O que ando a ler
Um autor russo é um autor russo é um autor russo. Abri o mais recente romance de Vassili Grossman publicado em Portugal – Tudo Passa – e, de repente, estava lá Tólstoi, Dostoiévski, Turgueniev e muitos outros, porque os russos têm uma espécie de denominador comum que os irmana literariamente, não importa quantos anos separem efectivamente as suas obras. Tudo Passa é um livro absolutamente terrível sobre um homem – Ivan Grigórievitch, muito provavelmente um alter-ego do autor – que passa trinta anos num Gulag da Sibéria, donde sai após a morte de Estaline para descobrir que, afinal, nada se alterou. Vemo-lo chegar de comboio do campo de trabalhos forçados, onde acreditou que a noiva teria morrido por ter subitamente deixado de lhe escrever, e apreender junto de um primo que, afinal, ela se casou com outro homem. Mas a esta revelação dura e inesperada vão somar-se dúzias de outras não menos chocantes, que se prendem sobretudo com a facilidade com que todos se tornaram informadores, denunciantes, egoístas, medrosos e escravos no período mais negro da história da União Soviética, prejudicando pais, filhos e cônjuges para salvarem a pele, numa cegueira absolutamente cruel. Afastando-se dos que pensava seus amigos, Ivan instalar-se-á na casa de uma mulher – Anna Sergueévna – e apaixonar-se-á estranhamente por essa ex-activista do terror durante a Grande Fome da Ucrânia, cujas memórias – a parte deste livro que mais me impressionou – são a confissão de um extermínio planeado pelo Estado Soviético que ceifou a vida a milhões de camponeses. Com muitos pontos de contacto com a obra de Herta Müller que referi ontem no meu post, este romance estava ainda a ser trabalhado por Grossman quando este morreu, em 1964, num hospital de Moscovo, convencido de que, pela crueza do que contava, nunca viria a ser publicado. Um grande livro para se valorizar a liberdade.