Os picos do ouriço
Trabalhar num grande grupo editorial tem algumas vantagens (mesmo que muita gente não acredite, tem mesmo); uma delas é podermos aceder a certos livros antes de os terem as livrarias – e foi isso que me aconteceu recentemente com o novo Lobo Antunes, Sôbolos Rios Que Vão: alguém mo ofereceu sem eu sequer ter pedido. A verdade é que não o ia comprar – tenho demasiadas coisas que ler e sinto há muito que é preciso disposição e disponibilidade para um autor de peso como ele – coisas que habitualmente me faltam. Mas... sim, puseram-me o livro na mão e era um desses exemplares fininhos que, apesar do que exigem, se lêem em relativamente pouco tempo. Foi mais forte do que eu, como se aquela mão que o autor diz que escreve os livros por ele tivesse esticado um dedo acusador como a dizer-me que já não era sem tempo. O romance fala de um homem às voltas com um ouriço bicudo (também podia ser um caranguejo, uma vez que se trata de um cancro, mas o ouriço é bastante mais apropriado) e da sua suposta salvação pelo recurso a memórias de infância junto da nascente do Mondego num tempo em que as botas não lhe duravam mais de um Inverno, o pai abusava da empregada, o avô desdenhava os jornais na varanda, o tio supostamente impotente o ensinava a fazer oitos com a bicicleta, uma estrangeira aparecia nua no hotel dos ingleses, a mãe contava como conhecera o pai e o jovem Virgílio o acomodava numa carroça até à vila entre sacas de batatas que o incomodavam como... ouriços? Depois, havia a avó, pedindo-lhe que não espalhasse o peixe no prato e perguntando-lhe se não ouvia os gatos. A avó, o melhor de tudo. Que dizer? As memórias de infância são quase sempre o que nos salva. E aqui também.