaturgo que integra a embaixada inglesa, enviada para ratificar a paz entre as duas nações. Quem o irá salvar? Na senda do seu romance de estreia – A Demanda de Dom Fuas Bragatela, aplaudido entusiasticamente pelo público e a crítica –, este romance pícaro irrepreensível chamado A Vida Airada de Dom Perdigote acaba de ganhar o Prémio PEN de Narrativa por unanimidade. Parabéns, Paulo Moreiras, já não era sem tempo.
Estávamos no verão de 2008 quando Francis Ford Coppola chegou à Argentina. Vinha fazer um filme; há muitos anos que não realizava nada. Meses antes, comprara uma casa em Buenos Aires para passar uma temporada e conhecer a cidade; como também tinha vinhedos em Mendoza, queria estar a um pulo de avião. Na equipa de filmagem que criou aqui, havia um assistente de arte que, assim que leu o guião, começou com uma grande gabarolice; dizia que o seu melhor amigo era a reencarnação de Tetro, o protagonista boémio e maldito do filme que iam rodar. O boato não tardou a chegar aos ouvidos de Coppola.
Como qualquer artista necessitado de estímulos, o realizador quis conhecer de imediato o alter ego da sua personagem. Por acaso, esse amigo reencarnado era o meu marido e, numa noite quente de dezembro, fomos os três – ele, a minha filha de três meses e eu – conhecer o monstro sagrado. Eu não fora convidada pelos meus lindos olhos, mas porque falava inglês; quanto à minha filha, bom, não tínhamos com quem a deixar.
María Gainza, Um Punhado de Flechas, trad. Helena Pitta
Na semana passada, tivemos a excelente notícia da atribuição do Prémio Camões à poeta, ficcionista e historiadora angolana Ana Paula Tavares, cuja Poesia Reunida seguida de Água Selvagem foi dada à estampa pela editorial Caminho no ano passado. A Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas anunciou que o júri distinguiu a escritora pela sua “fecunda e coerente trajetória de criação estética e, em especial o seu resgate de dignidade da Poesia”, sublinhando ainda que, "com a dicção do seu lirismo sem concessões evasivas e com os livres compromissos da produção em crónica e em ficção narrativa, a obra de Ana Paula Tavares ganha também relevante dimensão antropológica em perspetiva histórica”. A contemplada, actualmente professora na Faculdade de Letras de Lisboa, cidade onde reside e onde se licenciou em História, dedicou o prémio a todas as poetas e todas as mulheres, especialmente, claro, as de Angola. É a terceira premiada deste país, seguindo-se a Luandino Vieira e Pepetela, e a oitava mulher em 37 edições que o prémio já leva. Parabéns, Ana Paula Tavares!
P.S. Amanhã começam, na Casa Fernando Pessoa, os dias de poesia Lisbon Revisited, que se prolongam durante todo o fim-de-semana. Este ano, os convidados são Nuno Moura, Inês Lourenço, Filipa Leal e Bernardo Pinto de Almeida, bem como os estrangeiros Najwan Darwish (Palestina), Katerína Iliopoúlou (Grécia), Slobodan Ivanović (Montenegro) e Stella Nyanzi (Uganda). Se gosta de poesia, não falte.